Portugal
Paulinho, “um pé esquerdo fantástico” vindo do viveiro de Santa Maria
2017-09-04 15:40:00
Goleador está a revelar-se no SC Braga após ser formado no modesto clube que também lançou Hugo Vieira e Nélson Oliveira

Chegou a Braga no presente defeso, depois dos 20 golos apontados na última época ao serviço do Gil Vicente – 19 na Segunda Liga e um na Taça de Portugal. Começou a temporada fora das opções de Abel na terceira pré-eliminatória da Liga Europa, passou a ser alternativa como suplente e poucas semanas depois já era titular. Aproveitou a saída de Rui Fonte, estreou-se no onze com um golo e não mais saiu das escolhas do técnico do SC Braga. Após sete jogos – cinco como titular – leva quatro golos marcados e é o melhor marcador dos arsenalistas, sendo também uma das revelações do arranque da temporada. Quem o conhece destaca a capacidade de trabalho e um pé esquerdo de muita qualidade, prevendo voos ainda maiores para o camisola 20 e novo goleador dos minhotos.

O trajeto de Paulinho começa bem cedo, no modesto Santa Maria Futebol Clube. Mas a modéstia do clube fica-se apenas pela dimensão, pois no que se trata de lançar avançados de qualidade a fama já é alguma. Depois de Nélson Oliveira, Hugo Vieira e Carlos Fonseca, Paulinho é só mais um exemplo de sucesso formado no clube de Galegos (Santa Maria), pequena localidade perto de Barcelos. Um verdadeiro viveiro de avançados, e não só, onde o avançado foi lançado na equipa principal ainda com idade de júnior, em 2010/11, quando esta estava na Terceira Divisão nacional – atualmente está na segunda divisão distrital de Braga.

Por lá, enquanto dava os primeiros passos no mundo do futebol sénior, cruzou-se com Hilário, defesa direito que foi internacional B por Portugal e que alinhou na Serie A ao serviço do AC Peruggia. “Eu acabado e ele a começar”, relembra Hilário, em jeito de brincadeira, ele que na altura estava com 37 anos e fazia a última temporada da carreira. “O Paulinho foi um daqueles miúdos com muita qualidade que apareceram. Ele começou a jogar nos seniores ainda com idade de júnior. Ainda antes disso íamos ver os jogos dos juniores e ele destacava-se claramente dos outros. Tinha muita qualidade, um pé esquerdo fantástico e era inteligente”, realça ao Bancada.

“Era difícil enfrentá-lo e, por vezes, tinha de lhe dar umas ‘porradinhas’ [risos]. Já naquela altura era muito complicado de lhe tirar a bola, ele segura muito bem a bola. Tinha muita maturidade para a idade que tinha. É um jogador que cresceu, porque faltava-lhe um pouco de agressividade e ele foi ganhando com o tempo. Neste momento está um jogador completo e penso que vai dar muito mais nas vistas, porque é um jogador de topo”, afirma Hilário, sem qualquer tipo de dúvidas no tom de voz utilizado.

Quem o conheceu também desde muito jovem foi Nuno Sousa. Treinou-o na formação e depois no primeiro ano como sénior do Santa Maria. “O Paulinho sempre mostrou muita atitude desde os 13 anos, quando o comecei a treinar. Mesmo quando começou a integrar o plantel sénior, via-se que tinha uma tremenda capacidade de trabalho, podia passar três ou quatro horas a trabalhar lances específicos. Tinha sempre grande motivação para fazer grandes resultados e sempre foi muito humilde. Isso ajudou-o a ter as características necessárias para esperar pelas oportunidades e quando elas apareceram poder ter algo a acrescentar ao jogo e à carreira”, salienta o jovem técnico, de 32 anos, atualmente a trabalhar numa academia nos Estados Unidos da América, e que não se esquece das apostas que fazia com o jovem jogador. “Eram sempre um duelo forte e, algumas vezes, tive de lhe pagar jantares à custa disso”, confidencia.

Após uma época em que marcou um golo nos oito jogos disputados, ainda como júnior, na primeira temporada a tempo inteiro nos seniores chegou aos dez golos e não demorou a dar nas vistas. “Fui buscá-lo ao Santa Maria”, começa por revelar-nos Neca Gomes. “Fui lá ver um jogo à minha terra e gostei muito do Paulinho. Entretanto, fui para o Trofense. Tive a oportunidade de ir buscá-lo, ele tinha 19 anos. Senti que torceram um pouco o nariz, mas o Paulinho começou a jogar e muito bem. Começou a afirmar-se de uma forma clara e categórica porque era um miúdo de qualidade”, recorda. Na época de estreia nas competições profissionais marcou onze golos pelo Trofense na Segunda Liga. Nada mau para a estreia.

Depois de uma “conversa normal, de futebol”, entre o professor e Rui Jorge, onde o selecionador foi aconselhado a observar o promissor avançado, Paulinho acabou por ser chamado à equipa Sub-21 - a 14 de novembro de 2012 alcançou a única internacionalização que tem. Apesar de ter saído do comando do Trofense a meio da temporada, Neca teve novamente uma palavra a dizer na definição do futuro do jovem avançado e este rumou à Primeira Liga. “Tive a oportunidade de falar com um amigo pessoal que tenho, que é o António Fiúza, presidente do Gil Vicente, e disse-lhe que o Paulinho era um jogador com qualidade. Ele questionou se tinha qualidade para o Gil. Eu disse que sim, para o Gil, e que o poderia valorizar muito. Houve alguma resistência, mas acabou por ir”, relata Manuel Gomes, ou simplesmente Professor Neca no mundo do futebol.

Três anos “a não fazer nada” até à explosão

Aos 20 anos Paulinho chegou ao Gil Vicente e à Primeira Liga. Em 2013/14 fez 28 jogos e apontou três golos. Dois deles são na Taça de Portugal frente ao Moreirense. O outro é no campeonato, onde se estreia a marcar na décima jornada, numa derrota por 3-2 no terreno do Marítimo. Na época seguinte, novamente no escalão principal, fez apenas um golo em 18 jogos e não conseguiu ajudar o clube a evitar a descida de divisão. Permaneceu em Barcelos, onde em 2015/16 fez nove golos em 47 jogos. Até que na última época se cruzou com Álvaro Magalhães no Gil Vicente, apontando os tais 20 golos já aqui falados, em 41 jogos, que corresponderam à época mais concretizadora da carreira.

O segredo do sucesso foi simples e é o obreiro do mesmo que o explica. “Já o conhecia do Trofense e, na altura, penso que foi uma boa aquisição do Gil Vicente. Contudo, andou três ou quatro anos a não fazer nada. Isto é a realidade. Não o trabalharam de forma a que ele conseguisse ter sucesso. Quando ele saiu do Trofense era um ponta de lança, não um médio organizador como chegou a ser utilizado. Quando o apanhei no Gil Vicente tive de o preparar em termos psicológicos, porque em termos técnicos e táticos ele já era um jogador inteligente. Para ter sucesso no futebol de topo tem de ser um profissional diferente de todos os outros que andam no futebol só para brincar”, aponta Álvaro Magalhães ao Bancada.

“O Paulinho foi um jogador trabalhado e que acaba por fazer a melhor época de sempre porque jogou na sua posição, a ponta de lança. Assimilou tudo o que lhe foi transmitido e acabou por fazer uma época fantástica. É esse o seu lugar e se continuar a treinar com mais intensidade pode atingir outros voos. Tem tudo para chegar mais longe, com força de vontade pode chegar mais longe”, assegura-nos o antigo técnico do Gil Vicente. Uma ideia também partilhada por Neca, que sublinha ainda o facto de o jogador assentar na perfeição na tática dos minhotos. “Não me admirou nada que tenha dado este salto para o SC Braga. Em função das caraterísticas que tem, ajusta-se muito melhor a um sistema de dois avançados. Isso é nuclear para a potenciação do Paulinho. Ele tem formação no Santa Maria, não no Benfica, Sporting ou FC Porto, logo o espaço de progressão é maior do que o dos outros. Tem mais margem para progredir do que todos os jogadores da idade dele”, assevera.

A mobilidade apresentada em campo é apenas uma das virtudes que lhe são atribuídas. Isso e o pé esquerdo que dizem ser acima da média. “É evoluído tecnicamente e tem um pé esquerdo fantástico. É um jogador de grande mobilidade, parece lento, mas não é. Aparece bem nos flancos”, vinca Álvaro, antes de lhe destacar também o lado humano: “Como pessoa é espetacular. Humilde, trabalhador, acata sempre as decisões do treinador, é um companheiro fantástico dentro e fora do campo, cria um bom ambiente de trabalho e assimila sempre o que o treinador pretende. Os grandes campeões vivem da humildade e os jogadores de futebol estão sempre a aprender todos os dias. Ele gosta de aprender, melhorar e está sempre disponível para trabalhar”.

“É um jogador com mobilidade, longilíneo, alto, joga razoavelmente bem com a cabeça e vai continuar a melhorar”, acrescenta Manuel Gomes. “Tem um excelente pé esquerdo [repete a expressão para evidenciar este ponto forte de Paulinho]. Na altura não acreditava muito no pé direito, mas eu disse-lhe que era importante jogar com o pé direito também e ele fez isso, porque gosta de aprender. Ele sai bem do apoio frontal para a rutura em profundidade. É perspicaz na leitura que faz do jogo para receber a bola, quer no apoio frontal quer na profundidade. Tem uma boa meia distância e tem golo. É extremamente inteligente e rápido nos espaços curtos, o que é muito importante para um avançado”, salienta.

O atual momento de Paulinho - já apontou três golos na Liga Europa e um na Taça da Liga, que deu o triunfo alcançado ontem pelos minhotos no terreno do Boavista - não surpreende Álvaro Magalhães. “Agora, está num clube diferente e com jogadores de outra qualidade. O que ele faz agora no SC Braga já fazia no Gil Vicente. O Paulinho foi treinado para chegar a Braga e entrar na equipa. Não é agora que ele está a aprender. Só precisava de oportunidade. A partir daqui pode é ganhar mais experiência e ao lado de jogadores de outra qualidade adaptar-se com facilidade. Se ele trabalhar nos limites é titular e está a provar dentro do campo que é melhor que os outros”.

“Desde muito novo que foi crescendo, começou como médio ofensivo nas camadas jovens e depois evoluiu para avançado. No primeiro ano de sénior jogava com dois avançados e percebi que nessa tática seria um jogador tremendo, com uma grande capacidade de receção de bola, muito forte entre linhas. Para a estatura que tem é muito rápido, movimenta-se muito bem e analisa bem os lances. É determinante na finalização e também no jogo aéreo, onde foi evoluindo. Lembro-me de estar duas a três horas a treinar cruzamentos e lances aéreos com ele. Sempre foi um jogador que se notava uma grande alegria por jogar e que gostava sempre de ganhar”, lembra Nuno Sousa.

Uma terra de golos e cultura futebolística

Poucos clubes, sobretudo de pequena dimensão, se podem gabar de ter colocado tantos avançados no topo do futebol nacional num tão curto espaço de tempo. O Santa Maria FC pode. Tudo porque sabe potenciar a formação numa região de grandes talentos. “Há muitos bons jogadores naquela zona e o clube apoia a formação. Todos os jogadores que aparecem ali têm um clube que dá condições para poderem jogar futebol. A história do Santa Maria é bonita, com muitos jogadores que saíram dali para o Gil Vicente, SC Braga, FC Famalicão... Os jovens têm oportunidade de jogar e sair dali para clubes de maior dimensão”, explica-nos Álvaro Magalhães, que se mostra conhecedor da realidade vivida em Galegos (Santa Maria).

Também Hilário corrobora esta ideia do talento à solta na região. “É uma zona de excelentes jogadores. Por isso é importante os clubes estarem atentos porque existem excelentes jogadores nas divisões inferiores”. Por sua vez, Neca destaca também o lado cultural da terra. “É uma terra de futebol e tem cultura de futebol, é um princípio fundamental na terra. É uma terra com memória e as direções do clube têm preconizado por essas memórias, dando sempre ênfase à formação. Tem uma boa formação ao nível do pequeno clube que é. Isso deve-se às pessoas da terra e às direções do clube”, garante-nos.

Fomos ainda questionar o presidente do clube sobre o sucesso da formação, que para além dos três avançados já mencionados ainda colocou Carlos Fonseca (ex-Feirense e atualmente no Irtysh do Cazaquistão), Vítor São Bento e Renato Reis (ambos do SC Covilhã) ou Pedró (Aves) em patamares superiores. “Houve ainda o Leandro Vilas Boas, que esteve quase a entrar nos juniores do Benfica, mas talvez não fosse bem agenciado, porque se fosse teria ficado”, sublinha Gilberto São Bento, antes de confidenciar a receita do sucesso. “O segredo do Santa Maria é o trabalho e a dedicação das pessoas que cá estão. As pessoas que passaram por outros clubes e regressaram dizem que o Santa Maria é um clube que não é profissional, mas que trabalha como tal. Outro dos segredos é que os miúdos sabem que se trabalharem irão ser lançados na equipa sénior e a oportunidade deles vai surgir. Existem muitos olheiros de vários clubes a ver o Santa Maria e se forem bons jogadores a sorte deles chegará. Alguns miúdos preferem vir para o Santa Maria do que ir, por exemplo, para a formação do Gil Vicente, porque sabem que se aqui forem bons vão ter oportunidade de jogar nos seniores e a partir de aí serem lançados”, frisa o presidente do clube de Barcelos.

Um eventual sucesso de Paulinho poderá render alguns dividendos ao clube que o formou. Algo que Gilberto São Bento não esconde que poderá ser importante para um clube da dimensão do Santa Maria. “O Paulinho pode trazer receitas. Foi emprestado ao Trofense e posteriormente vendido ao Gil Vicente. Se existir alguma transferência no futuro, como é lógico, o mecanismo de solidariedade irá premiar-nos pelo trabalho de formação. Mas não é só ele, há outros. O Carlos Fonseca e o Hugo Vieira, por exemplo, também já trouxeram alguns dividendos aos clubes”, admite-nos.