Portugal
Mauro foi da feira à quase amputação da perna. De canoa
2018-06-03 21:05:00
"A ferida custa muito a passar, porque é a perda de um sonho de criança"

Tirem as mãos ao cirurgião, o cérebro aos cientistas, a mangueira ao bombeiro e o carro ao taxista. Fatal, não é? A Mauro, jogador de 27 anos, do SC Braga, pensaram tirar-lhe a perna. Não tiraram, felizmente, mas tiraram-lhe o futebol na mesma. Este médio brasileiro termina agora a carreira por causa de uma lesão grave que não só lhe poderia ter tirado a perna, como a própria vida. Com a ajuda de quem bem o conhece, apresentamos-lhe este homem que começou por trabalhar na feira e que, um dia, fez de uma viagem turística uma bela tarde na praia com as esposas e as colunas de som. E que, dizem, tem de ir para casa de canoa. Mas já lá vamos.

Primeiro, o que se passou. À grave lesão no joelho, seguiu-se uma infeção rara. “Corri risco de vida, podia ter morrido devido à infeção. Só descobri a real dimensão do problema quando me disseram que ia fazer um exame ao coração. 'Ao coração?', perguntei eu. 'Mas o meu problema não é no joelho?'. Disseram-me que, se não tivesse a condição física de um atleta, provavelmente não teria resistido. A infeção era enorme, ao ponto de terem ponderado amputar-me a perna para não se alastrar ao resto do corpo”, relata o jogador, ao jornal “O Jogo”, explicando ainda, ao Bancada, que o cenário da amputação da perna esteve em cima da mesa apenas no caso de a infeção ter aumentado.

Não falámos apenas com dois ex-colegas que conheceram Mauro. Falámos com dois jogadores que não só conheceram o brasileiro como passaram por situações semelhantes na forma como foram forçados a terminar mais cedo a carreira. Antes de conhecermos Mauro, perguntámos a Tó Barbosa e Daniel Faria, ex-colegas, no Gil Vicente, como se lida com o ponto final abrupto numa carreira de futebolista.

“O choque ao dizerem ao Mauro que ele não pode fazer mais o que gosta deve ser das piores coisas que um atleta pode ouvir na vida. Ouvir alguém dizer que tu não podes, mas tu queres tanto… e é ainda pior o facto de ele estar num processo ascendente na carreira. É uma frustração enorme”, argumenta Tó Barbosa, numa visão semelhante à de Daniel Faria: “Parece que o Mundo acaba. É essencial um grande apoio familiar e de amigos, para poder conseguir sair do beco onde estamos metidos. Não é num mês, nem em dois, nem num ano. A ferida custa muito a passar, porque é a perda de um sonho de criança”.

Nesta fase, as questões levantadas pela cabeça do jogador são evidentes, tal como nos dizem os ex-jogadores do Gil. “Nunca se cura na totalidade, mas com certeza que vai conseguir ultrapassar, pois descobre-se que existe vida para além de jogar futebol. No início, existe muita revolta contra o futebol. ‘Porquê eu?’, mas, com o tempo, o "bichinho" do futebol volta a aparecer, e de certeza que o Mauro vai querer ficar ligado ao futebol, como eu sempre fiquei”, prevê Daniel Faria.

“Uma das minhas questões, quando o médico mandou parar, foi: ‘o que é que eu vou fazer agora? Eu não sei fazer mais nada, só sei jogar à bola’. E não é por culpa dele, é culpa do azar. Crescemos com um sonho e ele é-nos arrancado pela vida. Há que se agarrar às pessoas mais próximas e começar do zero, mas os primeiros tempos custa muito. Perder a rotina dos treinos, do balneário, da pressão dos jogos, do cheiro da relva num treino de manha. São coisas que ele vai passar também”.

A curiosidade matou o gato

Mas vamos lá falar do Mauro. Quisemos saber quem é o baiano, nascido não muito longe de Salvador, numa aldeia pequena. Aliás, isto de vir de uma aldeia pequena leva-nos já à primeira história. Daniel Faria não se lembra de nenhum episódio caricato com Mauro, mas conta-nos o que lhe diz.

“Eu brincava muito com o Mauro, quando ele chegou – e ainda hoje brinco –, a dizer-lhe que ele é de uma província do Brasil e que, para ir para casa, tinha de atravessar um rio de canoa”, confidencia, ao Bancada, entre risos.

Mauro foi “caçado” pelo Atlético Goianense aos 16 anos. Ainda jovem, ajudava o pai nas terras e a mãe na feira. Isto e o futebol, claro. Tó Barbosa recorda a altura em que Mauro chegou do Brasil, para jogar no Gil Vicente. “O Mauro tinha acabado de chegar a Portugal e, apesar de existir no nosso plantel à volta de dez brasileiros, ele era muito tímido. O facto de ficarmos lado a lado no autocarro foi mero acaso e eu ia-lhe perguntando coisas sobre o Brasil e a terra dele e rapidamente ele começou a fazer o mesmo. Na pré-época, ele perguntava sempre quem era mais forte dos três grandes, qual o melhor estádio e também queria muito conhecer a minha terra, Póvoa de Varzim, por ter praia. Ele era muito curioso e queria saber tudo, mas era muito calmo, simpático e humilde”.

Os traços de personalidade não são muito diferentes dos destacados por Daniel Faria. “Conheço o Mauro desde 2011 e, de aí até hoje, tenho tido o prazer de conviver com ele, porque somos amigos pessoais. Posso dizer que ele é das melhores pessoas que encontrei no futebol e na vida. É um rapaz muito humilde e com um coração enorme, sem dúvida que é um amigo que vou levar para o resto da vida”.

Mauro fez uma temporada em Barcelos, antes de andar uns quilómetros, não muitos, até Braga. Ele que nem era assim tão utilizado no Gil Vicente. “Quando ele foi transferido para o SC Braga, fiquei um pouco surpreso, porque ele não era um indiscutível da equipa. Mas, ao mesmo tempo, achei natural, porque tinha muita qualidade e era um jogador novo, com muita margem”, reconhece Tó Barbosa.

Em Braga, foi uma temporada na equipa B – com jogos na equipa A –, antes de se assumir, definitivamente, como jogador do plantel principal. Por lá, apesar dos muitos jogos realizados (mais de 100), nunca convenceu totalmente. Muitos olhavam para Mauro como pouco agressivo, para médio defensivo, e outros apontavam a falta de capacidade de dar qualidade na primeira fase de construção. No fundo, era um jogador que não entusiasmava a bancada, tal como explica Daniel Faria.

“É o típico jogador que, para a bancada, não é um jogador vistoso, mas para a equipa é enorme. Ele na época que esteve comigo no Gil Vicente não jogou muito, porque era novo e estava a adaptar-se ao futebol português, mas, nessa altura, no balneário, já comentávamos que o Mauro tinha tudo para chegar longe”.

Já Tó Barbosa define-o como “um jogador elegante, que não era de bater bola, nem dar porrada. O Mauro era de desarme fácil, com qualidade no passe e com visão de jogo”.

Começámos esta secção do texto titulando que “a curiosidade matou o gato”. Não sabemos se a curiosidade nos matará, mas o certo é que é impossível não ficar curioso perante as declarações de Mauro, quando anunciou o final da carreira. Depois de deixar grandes elogios a Abel Ferreira, disse “peço desculpa, mas prefiro não responder a essa pergunta”, quando desafiado a falar de António Salvador. Falta de apoio ao jogador durante a lesão? Ausência de propostas para continuar noutras funções no clube? Não sabemos e, para já, ficaremos sem resposta.

O certo é que, até agora, o clube não reagiu oficialmente ao adeus de Mauro.

Passear, não. Futevólei, sim

Não nos esquecemos da historinha da festa. Deixemos o relato a cargo de Tó Barbosa.

“A melhor memória dele que tenho foi um dia em que o convidei para vir à praia da Póvoa e ele veio com o Júnior Caiçara, que está na Turquia, e com o Richard, que joga no Qarabag, do Azerbaijão. Eu pensava que ia mostrar a praia e a cidade, mas eles vieram com as esposas e uma coluna com música. Ficámos a jogar futevólei a tarde toda. Eu chamei uns amigos meus e, por momentos, com o ambiente que eles criaram, parecia que eu é que estava na terra deles, no Brasil, a jogar com eles”.

“São boas recordações, de um rapaz humilde, com bom coração, que não merecia acabar assim no futebol. Mas estou certo de que vai ultrapassar e vai ter um bom futuro, seja onde for”.