Grande Futebol
Um erro chamado Marcelo Bielsa: o lado negro de um génio
2018-02-09 16:10:00
Luís Campos definiu a contratação de Bielsa como um "erro", situação que não é inédita na carreira do técnico argentino.

Marcelo Bielsa. Para muitos, como Guardiola, ou Jorge Sampaoli, o melhor treinador do Mundo. Um génio. Um visionário. Um vanguardista do futebol. Pela argentina, em particular, uma corrente futebolística. Pela argentina, em particular, e um pouco por todo o Mundo, não faltam Bielsistas. O Newell’s até batizou o seu estádio com o nome do influente técnico argentino que muitos consideram ter revolucionado o futebol um pouco por onde passou. Uma competência nem sempre acompanhada de títulos, mas, sempre, ou quase sempre, acompanhada de polémica. Qual Dr. Jekyll and Mr. Hyde, qual conto de Robert Louis Stevenson, também Bielsa tem um lado negro. O lado negro de um génio.

Apesar de toda a influência positiva de Marcelo Bielsa no futebol, nem sempre as coisas correram bem por onde o influente técnico argentino passou. Especialmente, no que às aventuras de Bielsa por França diz respeito. Que o digam Olympique Marselha ou, mais recentemente, o Lille OSC, clube que vai disputando neste momento uma batalha jurídica com Bielsa devido à relação atribulada entre ambos que terminou com a rescisão a ser tratada em tribunal. À chegada a Lille as promessas eram grandes, porém, a passagem de Bielsa pelo clube terminou em fiasco e, como o próprio Luís Campos admitiu à imprensa francesa, a contratação do argentino não foi mais do que um erro. “Há que assumir quando se cometem erros, e o primeiro que o clube cometeu foi permitir que Marcelo Bielsa construísse o projeto desportivo do clube. O Lille deu-lhe plenos poderes e eu também sou responsável. Essa escolha ainda pesa muito na situação desportiva do Lille. É claro que Bielsa não era apropriado para o clube e para o nosso projeto”, admitiu Luís Campos que, ao Bancada, revelou não poder acrescentar muito mais devido à batalha jurídica que se desenrola.

Fevereiro de 2018. Vinte e quatro jornadas volvidas no campeonato francês, o Lille é por esta altura o 18º classificado da competição. Posição que obrigará os Dogues a disputar um play-off de manutenção/promoção com o terceiro classificado da segunda liga francesa no caso de terminar a temporada em tal posição. Se desportivamente a situação não é famosa para o Lille, pior, só mesmo a situação financeira do clube que já motivou um alerta da DNCG – conforme noticiou o L’Équipe há poucos dias - que, em caso de o clube não regularizar a alta dívida que detém, será despromovido automaticamente no final da temporada. Oito dessas vinte e quatro jornadas foram disputadas com Marcelo Bielsa ao comando do plantel e já na altura os resultados não eram positivos com o Lille a terminar a jornada oito na 19ª posição após uma pesada derrota por 3-0 sobre o Amiens. Esse foi também o último encontro de Bielsa como treinador do Lille e foi então que a bomba rebentou. As razões nunca foram oficiais, mas, certo, é que o Lille instaurou um processo disciplinar a Bielsa e não mais o argentino treinou o clube.

A chegada de Marcelo Bielsa ao Lille culminou com uma verdadeira revolução do plantel dos Dogues e, talvez por isso, o clube vá enfrentando tantas dificuldades em ser bem-sucedido esta temporada. Algo do qual, quem sabe, o Sporting até se possa ter safado. Em entrevista recente ao Observador, Augusto Inácio revelou o quão perto esteve o argentino do Sporting e até alguns dos planos de Bielsa para o clube. Tudo esbarrou nessa mesma ideia de revolução, já depois das primeiras impressões não terem sido necessariamente positivas. “Aparecemos mais cedo do que o previsto e apanhámos o Bielsa ainda no quadro. Ele, entretanto, desceu para o pequeno-almoço e estávamos à porta do hotel, porque o Bruno fuma muito. Como era o Bruno quem estava de frente, ele é que perguntava ‘é este?’ à procura do Bielsa. De repente, o Bruno pergunta-me ‘é este velho?’. E era o Bielsa, de fato de treino, com um ar meio esgazeado. Apresentámo-nos e o Biela convidou-nos para tomar o pequeno-almoço. Dissemos que não e esperámos por ele. Subimos ao quarto do Bielsa, que tinha uma secretária e um sofá. Todo esse espaço estava cheio de coisas do Sporting. Ele sabia tudo: academia, calendário, jogadores, vitórias, derrotas, plantel. Começámos a falar e fomos até à hora e meia. Às tantas, diz-nos ‘não quero este jogador’. Perguntei-lhe se o conhecia e ele continuou: ‘não o quero, é muito pequeno’, recordou ao portal o antigo treinador do Sporting. O jogador? Cedric. “Não queria saber se era bom ou mau. E o Bruno olhou para mim, como quem diz ‘olha-me este gajo’. Também nos mostra o esquema dele dos treinos e aquilo era do meu tempo de juniores. Uma bonecada nuns exercícios quase pré-históricos e eu ‘good, bom’. O Bruno avança então para o dinheiro e o Bielsa recusa. ‘Não discuto dinheiro, nunca. Ganha as eleições e depois falamos sobre isso’. Só que nós insistimos, que era bom apresentar um treinador e ele ‘não sou cara para campanhas’. Tudo bem, não quis dar a cara, vamos embora”, acrescentou ainda Inácio.

Ao Bancada, o antigo treinador do Sporting corrobora que não foi o episódio Cedric que resultou na desistência de Inácio e de Bruno de Carvalho na contratação de Marcelo Bielsa e substituição do argentino por Marco van Basten. “O homem não queria entrar nas eleições, queria falar só depois das eleições. A questão do Cedric foi só o ponto de vista dele, e caso chegássemos a acordo logo falávamos sobre o plantel. Agora, não era justo estarmos a falar de situações relacionadas com o plantel quando ele ainda não era treinador do Sporting. Aquilo foi só uma ideia que ele deu e que eu fiquei a olhar para ele e disse-lhe ‘tá bem, então depois falamos mais tarde se fores treinador do Sporting’. Não fazia sentido estarmos a falar do plantel, que era preciso isto e aquilo, não sendo treinador do Sporting. Foi só um momento”. “Nós fomos ali tentar perceber qual era a posição do Bielsa, ele entendeu que queria falar connosco, acedeu a isso, falámos, tentámos conhecer-nos e fomos aquilo que pensávamos que íamos. Fechar contrato com ele, e no caso de ganhar eleições… Ele disse que não queria falar disso antes de vencermos as eleições e a partir daí terminámos. Acabou logo ali o interesse”, justificou-nos Augusto Inácio.

Tal como em Lille ou o episódio relatado por Inácio ao Observador e ao Bancada, a carreira de Marcelo Bielsa está recheada de peripécias que deram a conhecer, ao longo dos anos, o lado negro do génio argentino. Desde bem cedo na carreira, diga-se. Marcelo Bielsa assume o comando técnico do Atlas do México em 1992 depois de uma passagem e início de carreira gloriosos no Newell’s Old Boys que acabou por ser um ponto de viragem no futebol argentino. No México, Bielsa revoluciona o Atlas, concede fama à academia do emblema de Guadalajara e faz do Atlas o principal municiador de armamento para a seleção mexicana. Por esta altura, metade da seleção mexicana é composta por jogadores lançados por Bielsa no Atlas. Jogadores como Rafa Márquez, como Pavel Pardo, como Borghetti ou Oswaldo Sánchez. O trabalho no Atlas fê-lo ganhar grande notoriedade no país e ainda hoje é o principal favorito a assumir a seleção mexicana sempre que a oportunidade se avizinha. Mas foi também no México que Bielsa começou a dar fama à alcunha de “El Loco”. Enquanto treinador do Atlas, após um encontro frente ao Correcaminos, Marcelo Bielsa acabou em confronto verbal agressivo com árbitro e equipa adversária e nunca mais alguém se esqueceu do lado negro do argentino.

Bielsa regressou em seguida à argentina para tomar conta do Vélez Sarsfield e apesar de ter conseguido levar o clube ao título em 1998, técnico e clube decidiram não renovar o vínculo. A imprensa argentina deu conta de uma má relação de Bielsa com o balneário do Vélez, em particular com a estrela José Luís Chilavert, ainda que as causas oficiais para o afastamento tenham ficado no desgaste físico e mental que tanto jogadores como técnico registavam no final da temporada 1998.

O argentino não ficou muito tempo no desemprego. Em julho de 1998, surge na equação o Espanyol de Barcelona e Bielsa ruma à Catalunha. Durou poucas semanas. Bielsa dirigiu o Espanyol em apenas seis encontros, período durante o qual venceu apenas um jogo, empatou dois e perdeu os restantes três. Uma passagem efémera por Espanha devido ao convite da seleção argentina que decidiu aceitar, ignorando assim o projeto que lhe havia sido proposto no Espanyol. Bielsa passou então oito anos ao comando da seleção das pampas e apesar de ter liderado o país à medalha olímpica nos Jogos de 2004, no Mundial 2002, a Argentina não foi além do terceiro lugar no grupo em que foi sorteada, naquele que foi o pior resultado de sempre da seleção argentina na competição. Bielsa manteve-se no cargo mas, durante vários meses, exilou-se na sua casa de campo. Em 2005, com a Argentina bem encaminhada para a qualificação para o Mundial desse ano, abandonou o cargo e alegou questões pessoais para tal.

Seguiu-se o Chile e como seria de esperar, a estadia pelo país não foi tranquila. Depois de liderar o Chile a uma qualificação e Mundial 2010 impressionantes, a vitória de Jorge Segovia nas eleições para a presidência da federação chilena levaram Bielsa a convocar uma conferência de imprensa que durou três horas para que pudesse justificar a renúncia ao cargo de selecionador chileno. Segovia não tomou posse e Bielsa, durante uns meses, renunciou à renúncia até que, em 2011, por fim, a mesma aconteceu devido a divergências com a nova direção encabeçada por Sergio Jadue. Bielsa voltou a ser convidado a assumir o comando técnico do Chile já em 2016, mas rejeitou por não querer voltar a trabalhar com os mesmos homens que, justificou, forçaram a sua saída do cargo.

Bielsa passou então por Bilbau e ao serviço do Athletic retornou o emblema basco às finais nacionais e finais europeias. Um percurso que permitiu a Bielsa chegar pela primeira vez na carreira a cem jogos ao comando de uma equipa, mesmo que durante o mesmo, decisões como a de não renovar contrato com Fernando Llorente não tenham passado despercebidas aos adeptos. Bielsa deixou Bilbau de forma relativamente pacífica, num fim de ciclo natural e raro no percurso recente do técnico argentino. Em Marselha, porém, Bielsa voltou a fazer das suas.

Depois de uma temporada passada, em grande parte, na liderança da primeira divisão francesa – apesar das quedas precoces nas Taça e Taça da Liga francesas -, mas que acabou com o Marselha na quarta posição da mesma, a segunda temporada de Bielsa ao comando do conjunto francês não foi além do primeiro jogo oficial da temporada e depois de uma derrota do Marselha por 1-0 frente ao Caen. Bielsa alegou divergências profundas com o clube, alegadamente depois do emblema francês ter alterado significativamente algumas cláusulas do contrato que estaria próximo de renovar. Anos mais tarde, Bielsa justificou a decisão com “questões éticas” pois o Marselha se preparava para reduzir em 10% o ordenado da equipa técnica do argentino.

Nada na carreira de Bielsa se assemelhou ao tempo que passou em Roma ao comando da Lazio, porém. Se Brian Clough ficou sempre conhecido pelos poucos dias que passou ao serviço do Leeds United, a passagem de Bielsa por Roma faria o técnico inglês corar de vergonha por ter passado tanto tempo ao comando do Leeds. Em Roma, Bielsa durou… dois dias. Tudo, porque o clube italiano não conseguiu contratar qualquer um dos sete jogadores apalavrados entre Lazio e Bielsa antes do técnico argentino assinar contrato com o emblema romano.

Recordado e idolatrado por muitos como um dos treinadores mais influentes do Mundo, criador de uma corrente futebolística própria e considerado por Guardiola ou Pochettino como o melhor treinador do Mundo, Bielsa, qual Mr. Hyde, também tem um lado negro e a sua contratação termina, por vezes, como um erro. O Lille, Luís Campos e Augusto Inácio que o digam.