Jogo do Povo
União de Paredes. O futebol a sério será sempre um infinito de felicidade
2023-08-03 15:55:00
Carlos Daniel à conversa sobre o União de Paredes, um clube que regressa ao Campeonato de Portugal

O futebol costuma ter poucos filtros. É emoção, é grito e euforia na vitória, é choro que corre em bagadas pelo peito na derrota. O futebol é arte, é ganhar mas há um verbo que se conjuga também que é perder. O futebol é ainda um infinitivo de gostar. O futebol é jogar para o 'pontinho', gostem ou não, mas é também tudo aquilo que se queira dele. O futebol é tudo e mais alguma coisa e será sempre um palco maior de cada vez que alguém o quiser pensar, refletir e questionar. É, pois, nos porquês das perguntas que as respostas fazem avançar o 'jogar' dos grandes estádios às nossas ruas, onde duas mochilas ou duas pedras bem que servem para fazer de baliza.

Muitos habitantes do mundo gostam de futebol e sentem-no, poucos o entendem à luz da arte coletiva que modela um processo, e raros são os que o sabem explicar. Carlos Daniel, jornalista da RTP, uma das figuras públicas mais respeitadas do país, não é treinador mas percebe 'da poda' como é comum dizer-se na terra que o viu nascer. E foi sobre o 'seu' União de Paredes que o Jogo do Povo quis falar com este antigo jogador e ex-dirigente do emblema da região do Vale do Sousa.

Carlos Daniel é do Paredes - chamou-lhe quase sempre "União" ao longo da entrevista, onde revisitou o passado, o presente e o futuro do emblema que lhe faz palpitar o coração e do qual guarda as mais bonitas memórias como naquele tempo em que foi o primeiro a relatar os jogos do Paredes ao fim de semana, depois de treinar com os craques durante a semana.

"Não me podia atrasar. Quando o meu avô não via as equipas a entrar em campo, já estava o jogo estragado"

Esse era o tempo do Moreira, o massagista, o central Dé (colega de escola de Carlos Daniel) e do Xano, irmão de Dé, de Rui Quinta e de muitos outros jogadores, à época, treinados por Djunga. Era o tempo em que as pessoas iam à bola e tinham o ouvido colocado no rádio, era o tempo em que as crianças entravam no palco dos sonhos pela mão dos pais, mães e avós, como Carlos Daniel que nos contou uma célebre passagem vivida com uma das mãos que primeiramente o levou à bola.

"O meu avô, com quem fui muitas vezes ao futebol, considerava que a gente só via o jogo se lá estivessemos um quarto de hora antes para ver a entrada em campo das equipas. A entrada em campo das equipas fazia parte do jogo, na ideia dele. Quando ele não via as equipas a entrar em campo, já estava o jogo estragado", recordou Carlos Daniel, em declarações ao Jogo do Povo, no Bancada.

"Eu não me podia atrasar. Isto é engraçado porque era no tempo em que as equipas não entravam juntas. A ideia de que se aumentou o fair-play porque entram juntas... Naquele tempo entrava o adversário, depois entrava a tua equipa ou vice-versa, aplausos a um, apupos a outros, sentia-se o estádio a ferver e eu acho que era muito engraçado e não se potencia qualquer violência", declarou o ex-jogador e antigo dirigente do Paredes, clube que na última época jogou na Liga 3 e agora vai disputar o Campeonato de Portugal.

José Maria, pai de Carlos Daniel

"Andavam por carolice, como o meu pai que andou 30 ou 40 anos a treinar miúdos"

No entendimento de Carlos Daniel, quando as equipas entravam em campo separadas já dava para medir o nível de apoio para os 90 minutos.

"Aí já dava para medir se o adversário tinha mais gente ou nem tanta. Esses momentos da entrada em campo das equipas num pelado que uma carrinha tinha alisado com uma rede atrás para ficar impecável, as bandeiras, quem vendia bilhetes, o senhor que apregoava chapéus e gelados, este universo é mágico", revisitou Carlos Daniel, ele que foi jogador do Paredes num tempo em que o mítico Estádio das Laranjeiras não era o que é hoje. Ainda assim, sempre foi um palco acolhedor a todos os paredenses.

"Eu, no essencial, joguei dois anos de juniores no União de Paredes. Foi uma experiência extraordinária. A maior diferença daquele tempo para este tem que ver com métodos de treino", contou Carlos Daniel, nesta entrevista ao Jogo do Povo, aproveitando, contudo, para elogiar as pessoas que naquele tempo, naquelas condições no Paredes e em outros 'Paredes' deram "tanto de si" para que o futebol fosse levado a cada canto, a cada terra para tanta gente e por tanta gente.

"Essas pessoas andavam por carolice como o meu pai que andou 30 ou 40 anos a treinar miúdos. É evidente que o que se fazia na formação nada tinha que ver com o que já faziam as equipas profissionais", recordou Carlos Daniel, lembrando os tempos em que treinava com a equipa principal do Paredes.

"Um miúdo que vinha de treinar duas vezes por semana, em que às terças-feiras corria à volta do campo e à quinta um pouco de bola, o potencial de desenvolvimento era muito curto para mim e para outros".

Paredes, terra carregada por uma forte indústria do mobiliário, tem sido berço e oficina de muitos sonhos, como os de Carlos Daniel quando era criança e ia ver o União.

"Existem quatro mãos que me levaram ao futebol e a quem eu devo a paixão pelo futebol. São as mãos do meu pai e do meu avô materno. O meu pai esteve ligado mais de 40 anos ao Paredes e influenciou a forma de ver o jogo e a minha paixão pelo jogo. Eu cresci num campo de futebol. Eu com quatro e cinco anos acompanhava as equipas de juniores e juvenis, conhecia os jogadores todos. E depois quando o meu pai estava ocupado eu ia ver o Paredes com o meu avô."

Filho de José Maria, um industrial gráfico, e de 'Lindinha', uma professora de inglês, Carlos Daniel é também um filho de Paredes, terra onde regressa sempre que pode.

"Quando volto a jogar com a camisola do União até esqueço a idade que tenho"

As memórias são tantas e estão tão bem guardadas que Carlos Daniel não esconde que volta a ser um menino cheio de sonhos de cada vez que entra nas novas instalações, nas novas Laranjeiras, em Paredes.

"Estive há pouco tempo num jogo de velhas glórias do União de Paredes e acho um exagero chamar-me glória do Paredes", contou, entre sorrisos, mostrando-se muito feliz por voltar a casa para reencontrar amigos sempre que lhe é possível, revisitando momentos, episódios de uma ligação ao clube da terra que lhe corre nas veias e na alma.

"É muito emocionante voltar ali", afirmou, mostrando-se feliz por ver a sua equipa a jogar "no centro da cidade", reduzindo as distâncias para que as pessoas possam ir ao estádio, ainda que, admita, todas as infraestruturas criadas ao longo dos anos sejam "boas" para potenciar o futebol na região de Paredes.

"Ver o meu clube, o clube onde eu cresci com um estádio magnífico é emocionante. Entrei em campo como se fosse um miúdo ao lado de tipos que jogaram comigo há trinta e tal anos, lembrei-me de golos que marquei, de golos que falhei, lances numa baliza e noutra. É algo inesquecível. Quando volto a jogar com a camisola do União de Paredes até esqueço a idade que tenho. Quero é tirar adversários da frente, chutar, se possível, há um encantamento que é difícil de explicar para quem nunca o viveu."

Um abraço ao amigo Eurico Couto e o desejo de sucesso ao clube

O União de Paredes vai disputar o Campeonato de Portugal, prova da qual foi o clube campeão há duas épocas atrás. A subida à Liga 3 foi vivida com euforia na região do Vale do Sousa mas o clube paredense apenas se aguentou uma época no terceiro escalão e regressa agora ao Campeonato de Portugal.

Mais perto ou mais longe, Carlos Daniel diz que está sempre com o União e deixou por isso também votos de sucesso para a nova temporada ao "amigo Eurico Couto", o treinador.

"As pessoas querem ver algo que as surpreenda além da vitória"

E foi sobre táticas e estretégias que a conversa com o Jogo do Povo, no Bancada, seguiu com este fã de um 'jogar' de iniciativa, posse, criatividade ofensiva, bem mais do que jogar na 'retranca', até porque treinar situações ofensivas "dá mais trabalho". E isso vê-se dos principais palcos às divisões mais baixas do futebol nacional.

"Sobre isso três ideias essenciais. Uma é que não vejo que exista uma diferença muito grande no bom e no mau entre as principais divisões e a Liga 3 ou Campeonato de Portugal. Ou seja, vejo poucos treinadores com convicção de futebol de iniciativa, ofensivo e vejo mais treinadores que ao primeiro desaire mudam o comportamento da equipa e a forma de jogar. Gostava de ver um pouco mais de iniciativa mas acho que isto é comum às várias divisões. No segundo ponto, eu acho que houve uma evolução tática do jogo que lhe tirou alguma magia, tirou jogadores de talento para os substituir por jogadores mais burocratas e isto também é comum às várias divisões", explicou Carlos Daniel, notando que "há hoje mais organização nas divisiões inferiores".

"Em Portugal, quando se fala em organização estamos normalmente a pensar na defesa. E o que dá mais trabalho é a qualidade coletiva em termos de ataque", acrescentou, falando do último ponto que tem que ver com o "talento individual".

"Nós temos que recuperar a confiança no jogador que desequilibra, no jogador que encanta, no jogador que é artista", disse, justificando-se.

"É para isso que as pessoas querem ver futebol. É para isso que as pessoas pagam bilhete. Querem ver algo que as surpreenda, além da vitória do seu clube", explicou, dizendo que, nos dias de hoje, "já se chama criativo a qualquer jogador que passe bem a bola à distância".

"Um criativo é um jogador que em pouco espaço encontra espaço, é o jogador que tira adversários da frente com alguma facilidade, cria superioridade numérica", enfatizou, referindo que é preciso também nas divisões mais baixas do futebol nacional "valorizar este tipo de jogador".

Na longa conversa com o Bancada, Carlos Daniel teve ainda tempo para explicar que guarda uma relíquia do União de Paredes que gostaria de melhorar em vésperas do centenário do União de Paredes.

"Tenho várias fotografias do meu pai", disse Carlos Daniel, lamentando que não tenha grande material do seu tempo de jogador do União de Paredes. E nesse sentido, o jornalista fez questão de lançar um desafio para as gentes de Paredes. A ideia é que se procurem recortes de jornal, objetos de tempos idos, fotografias que possam ajudar a contar a história do União de Paredes, sobretudo quando o clube está perto de comemorar o seu centenário.

Carlos Daniel com amigos da equipa de veteranos do Paredes

"O clube faz 100 anos em 2024 e era muito bonito ter uma atualização desse arquivo"

"Há uma revista que o meu pai imprimiu, porque ele tinha uma gráfica, salvo erro quando o Paredes fez 50 anos. Tinha fotografias de todas as equipas do União de Paredes. Essa revista, esse pequeno livro é verdadeirament euma relíquia. Eu tentei reeditá-lo mais tarde mas há pouco espólio. E tenho pena. O clube faz 100 anos em 2024 e era muito bonito ter uma atualização desse arquivo", confessou Carlos Daniel, contanto até que Jaime Pacheco jogou no União de Paredes no final de carreira e tentou vasculhar nos arquivos para tentar encontrar fotos do ex-jogador com a camisola do clube paredense mas não encontrou.

"Já perguntei ao próprio e ele não tem. E não sei se alguém tem", disse, detalhando outros nomes dos quais gostaria de ter mais fotos com o equipamento do Paredes como Lemos, Abel e Acácio, entre outros.

"Jogadores com nome no futebol português que acabaram a carreira no Paredes. Só que em relação a registos uma pessoa guardou, outra não sabe onde tem e eu tenho imensa pena que não se encontrem mais fotos e registos, porque essa era a memória bonita que era importante atualizar."

O que não deixa de estar atual na memória de Carlos Daniel são os jogadores mais emblemáticos que vestiram a camisola do União de Paredes.

"O Carlitos, que foi um jogador da terra. Quando eu comecei a acompanhar a formação do Paredes ele era ainda junior mas já era a grande promessa", revelou, falando depois de Fernando Meireles, primo do jornalista.

"Veio a ser um ponta de lança assinalável. Ele era a vedeta da equipa principal quando comecei a acompanhar o Paredes", contou, falando ainda de outros dois nomes que viu com a camisola do Paredes, por alturas em que começou a fazer relatos de jogos do clube da terra, sendo pioneiro nessa arte.

"Eu treinava nos juniores e treinava com os seniores à semana e ao fim de semana fazia os relatos para a rádio em Paredes. E aí existiam dois jogadores que eu acho que eram dois craques. Um era um médio brasileiro chamado Silva, era extraordinário e o avançado que era o Rui Meireles que era fantástico."

Ainda neste contexto, Carlos Daniel diz que tem recordações de ver Washington Alves [pai de Bruno Alves] a jogar pelo Paredes e até o Professor Neca, "que muitos não sabem mas jogou no Paredes".

Também Vítor Oliveira, já falecido, jogou pelo emblema de Paredes e Carlos Daniel diz que tem recordações de, em criança, se ter feito um enorme burburinho na terra quando se falou de que ia para Paredes "o Vítor Oliveira do Leixões", aquele que, anos mais tarde, ficou eternizado como o 'rei das subidas'.

Era uma vez um blazer do senhor diretor

Carlos Daniel é jornalista e um fã de futebol mas também foi dirigente do Paredes, tendo mesmo estado ligado diretamente a uma das páginas gloriosas do emblema da terra... nem que para isso tenha custado a durabilidade do blazer.

"Lembro-me de um jogo contra o Freamunde [localidade próxima de Paredes], em 1999/2000, em que o Paredes tinha de ganhar, salvo erro, por uma diferença de dois golos e a nossa equipa ganhou 4-1 nas Laranjeiras. Foi um jogo absolutamente histórico. Eu vi as Laranjeiras com toda a gente a cantar praticamente do primeiro ao último minuto, como se via já em alguns clubes grandes com o início das claques, e, naquele dia, aconteceu em Paredes. O clube subiu de divisão e houve uma grande festa. Eu era dirigente, na festa tomei banho com os campeões e lembro-me de um blazer azul que ficou completamente inutilizado para o futuro. O que fazem aos treinadores fizeram também aos dirigentes", recordou, entre sorrisos.

Jorge Luis Borges, pouco dado a futebóis, dizia que o maior pecado "é não ser feliz"

A fechar a entrevista, Carlos Daniel procurou explicar aquilo que pensa sobre o facto de muitos estádios da Liga 3 e do Campeonato de Portugal estarem com bancadas muito bem preenchidas, enquanto que na I Liga há dificuldades em atrair público para alguns jogos. E a resposta não se fez esperar.

"Se os clubes jogarem num estádio onde as pessoas não tenham de ir de carro ou autocarro, leva mais gente. E há também a questão do preço dos bilhetes. Depois há um outro elemento que me parece muito relevante que tem que ver com o futebol na televisão. Contra mim falo. Deixo de ir aos estádios porque o número de jogos que hoje as televisões passam, nos vários campeonatos, com os melhores artistas, perdemos umas três horas entre o ir, ver o jogo e voltar para casa. São três horas que se tiram à família ou, para quem gosta de ver futebol, a possibilidade de ver outros jogos."

A somar a essas razões, o antigo dirigente do Paredes lembra que nas divisões inferiores do futebol português estão alguns emblemas históricos.

"Há clubes nas divisões inferiores como o Salgueiros, o Varzim, o Espinho que são clubes com uma história e que ainda arrastam muita gente para os estádios. No interior as pessoas também ainda se juntam muito no clube."

Porque o clube será sempre uma razão para o associativismo, para a alegria de pequenos e graúdos, mesmo quando os resultados não forem os melhores. Afinal, ganhar ou perder faz parte. O importante é o processo coletivo e a felicidade, como nos fala o escritor Jorge Luis Borges, que era pouco dado a futebóis.

"No passado cometi o maior pecado que um homem pode cometer: não fui feliz". E Carlos Daniel foi e é feliz com o seu União de Paredes.