Portugal
A vida e obra de Mourinho Félix, um homem íntegro que ficou no coração de muitos
2017-06-26 13:25:00
Mourinho Félix, antigo guarda redes de Vitória de Setúbal e Belenenses, pai de José Mourinho, falece aos 79 anos.

Há momentos na história que ficam para a eternidade. Como aquele, no Campo dos Arcos, Setúbal, a dar os seus últimos minutos ao futebol por altura do fim da primavera de 1961 – o Bonfim seria inaugurado em 1962. A história tem dois intérpretes principais. Um é um miúdo de 19 anos que dava os seus primeiros passos no futebol em Portugal para mais tarde se tornar numa das maiores figuras da história do jogo. O outro é Mourinho Félix, guarda redes do Vitória de Setúbal naquela tarde, como em tantas outras ao longo de treze temporadas como jogador de futebol. Mourinho Félix defendeu apenas dois clubes ao longo de uma carreira de dezanove anos como atleta. Deixa-nos aos 79 anos e o seu legado é inquestionável. 

Sabe quantas grandes penalidades desperdiçou Eusébio da Silva Ferreira ao longo da sua carreira? Não? Pois bem, foram quatro. Não fossem essas quatro grandes penalidades e Eusébio teria finalizado a carreira com uns icónicos 777 golos marcados – 749 oficiais. Não foram menos impressionantes os 773 golos com que a finalizou – 745 deles oficiais -, uma carreira que fica irremediavelmente associada à de José Manuel Mourinho Félix, antigo guarda redes de Vitória, de Setúbal, e de Belenenses. É que, não só Eusébio fez o seu primeiro golo vestido à Benfica a Mourinho Félix, como foi o pai de José Mourinho quem lhe defendeu a primeira grande penalidade que desperdiçou na carreira. 

Setúbal, 1 de Junho de 1961. O Benfica chegou ao Campo dos Arcos para disputar a segunda mão dos oitavos de final da Taça de Portugal na ressaca da vitória europeia, em Berna, por 3-2 frente ao Barcelona. Vicissitudes do calendário ou insensibilidade federativa, certo é que o Benfica é obrigado a defender uma vantagem de 3-1 conquistada na Luz quase um mês antes com uma equipa plena de reservistas. Uma equipa B, fossem hoje os tempos. Eusébio, ainda a dar os primeiros passos na equipa da Luz e ainda um miúdo tímido, era um deles. Por lá andava também Espírito Santo, por exemplo. O jogo terminou 4-1 para o Vitória e quando o encontro nos Arcos finalizou ainda o novo campeão europeu não estava em Portugal.  

Por esta altura o Vitória era uma equipa a disputar a zona sul da segunda divisão portuguesa, depois de em 1959/60 não ter ido além da 13ª, e penúltima, posição do campeonato nacional numa época em que os dois últimos classificados desciam à segunda divisão. Mourinho Félix ganhara a titularidade da baliza do clube sadino meses antes, depois de ter passado vários meses sem registar uma participação oficial pelo Vitória entre Novembro de 1957 e Maio de 1959, sendo que só em Outubro se assume como titular da equipa. Mesmo na segunda divisão, o Vitória fez um pequeno brilharete na Taça de Portugal e apenas cai aos pés do Sporting nos quartos de final. Mesmo aí, venceu a primeira mão por 1-0, numa temporada em que a Taça de Portugal foi vencida pelo Leixões numa final no Jamor perante o FC Porto.  

Defender grandes penalidades de grandes lendas do futebol não era coisa desconhecida para Mourinho Félix. Em 1956, miúdo, e quando ainda só registava uma partida oficial pelo Vitória e com esse jogo a ocorrer na temporada anterior, Mourinho Félix surgiu como titular do Vitória na deslocação ao Restelo. O Vitória perdeu por 5-1 mas com o jogo em 1-0, Mourinho Félix defendeu uma grande penalidade a Matateu. Anos mais  tarde, em Setúbal, porém, perante o Benfica, Mourinho Félix defendeu a grande penalidade de Eusébio e sorriu no final do jogo. Já com o Vitória a vencer por 3-0, Eusébio, então jovem interior esquerdo acabado de chegar de Moçambique, conseguiu uma pequena vingança ao reduzir a vantagem do Vitória para 3-1 mas foram os sadinos, por Pompeu, quem voltou a chegar ao golo. O Benfica precisava não perder por mais de dois golos para, pelo menos, levar o jogo para prolongamento e talvez o tivesse conseguido não fosse Mourinho Félix ter defendido a grande penalidade de Eusébio.  

Dezanove anos como jogador e apenas dois clubes representados 

Jogadores como Mourinho Félix já há poucos no futebol atual. Jogadores que ficam anos quase eternos ao serviço de um clube e que, no fim, se confundem com as suas cores e símbolos. Mourinho Félix foi-o. Um símbolo de Vitória e Belenenses mas, particularmente, Vitória. Clube no qual passou treze temporadas, conquistou uma Taça de Portugal em 1965 e perdeu outra, na final, perante o Sporting de Braga em 1966. No clube sadino foi da primeira divisão, à segunda, e ao topo da primeira em poucos anos e até experimentou as competições europeias quando defrontou o Saint-Étienne em 1962.  

O Vitória voltaria a vencer uma Taça de Portugal em 1967 mas por essa altura já Mourinho Félix era presença pouco assídua na equipa de Setúbal. A chegada de Dinis Vital ao Bonfim alterara o paradigma vitoriano na baliza e as duas últimas temporadas em Setúbal são passadas quase na totalidade longe dos relvados. Surge, então, o Belenenses na carreira de Mourinho Félix. Segundo e último clube de Mourinho Félix enquanto jogador de futebol. 

Mourinho chega ao Restelo em 1968, à beira dos 30 anos, com o Belenenses ainda à procura de um substituto para José Pereira, que se transferira para Aveiro de forma a representar o Beira-Mar em 1967. Ainda vê Gomes roubar-lhe duas jornadas como titular mas agarra a titularidade definitiva no Restelo logo em 68/69, registando no final 23 presenças pelo clube. No Restelo só não jogou quando não esteve fisicamente apto e é em 1971 que experiencia, pela primeira vez, as vivências de um treinador de futebol. 

Uma carreira de treinador que chegou por necessidade 

Foi ainda bem dentro da carreira de jogador, e longe de pensar, sequer, em arrumar as luvas, que Mourinho Félix se estreou como treinador. Aconteceu durante a temporada de 1970/71, quando assumiu o comando de um Belenenses afundado na classificação, uma época em que Joaquim Meirim até prometera um Belenenses a lutar pelo título. Certo, é que à 18ª jornada, a oito partidas do final do campeonato, o clube do Restelo é décimo classificado com apenas dois pontos de vantagem sobre o penúltimo classificado. A ameaça da despromoção era bem real.  

Em oito jornadas, porém, Mourinho Félix - em conjugação de esforços com Homero Serpa -, sem descuidar os seus serviços enquanto guarda redes, tira o Belenenses do fundo da tabela e, ao conquistar quase tantas vitórias em oito jogos (três) quanto as que o clube do Restelo tinha até então em 18 jornadas (quatro), deixa os Azuis na sétima posição em igualdade pontual com o sexto, o Boavista. Mourinho Félix dera os primeiros passos como treinador ainda antes de ser peça fulcral na equipa do Belenenses que alcança o vice campeonato em 1973. Por esta altura, até já era internacional português. Mourinho Félix jogou seis minutos na MiniCopa 1972, disputada no Brasil, por cortesia de José Augusto, então, selecionador nacional. Meia dúzia de minutos perante a República da Irlanda, mas uma internacionalização que ninguém lhe tira. Como jogador deixa os relvados em Novembro de 1973 mas, no banco, iniciou uma carreira, também ela, recheada de sucessos.  

Mourinho Félix era treinador dos júniores do Belenenses quando é convidado para assumir o comando do Estrela de Portalegre em 1976/77, onde faz a sua segunda estreia como treinador. Já lá vamos. Viajamos primeiro a 1980/81. Mourinho Félix é treinador do Rio Ave e pelo terceiro ano consecutivo sobe uma equipa à primeira divisão de Portugal. Fizera-o com União de Leiria em 1979, com o Amora em 1980 e, então, com o Rio Ave em 1981 - clube com o qual mais tarde, 1984, alcança uma final da Taça de Portugal, que perde para o FC Porto por 4-1.  

Em Vila do Conde encontrou Cabumba, médio, onde quis o destino que no Rio Ave trabalhasse com um setubalense. Uma cidade que apesar de não ser sua (nasceu em Olhão), tratava por "tu". Ao Bancada, Cabumba resume Mourinho Félix como um homem de grande dignidade e que era a sua humildade e honestidade que o diferenciava dos demais. Um homem exemplar, sensível. Mourinho Félix fez história em 1980 quando levou o Amora pela primeira vez ao convívio com os grandes clubes de Portugal mas o seu início de carreira como treinador podia ter sido ainda mais impressionante. Em Portalegre, porém, foi vítima de "sacanice".  

Estrela que não pode brilhar em Portalegre 

José Manuel era jogador do Estrela de Portalegre quando Mourinho Félix toma conta do clube alentejano. À primeira temporada como técnico principal, vindo dos juniores do Belenenses, Mourinho quase coloca o clube de Portalegre na primeira divisão. O Estrela termina a zona centro da II Divisão na segunda posição e é obrigado a disputar a liguilha de promoção à primeira divisão contra Espinho – que define como tendo uma grande equipa na altura - e CUF, já na fase descendente do clube barreirense.  

Algo que podia até nem ter sucedido. Afinal, a duas jornadas do fim, o Estrela lidera o campeonato e a reta final é disputada taco a taco com o Feirense. O clube de Santa Maria da Feira, porém, vence a divisão no confronto direto e relega o Estrela de Portalegre para o segundo lugar. Aí, o "Senhor Mourinho", como o trata ainda hoje José Manuel, foi vítima de sacanice. Hoje uma equipa de uma cidade estagnada, José Manuel recorda os tempos do Estrela com outros olhos. O de uma equipa financiada fortemente "por carolas" e que permitiu a Mourinho recrutar jogadores em Setúbal, bem como nomes como Leitão e Prieto vindos do Belenenses. 

Apesar do sucesso do senhor Mourinho em Portalegre, é despedido dias antes dos encontros contra Espinho e CUF que apurariam o último promovido à primeira divisão da temporada 76/77. Acreditavam, os dirigentes do Estrela, que a melhor oportunidade do clube ascender à primeira divisão era contratar o treinador do rival Feirense, então, o argentino Ruben Garcia. O Estrela, porém, rapidamente se coloca fora da luta pela promoção e é o Sporting de Espinho que termina na primeira posição da fase de promoção da segunda divisão de 1977. 

José Manuel Moreira, "Zé Manel", nome de guerra, nas palavras do próprio, amigo próximo da família de Mourinho, jogou com o senhor Mourinho no Estrela antes de o reencontrar no Rio Ave anos mais tarde onde, recorda uma grande temporada com vitórias nas Antas e perante o Benfica, numa carreira que contou ainda várias passagens por Boavista, bem como quatro épocas no Salgueiros. Sem surpresa, José Manuel recorda o senhor Mourinho com grande saudade e também ele elogia a integridade de um grande homem. "Uma jóia de pessoa, uma pessoa extremamente humilde e que ficou no coração de tantos outros homens", como conta ao Bancada José Manuel. No Estrela, porém, não o deixaram brilhar naquilo que resume como uma verdadeira macaquice. "Pensavam que o outro tipo ao ser campeão ia levar a equipa à primeira divisão", conta-nos. No final, contrataram Ruben Garcia por um ano, despediram Mourinho e nunca participariam na primeira divisão do futebol português até hoje.