Opinião
Futebolistas vivem uma vida irreal
2017-09-07 14:00:00
Victor Valdés deu uma lição de humildade

Recebe, mensalmente, uns quantos milhões na conta bancária. Vai para o treino num carro topo de gama. Os filhos estudam no melhor colégio privado da cidade. Vive num palacete. A família não precisa de trabalhar. Esta é a vida de boa parte dos jogadores profissionais de futebol. Aparentemente, a vida perfeita. Neste texto, trago uma lição de humildade, a ler mais à frente.

Já todos ouvimos comentários como: “estes gajos recebem milhões só para dar uns pontapés na bola” ou “só querem o dinheirinho no fim do mês, não sabem o que custa a vida!. Quer sejam ou não ideias justas – e considero que não são –, o certo é que os jogadores profissionais recebem, na realidade atual, salários injustificadamente altos, que roçam o pornográfico. Não obstante, há que pensar noutros ângulos.

Os futebolistas são cidadãos predestinados. Nasceram com um talento incomum para jogar futebol e essa qualidade (inata, na maioria dos casos) proporciona-lhes uma vida estável e pouco exposta aos sacrifícios do cidadão comum. Ainda assim, um jovem assumir que quer uma carreira de futebolista é um risco tremendo. Trata-se de uma carreira profissional curta e que, a qualquer momento, como veremos mais à frente, pode terminar. Considerando que a esperança média de vida ronda os 78 anos e que um futebolista, em média, encerra a carreira com cerca de 32 anos, sobram qualquer coisa como 46 anos de vida por completar.

Os futebolistas que têm a sorte de guardar recursos financeiros suficientes para viver os tais restantes 46 anos são uma minoria de entre todos os que tentam essa carreira (faz ideia de quantos futebolistas existem pelo Mundo fora? Eu não faço). Ser futebolista é um risco tremendo, repito. Assim sendo, será suposto que os atletas de alta competição vão apostando em formações adicionais, para que se possam agarrar a algo no final da carreira? Idealmente, sim. No entanto, a alta competição dificulta essa tarefa, entre treinos, estágios, jogos e repouso. Isto permite perceber os salários praticados? Talvez, ainda que não os justifique totalmente, creio eu.

Vamos, então, à história de humildade. Os futebolistas vivem uma vida irreal. Ilustro esta ideia com uma entrevista feita a Victor Valdés, guarda-redes espanhol, de 35 anos. Atualmente está sem clube, mas defendeu a camisola do Barcelona durante 19 anos. Em entrevista ao canal colombiano RCN, em julho de 2015, Valdés não questiona a ideia de “vida perfeita” que a sociedade atribui aos futebolistas. Reconhecendo-a, ressalva os sacrifícios que o sucesso exige. Antes de qualquer atleta, está alguém que, segundo Valdés, “apenas teve a sorte de poder ser futebolista”.

O guarda-redes espanhol contou a experiência que uma lesão grave lhe proporcionou e dá “graças a Deus por ter vivido essa experiência”. A lesão fê-lo “sentir de novo o que é a vida sem ser futebolista”.

“Eu vivia num hotel e tinha de me deslocar à clínica, de eléctrico, duas a três vezes por dia. (…) depois de muitos anos, voltei a contar moedas e a saber valorizar o que custava um simples bilhete de eléctrico ou ter de pagar um café. São situações às quais, nós, futebolistas, não estamos habituados, porque vivemos uma vida irreal”. Valdés refere que um futebolista recebe tudo feito e que a lesão o fez voltar à “vida real”. Foi um golpe forte para recordar que vem de “comprar o bilhete de eléctrico e andar com as muletas, com a música nos ouvidos e...sozinho”.

 “Tens uma lesão no joelho e tu já não vales. Chamam outro. Mas vais valer, se tu quiseres”, lamenta Valdés, antes de garantir: “depois disto, nunca mais serei uma superestrela”.

Esta história permite perceber a crueldade de uma carreira de futebolista e explicar, parcialmente, os salários principescos que se praticam. Recebe milhões, sim, mas tudo isso pode ruir de um momento para o outro. Esta figura do futebol “desceu à terra” e olhou para a vida do comum cidadão que teve a sorte de ser jogador. Não o jogador que teve a lesão grave. O outro. O que teve sorte. O que recebe tudo feito e não precisa de saber onde estava antes de ser profissional.

Valdés é um cidadão comum, catalão, 1,83m, 35 anos, na fase final de uma grande carreira. Este cidadão comum deu uma lição de humildade a todos nós: aos que veem os futebolistas como indivíduos fúteis e prepotentes, aos que sonham ter a “vida perfeita” do futebolista e aos que tiveram a sorte de ser talentosos, mas não tiveram a “sorte” de ter uma lesão grave e ter de comprar, diariamente, bilhetes de eléctrico. Os bilhetes do sacrifício. Os bilhetes que o levaram à “vida real”.