Grande Futebol
Vichai Srivaddhanaprabha, o homem que devolveu a magia ao futebol
2018-10-29 16:00:00
Mais do que o legado desportivo, a obra de Vichai Srivaddhanaprabha centra-se na sua humanidade e generosidade.

Esqueça tudo o que sabe sobre donos de clubes de futebol. Vichai Srivaddhanaprabha, era especial. Sim, nós sabemos. Nestas alturas que tragédias e dramas acontecem, são sempre todos boas pessoas e indivíduos excecionais. O dono do Leicester City, porém, era-o na verdade e o legado que deixa é de um valor incalculável. Sem ele, o Leicester City não é aquilo que é hoje. Sem ele não havia Ranieri. Talvez Kanté, Mahrez ou Jamie Vardy não tivessem chegado onde chegaram. Sem ele, seguramente, não havia Leicester City campeão. Vichai Srivaddhanaprabha foi o homem que devolveu a magia ao futebol e nos permitiu a todos continuar a sonhar com os impossíveis que se tornam realmente verdade.

Vichai Srivaddhanaprabha foi um homem especial. Não apenas para o futebol, não apenas porque nos permitiu continuar a sonhar, que nos permitiu acreditar que os contos de fadas se podem realmente tornar realidade, mas também para toda a comunidade em que se insere o Leicester City. Dando o exemplo ao Mundo de que o futebol é muito mais do que um jogo. É um desporto bem assente em valores morais. A última viagem de Vichai Srivaddhanaprabha durou segundos. Uma que a cada quinze dias sempre fazia.

Sábado foi um dia difícil na vida de qualquer adepto do futebol. Começou mal e jamais se endireitou. Primeiro com Glenn Hoddle, depois, com a queda do helicóptero de Vichai Srivaddhanaprabha após o empate a um golo entre os Foxes e o West Ham. Vichai Srivaddhanaprabha deixava sempre o estádio do clube de helicóptero, mas desta vez algo correu mal. Pouco depois de descolar do centro do relvado do estádio do clube, o veículo parou despenhando-se nas imediações do estádio e incendiando-se em seguida. Vichai Srivaddhanaprabha e outras quatro pessoas, todos os cinco ocupantes a bordo, perderam a vida.

Vichai Srivaddhanaprabha ajudou a mudar o Mundo através do futebol e o legado deixado pelo milionário tailandês não passou ao lado de quem quer que fosse. Um pouco por todo o Mundo surgiram homenagens ao antigo dono do Leicester City, após uma tragédia que comoveu milhares - quem sabe milhões - de pessoas. Dos donos de clubes de futebol raramente se reúne tamanho consenso. Raramente se proferem palavras como aquelas que proferiu Kasper Schmeichel, guarda redes e um dos capitães do Leicester City. Só ao nível dos homens verdadeiramente especiais.

“Você mudou o futebol. Para sempre! Deu esperança a toda a gente de que o impossível é possível, não apenas aos nossos adeptos, mas a todos os adeptos de todas as modalidades em todo o mundo. Não há muita gente que o tenha feito. Quando me contratou em 2011, disse-me que que íamos estar na Liga dos Campeões no espaço de seis anos e que alcançaríamos grandes coisas. Você inspirou-me. Fez-me sentir que nada era impossível. Sem você e a sua família, tudo isto, tudo o que alcançámos seria impossível. Você proporcionou-me coisas que acontecem apenas em sonhos”, escreveu o guarda redes dinamarquês a quem Vichai Srivaddhanaprabha um dia emprestou o helicóptero para que pudesse regressar para junto da família após ter interrompido as férias para uma ação promocional pelo clube.

Foi com o Leicester City a dar o pontapé de saída na segunda temporada no Championship após uma visita à terceira divisão do país que em 2010 Vichai Srivaddhanaprabha comprou o clube. Um clube em crise desportiva e financeira - as dívidas ascendiam a mais de cem milhões de Euros e que o tailandês assumiu - e que desde 2003/04 não visitava a Premier League depois de ter sido um habitué da competição nos anos 90. Numa época em que muitos falam, mas poucos cumprem, Vichai Srivaddhanaprabha mostrou ambição e cumpriu com ela. Afirmou que em meia dúzia de anos o Leicester City iria estar na Liga dos Campeões e a verdade é que não só tal se cumpriu seis anos depois de ter comprado o clube, como lá chegou como campeão inglês num dos momentos mais especiais de toda a história do futebol.

“Depois de ter passado muito tempo a estudar vários clubes, apaixonei-me pelo Leicester City. Uma das razões foram as cores do clube, as mesmas da minha empresa. Outra foi o facto de jogarem na segunda divisão. Se eu comprasse um clube da Premier League não seria suficientemente desafiante”, afirmou em tempos. Poucos anos depois, sagrou-se campeão inglês e agraciou todos os jogadores do clube com BMW I8.

Vichai Srivaddhanaprabha tinha ambição, uma visão e um plano, e não dececionou. A sua obra, porém, vai muito além do legado desportivo e futebolístico. Numa época em que tantas críticas são feitas aos donos dos clubes de futebol, servindo-se deles e não servindo-os, fazendo da posse dos mesmos uma brincadeira e capricho de milionário, Vichai Srivaddhanaprabha foi um homem diferente. Desde sempre, envolvendo-se na comunidade em que se insere o Leicester City.

“É difícil colocar em palavras o que você significou para este clube e para a cidade de Leicester. Todos sabemos do investimento que você e a sua família fizeram no clube. Mas isto é sobre algo maior. Você preocupou-se profundamente não só pelo clube como por toda a comunidade. A sua interminável contribuição para os hospitais e entidades de caridade de Leicester nunca será esquecida. O senhor foi mais além em todos os aspetos”, relembrou também Kasper Schmeichel.

Vichai Srivaddhanaprabha e a sua organização mudaram para sempre a face do Leicester City. O clube tem hoje um projeto delineado, é uma marca internacionalmente reconhecida, é orgulho das suas gentes e é, mais do que tudo isto, um clube atraente para qualquer jogador. Mesmo para nomes como Slimani, Adrien ou Ricardo, por exemplo, trocando clubes grandes de outros países para jogar noutro que, em teoria, a história e palmarés não iguala. Ou Demarai Gray, James Maddison ou Harry Maguire, dos mais talentosos jogadores ingleses, que vêem no Leicester City, hoje, o clube ideal para evoluir como atletas. Vichai Srivaddhanaprabha tornou agradável ser jogador do Leicester City e tornou o clube uma grande família, valores com os quais construiu o seu império. Apesar de uma estrutura gigantesca, a King Power nunca perdeu ligação entre os empregados e os setores mais altos da empresa. O sucesso desportivo e financeiro passou, também, muito por aí.

Não foi, porém, só no clube que Vichai Srivaddhanaprabha dez a diferença. Foi também redor dele, junto da comunidade. Junto das instituições de cariz social, dos hospitais e das universidades de Leicester. Em 2016, Vichai Srivaddhanaprabha doou dois milhões de Euros ao Hospital de Leicester, por exemplo, e as suas contribuições milionárias à universidade da cidade valeram-lhe distinções honorárias na mesma, bem como homenagens por parte do munícipio do Leicester. Vichai Srivaddhanaprabha era um deles. Cidadão de Leicester por afinidade e para sempre conhecido pela humanidade e generosidade com que agraciou a cidade.

Nascido em abril de 1958, foi na Tailândia que Vichai Srivaddhanaprabha construiu o seu império e fortuna ao tornar a King Power numa das maiores redes mundiais de lojas “duty free”. Em poucos anos, Vichai Srivaddhanaprabha passou de uma loja no centro de Banguecoque a usufruir do monopólio das lojas “duty free” nos aeroportos do seu país, algo conseguido com uma inigualável diplomacia num país de grande volatilidade política. Em 2010 chegou então ao futebol e desde então, apesar de discreto, tornou-se num dos mais amados donos de clube do futebol mundial. Ações como oferecer donuts e cerveja aos adeptos do clube ajudaram e até monges budistas Vichai Srivaddhanaprabha contratou, fazendo-os sobrevoar o relvado do King Power Stadium de forma a abençoarem o estádio do Leicester City.

Curiosamente, o futebol não era sequer a primeira paixão de Vichai Srivaddhanaprabha. Quem diria, certo? A verdade, é que Vichai Srivaddhanaprabha tinha no pólo o seu grande amor, tendo sido o fundador da Federação Tailandesa de Pólo há vinte anos, tendo investido milhões, também, no pólo em Inglaterra. Vichai Srivaddhanaprabha deixa o Mundo mais pobre e, seguramente, o Leicester City mais pobre.