Grande Futebol
O Mundial sujo de sangue e com uma "Peruada" de todo o tamanho
2018-05-30 15:50:00
O Argentina'78 foi organizado por um regime ditatorial. Os festejos dos golos confundiam-se com os gritos de sofrimento

O Mundial de 1978 está manchado de sangue. A Argentina vivia sob uma ditadura militar quando recebeu a visita de de outros 15 países para disputar o maior evento futebolístico do planeta. “Era surreal. Um dia estava a ser torturado e no dia seguinte estava abraçado ao meu torturador a festejar um golo da Argentina. No dia seguinte era torturado novamente.” Assim se conta a história do campeonato do mundo que ficou marcado pela goleada da Argentina sobre o Peru… que tinha um guarda-redes argentino.

Em 1976 - cinco anos após a atribuição da organização do Mundial de 1978 à Argentina - uma junta militar liderada pelo general Jorge Rafael Videla derrubou, com um golpe militar, o governo liderado pela presidente Maria Estela Martinez de Perón, mais conhecida como Isabelita. Os tempos que seguiram a esse golpe militar foram marcados pela crueldade de um governo que matava, raptava e torturava quem se opusesse ao regime durante o “processo de reorganização nacional”, dizia o general Videlal.

O governo liderado pela junta militar tinha então a função de organizar um Mundial ao mesmo tempo que ocultava, perante os olhares do resto do mundo, a crueldade e a violência perpetrada contra o seu próprio povo. Ainda hoje, os jogadores que então conquistaram o Mundial para a Argentina são associados ao regime ditatorial de Jorge Vidal. Muitos defendem-se e afastam-se de tal colagem alegando que jogavam com as cores alvi-celeste da seleção e não com o verde dos militares. Rejeitam a ideia de terem servido o regime que, com o barulho dos festejos dos seus golos, abafava os gritos de sofrimento do povo torturado.

A menos de um quilómetro do Estádio Monumental, casa para o River Plate e palco da final entre a Argentina e a Holanda, vítimas da ditadura eram torturadas na Escola de Mecânica da Armada. “Era surreal. Um dia estava a ser torturado e no dia seguinte estava abraçado ao meu torturador a festejar um golo da Argentina. No dia seguinte era torturado novamente”, recordou Adolfo Perez Esquivel - preso político e prémio nobel da paz - num documentário transmitido pelo “Canal História”.

O general Jorge Vileda entrega a taça de Campeão do Mundo ao capitão argentino, Daniel Passarella

As vozes de protesto contra a realização do Mundial na Argentina foram-se ouvindo um pouco em todo o mundo e originárias de todos os quadrantes. Na Suécia, o primeiro-ministro Olaf Palme discutiu, no parlamento, a participação da seleção sueca no torneio argentino. Em França, o boicote ao Mundial era consensual no seio dos grandes pensadores e da Holanda chegavam notícias de que o melhor jogador do Mundo, Johann Cruyff, não ia viajar para aquele país sul-americano.

O guarda-redes do Peru... que era argentino

A verdade é que o Mundial de 78 foi mesmo jogado na Argentina. O governo liderado pela junta militar envidou todos os esforços e recursos para que (quase) tudo estivesse a postos para o pontapé de saída. A nação que recebia os convidados ia fazer (tudo) pela conquista do primeiro Mundial da sua história. O facto de os grandes rivais brasileiros e uruguaios já contarem com dois troféus cada era um fardo muito pesado para os argentinos, loucos por futebol.

O que aconteceu para que a Argentina chegasse à final é um outro caso dentro do caso que foi o Mundial de 1978. Na altura, o torneio era disputado com duas fase de grupos. E a Argentina chegou ao derradeiro jogo, antes de uma eventual final, a saber que teria de ganhar ao Peru por uma diferença de quatro golos, caso quisesse suplantar o Brasil no primeiro lugar do respetivo grupo e jogar o desafio decisivo com a Holanda - sem Cruyff, que acabou mesmo por não viajar.

Ora bem. Muitas coisas foram ditas sobre essa partida entre a Argentina e o Peru. Jorge Videla foi visto a sair dos balneários onde se equipavam os jogadores peruanos. Uma das teorias mais propaladas fala de um soborno ao país: a Argentina enviaria grandes quantidades de trigo. Outra tese defende que  Videla foi ao balneário subornar os jogadores, sendo que um deles era mesmo argentino. Quem? O guarda-redes que sofreu seis golos. Pois. Diga o nome de Ramón Quiroga a um brasileiro e vai ver o que ele tem para lhe dizer.

A Argentina venceria o jogo por 6-0 garantindo o primeiro lugar no grupo e deixando para trás uns furiosos brasileiros. A seleção das pampas, com Mario Kempes à cabeça, acabaria mesmo por se sagrar campeã do mundo ao bater a Holanda na final por 3-1. Na ruas, a festa durou a noite toda, e por breves instantes não se ouviram os gritos de sofrimento do povo oprimido.