Visto da Bancada
Carlos Gomes (Nº290)
2018-06-25 12:30:00
Bola na frente, não inventávamos e era assim que éramos felizes e evitávamos AVCs constantes.

Na edição 290 do "Visto da Bancada", trazemos alguém que viu, ao vivo, o dia mais belo do futebol português. Carlos Gomes é guarda-redes - foi um dos que participou na subida do Alverca aos campeonatos nacionais - e, agora já como jogador do Vila Franca do Rosário, conta, ao Bancada, como foi viver a final do Euro 2016. Lá. Mesmo lá. A cores.

Como o relato foi bastante completo e até poético - algo que agradecemos -, vamos inovar e optar por deixar todo o relato a cargo do Carlos.

"No Stade de France, prestes a assistir ao momento mais histórico do futebol português. Nunca senti tanta ansiedade perante um jogo que ainda nem sequer começara. Estávamos em França, jogando em casa do anfitrião do Europeu, contra uma das equipas mais poderosas daquele torneio. Provavelmente, poucos acreditariam que lá chegássemos e que, no final, festejássemos.
 
Desde o apito inicial que o coração batia freneticamente a cada segundo que passava. Pessoalmente, tinha uma fé enorme que o Cristiano Ronaldo resolveria aquele jogo, como resolve sempre e como sempre nos habituou. Gritávamos da bancada para nos distrairmos da nossa inquietação, para acreditarmos que podíamos estar lá dentro a ajudá-los. Toda aquela euforia se desvaneceu rapidamente quando, perto do minuto 25, o nosso ídolo, a nossa referência, o capitão de uma nação foi substituído. Receámos por momentos que aquele seria o início do fim, um soco no estômago que nos derrubaria fragilmente e repentinamente. Como se diz no futebol quando não estamos bem, “começámos a perder 1-0”.
 
O futebol é cínico, é a única conclusão de que me recordo naqueles cinco minutos entre a lesão do Ronaldo e a sua saída. Três quartos daquele estádio aplaudiram e vociferaram, como que celebrando, a entrada do Payet sobre o Cristiano. Da mesma forma que depois o assobiaram enquanto este estava no chão lutando para que o corpo e a mente o deixassem continuar a lutar dentro de campo pelo nosso sonho. Terminando com uma honrosa e ruidosa salva de palmas, numa simbiose perfeita entre os anfitriões e a nossa nação.
 
Sei que a partir daquele momento, celebrava cada defesa do Rui, como se de um golo de Portugal se tratasse. À medida que o tempo passava, via um futebol parecido à tática do quadrado, onde Portugal venceu os Castelhanos na Batalha de Aljubarrota. Porquê? Porque tal como fizemos naquela altura, inovámos! Íamos vencendo uma poderosa artilharia de França com a estratégia, a paciência, a raça e organização que os nossos dois timoneiros, Cristiano e Fernando nos passavam lá para dentro. E que belo era aquele futebol, uma arte que a maioria dos adeptos daquele estádio não entendia mas celebravam. A França sempre achou estar por cima, sempre achou que o momento deles iria acabar por chegar porque olharam para nós como frágeis e perdidos no campo, sem um líder. E tinham razão… o líder daquela equipa estava na bancada, estava numa nação que contra todas as circunstâncias lutava incessantemente para manter um sonho. Eles, no campo. Eu, na bancada. A responsabilidade era partilhada.
 
No intervalo do prolongamento, estava com uma dor de cabeça dantesca, sem voz e mais cansado do que os que estavam lá dentro a correr por nós. Olhava para os companheiros de bancada que pareciam tão cansados como eu. Cansados mas nunca derrotados. Todos sabíamos que estava próximo o sentimento mais belo que vivi no futebol. Já tinha sentido a frustração de ver o Raphael Guerreiro bater uma bola de golo na barra, o alívio de ver o Rui segurar nas suas mãos a esperança de Portugal ou a incredulidade por ver o posto da baliza do melhor gr português nos bafejar pela sorte no último minuto do tempo regulamentar.
 
Lembro-me de que quando vi o Éder entrar, eu próprio trocei um pouco da escolha do Fernando Santos. Fi-lo porque, aos 80 minutos, ainda tinha discernimento para o fazer. Aos 109' já acreditava nele como acreditava em qualquer outro jogador que pudesse estar em campo. Estava em transe, a olhar para o jogo, esgotado e absorto, quando inesperadamente uma injeção de adrenalina e emoção tomaram conta de mim, vendo a bola partir dos pés de um jogador de quem torcei batendo nas redes da baliza que estava mais próxima de nós. Que sentimento lindo, que realização de um sonho que nem sequer tinha como meu quando começou o Europeu. Vi a bola entrar e apenas isso, estava embrenhado no meio de corpos e pessoas choravam e lutavam para sair de baixo de quem por momentos de descontrolo puro os quisera abraçar e atropelar genuinamente para celebrarem um momento único na nossa história e dos nossos antepassados.
 
Os 10 minutos seguintes foram de energia renovada, senti que estávamos todos em frente à nossa baliza, que jamais alguém conseguiria tirar-nos o sonho de uma nação. O nosso futebol era o mais bonito que tinha visto, no que a raça e ambição diz respeito. Bola na frente, não inventávamos e era assim que éramos felizes e evitávamos AVCs constantes. Trocar a bola na defesa não era opção, matar-nos-iam do coração. Bola na frente, longe da nossa baliza, lá não faziam golos, nem cometiam erros. 
 
E o apito final, soou… terminou ali o jogo mais belo que vi na vida!