Prolongamento
Rãs, calor e uma cidade que é um Mundo à parte: o retrato de uma aventura Thai
2018-07-30 21:30:00
Luís Viegas e Pedro Ramos são os rostos de uma aventura portuguesa na Tailândia.

De Lisboa a Banguecoque distam quase onze mil quilómetros de distância. Dificilmente menos de quinze horas de viagem se for de avião ou, no caso de ser um verdadeiro aventureiro, indo de carro, uma distância de estrada que supera os catorze mil quilómetros. Luís Viegas e Pedro Ramos não foram tão aventureiros. Chegaram a Banguecoque para trabalhar, afinal, de forma a integrar a equipa de observação do Bangkok United, um “modernismo” imposto no clube por Rui Bento.

A história de relação entre o Bangkok United e o futebol português não é particularmente rica, porém, a contratação de Rui Bento para treinador da equipa da capital tailandesa em 2014 permitiu ao clube modernizar-se e implementar um departamento de observação vídeo que hoje incorpora dois analistas portugueses. Nem mesmo a saída de Rui Bento do clube, poucos meses após a chegada de Luís Viegas, em janeiro de 2014, colocou um ponto final à experiência portuguesa na Tailândia. “A oportunidade de vir para a Tailândia surgiu através do Rui Bento. Tínhamos trabalhado juntos no Beira-Mar e ele convidou-me para o acompanhar quando veio treinar o Bangkok United, em Janeiro de 2014. Ele acabou por só ficar aqui alguns meses e desde Junho desse ano que estou a trabalhar com o Mano Polking”, diz-nos Luís Viegas, antigo jornalista do jornal O Jogo e hoje analista e chefe do departamento de scouting do Bangkok United há quatro anos e sete meses.

Para Luís Viegas, o Bangkok United foi uma daquelas oportunidades que não podia perder. “Na altura a análise e o scouting eram áreas que estavam a ganhar cada vez mais terreno. Se recuarmos estes quatro/cinco anos, constatamos facilmente que o futebol asiático já estava em processo de desenvolvimento, tornando-se cada vez mais aliciante. Por outro lado, já tinha trabalhado com alguns jogadores asiáticos e a experiência tinha sido muito interessante”.

Rãs, calor e uma cidade que é um Mundo à parte: o retrato de uma aventura Thai

Com quase o mesmo número de habitantes do que toda a população portuguesa, Banguecoque é um Mundo à parte. “Completamente à parte. Bangkok parece um país dentro do próprio país. É uma cidade gigante, multicultural, com gente de todos os cantos do mundo, com muito trânsito, com arranha-céus a cada esquina, com muita oferta a todos os níveis. Há outras cidades desenvolvidas, como Chiangmai, no Norte, mas nada se compara a Bangkok”, diz-nos Luís Viegas que, na Tailândia, encontrou sem surpresa um país bem diferente daquele a que estava habituado.

“O clima é muito diferente do nosso, porque está sempre calor, não há estações do ano, mas quem é que se importa de poder andar todos os dias de calções? Em termos de alimentação, o mais exótico que comi não é assim tão exótico: rã. De resto, a culinária tailandesa é muito rica e diversificada. As frutas e os vegetais são particularmente bons. Há alguns pratos que são mesmo muito picantes, mas nesses só me aventurei meia dúzia de vezes. É um país em desenvolvimento, uma economia que tem crescido quase todos os anos. Existe alguma desigualdade, mas podemos fazer um paralelismo: em Portugal, viver com 500 euros por mês é complicado; aqui é relativamente tranquilo. Porque a alimentação é barata, assim como os bens essenciais, desde os transportes até à saúde. De resto, é um país consumista, então o dinheiro circula e é raro haver desemprego. Aliás, várias ocupações que em Portugal estão hoje totalmente automatizadas, como as portagens, os postos de gasolina ou os parques de estacionamento, aqui têm sempre vários funcionários”, retrata-nos.

Mais tarde do que Luís Viegas chegou Pedro Ramos, antigo economista, mas cujo amor pelo futebol acabou por falar mais alto desistindo da carreira na área financeira para se lançar à aventura na análise e observação de jogadores e equipas de futebol. Tanto, que em janeiro de 2018, após alguns meses a trabalhar em clubes nacionais como o CD Cova da Piedade ou CD Mafra, bem como para a federação de Cabo Verde, acabou por viajar para a Tailândia a convite de Luís Viegas.

“Admito que os primeiros 3 ou 4 dias foram complicados. E nem tanto pelo clima, porque sou de Tomar, interior de Portugal, e estou habituado a temperaturas superiores a 30 graus no Verão, se bem que aqui a humidade e a sensação térmica é, deveras, superior. Agora, o (intenso) cheiro das ruas, a comida, a comunicação, a ‘monstruosidade’ – numa ótica de dimensão – de Bangkok, foram fatores que me complicaram a vida inicialmente, até porque não conhecia ninguém mesmo, tirando o Luís Viegas. Mas o ser humano – diria mesmo, em especial, o cidadão português –, adapta-se fácil e rapidamente a qualquer adversidade/contexto. Ao fim de poucas semanas sentia-me confortavelmente com tudo. E hoje em dia, sinceramente, sinto-me completamente adaptado ao contexto tailandês. Já não há (intensos) cheiros das ruas. A comunicação é mais ‘prática’. Já tenho noção do que é longe ou perto em Bangkok. Já ‘domino’ as redes do metro e sky train, e para que lado é o sítio X ou Y”, confessa-nos Pedro Ramos.

“Agora, sobre a comida, step by step... Costumo aproveitar as (boas) refeições que o clube fornece e cozinho para mim, tentando aportuguesar sempre (!) todo e qualquer prato. Comida tailandesa é ‘complicada’, devido ao teor spicy que lhe está inerente. Admito que seja uma gastronomia forte, saborosa e rica como muitos defendem, mas, comigo, está ainda numa fase embrionária. Portanto, a ‘coisa mais estranha que já comi’, é ainda um capítulo por preencher. Já sobre a ‘coisa mais estranha que já fiz’, não sei se a poderei incluir nesta coluna, mas talvez o ter ido festejar o Songkran – o ano novo tailandês; o país para todo de Norte a Sul –, que basicamente consiste em irmos para a rua mandar água com pistolas de água a todos. São centenas de metros de trajetos bem organizados – em termos de segurança e logística em N pontos de Bangkok – onde todos ‘disparam’ sobre todos ao longo das ruas. Foi ‘estranho’, somente, porque nunca tinha estado horas e horas a levar com água em cima, chegando mesmo a trocar ‘tiros de água’ com polícias, que estavam ali para festejar, tal como todo o mundo”, conta-nos ainda o analista português.

"Fui jornalista desportivo durante mais ou menos uma década, num período de grande desenvolvimento do futebol. Esse facto e o contacto com o mais alto nível fortaleceram esta paixão"

Mas como é que, afinal, chegaste até aqui Pedro? Os teus backgrounds – economia – não estão necessariamente ligados ao futebol. Como é que tudo isto aconteceu? “É verdade. Apesar de ser uma long story, uma parte da história, tu próprio – João Pedro Cordeiro – conheces porque fizeste parte dela. Queria entrar no mundo do futebol, queria trabalhar em algo que me permitisse ‘deitar e acordar como se me sentisse a pessoa mais feliz do mundo’. Então decidi fundar o Planeta Desportivo, um projecto que, assim considero, teve o seu impacto na blogosfera nacional. Foi uma espécie de ‘cartão de visita’ para, cerca de 2 anos depois, me ter possibilitado entrar no Videobserver. Aí, naturalmente, o networking cresceu. E foi no Videobverser que conheci o Pedro Figueiredo – actual treinador do Cova da Piedade B –. A empatia e grande amizade foi imediata de parte a parte. Para 2016-2017 ofereci-me para ser o analista da equipa técnica dele – que fazia parte do staff do Pedro Silva – e a resposta foi positiva. Estive no CD Mafra em 2016-2017 na equipa técnica do Pedro Silva – a quem devo muito – e adorei a experiência. Desse staff técnico, fiz amizades para a vida. Ao mesmo tempo, tiro o UEFA C na Associação de Futebol de Santarém, onde tive o (enorme) privilégio de ser aluno dos misteres Nuno Presume, João Henriques, Jorge Castelo, entre outros”, explica-nos.  

“Acompanhei o Pedro Figueiredo para o Cova da Piedade em 2017-2018, trabalhando no departamento de scouting – ligas internacionais – e, ao mesmo tempo, sendo um dos seus adjuntos na equipa B do clube. Em Dezembro de 2017 surge o convite do Luís Viegas relativo ao Bangkok United, e não tinha como rejeitar. Ansiava há muito por um projecto desta exigência, dimensão/envergadura e pressão. Muito devo também à pessoa que apostou em mim: Luís Viegas”, diz-nos ainda Pedro Ramos.

Mas nesta história nem tudo são rosas. Quer para Luís Viegas, quer para Pedro Ramos, a chegada a Banguecoque, sem surpresa, encerrou toda uma série de desafios que os dois analistas portugueses tiveram de ultrapassar para chegar até aqui. “Em termos de futebol, de trabalho, o desafio foi essencialmente em termos organizativos, até porque o futebol aqui é profissional há menos de uma década. Mas é impressionante a evolução que o clube tem tido desde essa altura. Claro que, noutro sentido, a cultura tem um peso considerável no trabalho, porque os tailandeses são um povo um pouco relaxado e por vezes sem a competitividade a que estamos habituados em Portugal, mas foi uma questão de ir conhecendo e entendendo essa cultura. Depois, os hábitos de vida também são diferentes, mas por aí também não senti grandes dificuldades”, conta ao Bancada Luís Viegas.

“Diria que, muito provavelmente, a comunicação. Seja num táxi, num supermercado ou numa loja qualquer, fiquei surpreendido – pela negativa – por o inglês ser pouco ou nada falado. Há muitas dificuldades, e recetividade, para eles – tailandeses – dialogarem em inglês. Mesmo que por vezes o gesticular seja uma preciosa ajuda, a verdade é que a mensagem que queremos passar – que devia ser rápida e clara –, várias vezes, vai incompleta ou mesmo incorreta. Já tive N episódios de estar mais de 20 minutos a tentar apanhar um táxi porque os anteriores não percebem para onde quero ir, e mesmo eu tendo o GPS comigo, o que chega a ser revoltante”, desabafa Pedro Ramos.

Tal como Pedro Ramos, também Luís Viegas fez um pequeno desvio no que à carreira diz respeito. Com um background construído na Comunicação Social, o chefe do departamento de Scouting do Bangkok United explica ao Bancada que apesar de tudo, o desvio não foi assim tão grande. “Existe um denominador comum: o futebol. Embora numa atividade diferente, o meu dia-a-dia era acompanhar, estudar e observar a modalidade. E creio que esse período foi fundamental para as funções que desempenho agora, dando-me ferramentas e contactos que considero fundamentais. Curiosamente, nalguns países, sobretudo no Brasil, é muito comum os analistas terem um percurso idêntico ao meu”.

Como é que nasce, então, a paixão pela análise de jogadores e equipas de futebol? “Está muito ligada à minha anterior atividade. Fui jornalista desportivo durante mais ou menos uma década, num período de grande desenvolvimento do futebol. Esse facto e o contacto com o mais alto nível fortaleceram essa paixão. Joguei futebol dos 12 aos 21 anos, mas nunca foi o lado do treino que me estimulou. Foi sempre a análise, a observação, o scouting em todas as suas vertentes”, diz-nos Luís Viegas.

“Bem, paixão pelo futebol sempre tive. Mais concretamente pela análise e observação, diria que coincide com a minha entrada no Videobserver. A partir desse momento começo a contactar e conviver com malta da bola, vários deles a top, da vertente da análise. E, naturalmente, a curiosidade e o querer saber mais, o querer ‘acompanhá-los’, falar o mesmo idioma futebolístico que eles, aumentava exponencialmente. Desde esse momento que passei a ouvir – treinadores – muito, a ler – livros relacionados com futebol das mais diversas áreas como liderança, análise, história, etc – muito, a ver – N jogos pelo mundo fora – muito, a analisar – pedigrees (ideias de jogo) de N treinadores – muito, a participar/assistir – seminários/eventos/cursos de treinador e de análise – muito”, acrescenta Pedro Ramos.

“O futebol tailandês tem acompanhado a realidade asiática e cresceu consideravelmente nos últimos anos"

A análise vídeo de atletas e adversários é cada vez mais, hoje, figura fulcral de qualquer equipa técnica nos clubes com maior capacidade. Mas, ao certo, qual é o papel de um vídeo analista? “O papel do analista passa por fornecer ao treinador e à equipa técnica o máximo de informação possível sobre a própria equipa e sobre os adversários. Por um lado, potenciar ou corrigir comportamentos e intenções, seja em termos coletivos ou individuais. Trabalhamos muito em cima do desenvolvimento e do aperfeiçoamento da nossa ideia de jogo. Por outro lado, analisar e dissecar o adversário, detetando-se as suas forças e as suas fraquezas. Tudo muito focalizado, pois cremos ser essa a tendência da análise. De todo este processo resultará, num cenário ideal, o aumento da performance da própria equipa e a concretização da estratégia para cada jogo”, explica-nos Luís Viegas.

É complicado implementar uma estrutura mais tecnológica no futebol num país como a Tailândia, ou o futebol tem realmente uma linguagem universal? “Diria que até é mais fácil do que em Portugal, porque aqui existe uma clara perceção da necessidade de investir e de se estar o mais apetrechado possível. Tanto assim é que temos à disposição praticamente a mesma tecnologia que um clube grande terá em Portugal, tanto na análise e no scouting como no controlo de treino e performance. Na equipa técnica somos quatro lusófonos - eu, o Mano, o Paulo Alexandre Oliveira, que é o preparador-físico, e o Pedro Ramos, que veio este ano trabalhar diretamente comigo. Em termos de comunicação, os conceitos mais básicos são relativamente fáceis de explicar e para os mais complexos temos um tradutor, mas temos três jogadores brasileiros e outros são fluentes em inglês, sobretudo os que têm dupla-nacionalidade”, diz-nos.

E, afinal, como é que se vive o futebol na Tailândia? É uma coisa à parte, ou o europeísmo também está muito presente? “A cultura está sempre presente. Só para se ter uma ideia, independentemente do resultado e do que tiver acontecido durante o jogo, no final é obrigatório que as duas equipas se dirijam ao banco contrário para saudar o treinador adversário e depois façam o mesmo com os adeptos. Claro que se vive o jogo com paixão e emoção, porque os tailandeses gostam mesmo muito de futebol, mas há sempre pormenores em que a cultura se sobrepõe. Por exemplo, quando o anterior Rei faleceu e faltavam disputar três jornadas, o campeonato simplesmente acabou como estava”, retrata-nos Luís Viegas.

“O futebol tailandês tem acompanhado a realidade asiática e cresceu consideravelmente nos últimos anos. O investimento tem aumentado, atraindo melhores jogadores estrangeiros, alguns com salários muito acima do que se paga em média na Europa, mas levando também ao desenvolvimento dos locais. O jogador tailandês é, regra geral, muito dotado tecnicamente, mas não tão bom em termos táticos e físicos. E essas lacunas estão a ser corrigidas. Depois, e tirando a questão do calendário, porque sempre que há uma competição de seleções a competição para, o campeonato é bem organizado. Por exemplo, aqui todos os jogos da primeira e da segunda divisão têm transmissão em direto”, diz-nos ainda.

Para o futuro, fica a intenção do Bangkok United de começar a lutar por títulos, uma clara mudança de paradigma desde que a equipa técnica portuguesa chegou ao clube em 2014. Título que foge a uma equipa da capital Tailandesa desde o triunfo da Bangcok University, antiga designação do Bangcok United, em 2006: “Quanto aos objetivos do clube, a intenção passa por lutar por títulos. Em 2014, o Bangkok United era um clube que lutava apenas por não descer. Em 2015 ficámos em quinto e desde então nunca falhámos o pódio. Em 2016 fomos vice-campeões e no ano passado disputámos o play-off da Liga dos Campeões e fomos finalistas da Taça. E estes resultados têm sido conseguidos com um futebol que praticamente toda a gente considera como o mais atraente e o mais desenvolvido do campeonato”, conclui-nos ainda um orgulhoso Luís Viegas. Nós por cá estaremos para o noticiar, Luís.