Prolongamento
Os jogos de pré-época tomaram o lugar das corridas nos montes de antigamente
2017-07-22 20:00:00
O Bancada falou com especialistas em fisiologia e em treino para perceber o que é uma pré-época ideal

Fazer jogos de pré-época com poucos dias de descanso entre eles tem um aspeto positivo: o jogo tem tudo. “Tem a carga tática onde os jogadores observam o transfer feito dos outros treinos e as intensidades física e mental necessárias aos jogadores numa fase de preparação.” No entanto, pode haver um problema: jogar sobre o cansaço pode dificultar os movimentos dos jogadores que se veem inábeis para cumprir o que lhes é pedido e serem abalados na confiança.

As questões levantadas no planeamento das pré-épocas das equipas não se esgotam com o cansaço que possa resultar da realização de jogos com espaços temporais reduzidos entre eles, mas surgem também com as poucas cargas administradas aos jogadores que jogam menos nesses mesmos jogos de pré-época, explicou ao Bancada, José Soares, doutorado em Fisiologia do Exercício e antigo fisiologista do Boavista e da Seleção Nacional de Futebol.

“Do ponto de vista físico acho que tem alguns inconvenientes, a realização de jogos em dias consecutivos, porque as cargas são muito heterogéneas. Ou seja, há jogadores que jogam muito tempo e para eles é um bom treino, mas há jogadores que não jogam o mesmo tempo”, alertou.

Este desequilíbrio das cargas durante os jogos tem de ser compensado depois nas sessões de treino como sugere o Dr. José Soares: “Portanto, para eles, ou fazem um treino complementar para além do jogo ou então há um grande desequilíbrio na aplicação das cargas durante estes dias”, sublinhou o professor Catedrático de Fisiologia.

José Soares. Professor Catedrático de Fisiologia na Faculdade de Desporto (FADEUP) da Universidade do Porto

O jogador do Sporting, Rodrigo Battaglia explicou no final do jogo que os leões perderam por 3-0 frente ao Valência CF que uma das razões para o jogo menos conseguido da equipa estava no facto de os jogadores estarem cansados depois de Sporting ter jogado diante do Fenerbahçe no dia anterior

“É normal estarmos cansados, jogámos contra uma equipa muito boa ainda ontem. Estamos cansados, mas temos que trabalhar para melhorar”, afirmou o médio argentino.

A decisão das equipas em realizarem vários jogos em poucos dias justifica-se pelo facto de os treinadores terem nos jogos todas as componentes necessárias aos jogadores em processos de preparação, segundo a explicação do professor Luís Campos, atual conselheiro no Lille OSC, da Primeira Liga Francesa.

“Responder porque atualmente se utilizam os jogos é muito simples. Porque o jogo tem tudo. Tem a carga tática onde os treinadores observam o transfer dos outros treinos sem ser jogo onze para onze, tem as intensidades física e mental (que vai aumentando consoante o nível dos adversários) e tem outros aspetos que não podem ser conseguidos nos treinos diários”, explicou.

Muitas vezes se cria a noção de que as equipas que realizam mais jogos em poucos dias ou as equipas que se sobrecarregam fisicamente na pré-época possam vir a ter vantagens em termos físicos a meio da época e essa é uma noção que não faz sentido para o Dr. José Soares.

“Isso de se jogar mais agora para depois estar mais preparado fisicamente é um mito. É a mesma coisa do que se eu hoje comer um arroz de frango e daqui por três meses me estar a sentir mal e dizer que é por causa do arroz de frango. Não tem lógica nenhuma.

“Porque a ideia de que se eu correr muito, ou treinar muito ou se fizer três jogos seguidos, ou quatro ou cinco na pré-época que isso depois se vai refletir em janeiro isso é um absurdo.

“Aquilo que se faz na pré-epoca, obviamente alterando as percentagens, deve ser mantido durante a época para que não se percam os efeitos”, afirmou.

Curiosamente, o aspeto negativo no que concerne à realização de jogos com poucos dias de descanso entre eles, sem dar tempo aos jogadores de recuperarem do esforço físico, é do foro psicológico, alertou Paulo Sampaio, mais conhecido no mundo do futebol por Rifa e membro da equipa técnica de Carlos Carvalhal no Seffield Wednesday.

“O problema de os jogadores irem para estes jogos de preparação cansados pode limitá-los fisicamente e nesse caso não conseguirem fazer as coisas como lhes pedimos e podem perder confiança. Daí não ser positivo os jogadores andarem a jogar sobre o cansaço, pensamos nós”, alertou.

O Sheffield Wednesday está a preparar a nova época em Portugal e Rifa explicou ao Bancada as ideias da equipa técnica na calendarização dos jogos ao não pretenderem sobrecarregar os jogadores mesmo que os jogos sejam realizados sem muitos dias de descanso. O que fazem é alternar o nível de dificuldade dos adversários para que nos jogos mais fortes seja utilizado o onze que à partida será o mais utilizado e no jogo seguinte rodar a equipa.

Paulo Sampaio (Rifa) com a Taça de Portugal que venceu ao serviço do Sporting

“Para dar um exemplo. O Sheffield Wednesday jogou contra o Portimonense. Jogámos com o nosso melhor onze, com alguns condicionalismos, há algumas mazelas a recuperar, e ontem frente ao Farense já jogaram tês ou quatro miúdos dos juniores e jogaram, digamos, as segundas opções, e amanhã com o Vitória de Setúbal já vai jogar o onze mais forte outra vez. O onze que será a ideia mais próxima que temos para o Championship”, revelou o antigo observador do Benfica, Sporting e Olympiacos.

Segundo Luís Campos, “existem alguns princípios do treino que se modernizaram e como o treino é uma ciência e, como tal, baseada em outras ciências que estão todos os dias a progredir (biologia, fisiologia, psicologia, etc…) então o treino também deve progredir.”

Já lá vai o tempo em que as primeiras duas semanas das pré-épocas eram feitas nos montes a correr como lembra Rifa: “Sou do tempo em que passávamos 15 dias nos montes sempre a correr”, diz, acrescentado de imediato: “Isso agora é perda de tempo.”

“Quando fazes um treino a pensar na organização de jogo da tua equipa a componente física está sempre lá. Se quiseres treinar a velocidade podes estar ao mesmo tempo a organizar a tua equipa sem perderes tempo.

“Desde o primeiro dia da pré-época que começamos a trabalhar a organização da equipa, em termos ofensivos e defensivos. Trabalhar posicionamentos, comportamentos e depois as cargas físicas são consoante a vertente do treino que queiras dar”, resumiu, reforçando a ideia de que é possível treinar as ideias que se pretendem ver na equipa e a componente física de forma conjunta.

“Desde o primeiro dia que treinamos com bola. Para nós não faz sentido andar a correr no monte quando podes estar a treinar a componente física, da robustez, ao mesmo tempo que treinas as ideias de jogo e a organização da tua equipa. Nós só treinamos comportamentos para o jogo. Posicionamentos”, explicou.

E foi a pensar nos comportamentos dos jogadores nas partidas que nos surgiu uma outra questão: o entendimento entre os jogadores dentro do campo. Será que se trabalham, por exemplo, as duplas que se formam nas equipas (centrais e avançados, por exemplo)?

No Sheffield Wednesday é algo levado em conta como explicou ao Bancada, Rifa: “Sim, temos à partida uma ideia pré-concebida dos jogadores que farão parte do onze e insistimos na dupla de centrais que achamos que será a mais utilizada. Temos o cuidado de fortalecer o sincronismo entre as duplas”, reforçou.

E no ataque? Como se reforça o entendimento entre Jonas e Seferovic, ou entre Bas Dost e Doumbia ou, ainda, entre Soares e Aboubakar?

O prof. Luís Campos é agora conselheiro do Lille OSC

Para Luís Campos as duplas dentro das equipas são como os casamentos. Há uns que cedo se percebem que duram para a vida e outros que não passam da lua-de-mel: “Eu comparo as duplas que se formam aos casamentos. Se não casarem bem, se não se complementarem e entenderem não funciona. Às vezes estes casamentos são mágicos. Como o daqueles casais que percebes rápido que foram feitos um para o outro. Claro que eu acredito no treino e que quanto mais vezes eles treinarem juntos melhor funcionam. Embora para mim também nestas duplas, a complementaridade é essencial.

“Ou seja, a especificidade da dupla de centrais e da dupla de atacantes para que funcione pressupõe um bom "casamento". É importante treinarem juntos, mas se não se complementarem e entenderem, o treino vai ajudar, mas não vai só por si fazer com que haja esse bom casamento”, afirmou.

Percebemos que as coisas em termos técnico-táticos podem não ser lineares. Pedimos então ao especialista em fisiologia do treino, o Dr. José Soares, para nos traçar um plano para uma pré-época ideal em termos físicos e foi-nos explicado que uma pré-temporada se divide, idealmente, em cinco fases:

“Numa primeira fase há que fazer uma boa observação aos jogadores e fazer um diagnóstico. É preciso perceber as características de cada jogador com quem vamos trabalhar.

“Depois, a segunda fase é ter o mapa das capacidades dos jogadores e fundamentalmente dos riscos de lesões que podem ocorrer a cada jogador.

“A partir daí construir planos individuais de compensação ou de minimização do risco. É um pouco como quando vai ao médico e faz análises e ser medicado consoante os resultados. É exatamente a mesma coisa.

“A terceira fase passa por fazer programas individuais que sejam adequados às particularidades de cada jogador. Respeitar as individualidades.

“Depois, e porque não se pode trabalhar apenas a nível individual numa equipa de futebol, há que, na quarta fase, criar programas genéricos para toda a equipa.

“Neste quarto ponto, há uma componente que na minha perspetiva se deve reger pela robustez dos atletas. Ou seja, tentar que os atletas sejam o mais robustos possível. E é nesta fase que vê um retornar aos métodos antigos.

“Se reparar há equipas que voltaram a esses métodos. De irem correr para os matos ou subirem as bancadas dos estádios. Back to basics. Olhe o preparador físico do Real Madrid, um italiano, aposta muito nisso. Em Itália faz-se a mesma coisa, se for ao Bayern vê também isso. E é na perspetiva da robustez física.

“A quinta e última fase é dedicada ao treino físico específico para o futebol.

“Isto, para mim, é a pré-epoca: observar e avaliar, fazer o diagnóstico e depois fazer a prescrição. Primeiro individual e depois por grupo no sentido de dar uma robustez física ao jogador”, finalizou.