“Ficaram com o dinheiro todo dos sócios. Nem quero saber mais do Estrela para nada. Nem quero falar disso. Não me pergunte mais nada.” Foi desta forma que o Bancada foi recebido por um antigo sócio do Clube de Futebol Estrela da Amadora quando entrou num café nas imediações dos Estádio José Gomes para perguntar onde podia encontrar antigos sócios do extinto clube com o objetivo de perceber um pouco mais sobre o que esteve na génese do desaparecimento de uma instituição fundada em 1932.
“Você está feito com a gente que lá está agora, é? Se não se identifica não aceito falar consigo. É que aparece aí muita gente a mando deles. É melhor ir-se embora”, aconselhou, ao Bancada, outro antigo sócio do Estrela da Amadora que estava no local, virando imediatamente as costas.
Com o ambiente pesado e a poucos minutos da hora de almoço decidimos abandonar o local, onde não nos sentíamos bem-vindos, e repensar a intenção de perceber o que ia na alma dos antigos sócios do histórico clube da Amadora.
O ponto da situação era este: tínhamos um clube, fundado em 1932, que venceu a Taça de Portugal na época 1989/90 e participou na antiga Taça das Taças, que foi casa de treinadores como Fernando Santos e Jorge Jesus, que chegou a ter escalões de formação tão fortes como o Sporting e o Benfica de onde saíram jogadores como Jorge Andrade, Dimas, Paulo Bento e muitos outros e que de um momento para o outro fechou portas. Simplesmente acabou.
Depois de vários anos a percorrer um caminho pantanoso, o clube, na pessoa do então presidente, António Fernandes Oliveira, decidiu declarar-se insolvente em setembro de 2009 alegando, em síntese, que se encontrava “impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações”, uma vez que não detinha “meios próprios ou de crédito”, podia ler-se na sentença emitida pelo Juízo do Comércio, a que a Agência Lusa teve acesso e que posteriormente divulgou.
Segundo o mesmo documento, as dívidas do Clube de Futebol Estrela da Amadora totalizavam cerca de 20 milhões de euros, tendo, o Estrela, bens imóveis no valor de 5.526.510,00 euros.
Só para contextualizar. Foi na época 2008/09 que o Estrela da Amadora participou pelo último ano na primeira liga tendo acabado em 11.º lugar, mas com o carimbo da despromoção, estampado pela Liga de Clubes, por motivos administrativos. Mas já lá vamos.
Ponto de situação feito e depois de calculados os riscos, decidimos que não era possível partir sem tentar ouvir, da boca dos próprios, o que sente um sócio ao assistir à morte lenta e anunciada do clube ao qual dedicou tantos anos.
Entrámos no café “Del’Negro”, precisamente do lado oposto da estrada que separa a entrada deste estabelecimento à antiga entrada para os sócios do Estádio José Gomes. O ambiente pareceu mais cordial e familiar em comparação ao anterior e aproveitámos para nos meter na conversa de dois septuagenários que comentavam as notícias dos jornais diários ao balcão.
“O Estrela? Eu fui sócio do Clube de Futebol Estrela da Amadora, agora temos aí outro clube, mas desse ainda não sou sócio”, explicou logo Luís Segadaes, 70 anos e reformado, que fez questão de nos mostrar o antigo cartão de sócio com o número 209.
Cartão de sócio do antigo Clube de Futebol Estrela da Amadora
A mágoa pelo que aconteceu sente-se pelo tom da conversa que se altera e as situações poucos claras que envolveram todo o processo que culminou com a declaração de insolvência obrigam ao recato nas palavras.
“Houve muitas coisas por trás disto sabe? Tivemos aí uns quantos que ficaram com o dinheiro todo. Vendiam os jogadores para certos clubes e ficavam com o dinheiro”, lamentou o senhor Segadaes.
Mas que coisas foram essas?
O processo de insolvência, assinado em outubro de 2008, do Clube de Futebol Estrela da Amadora foi iniciado pelo, então, presidente do clube, António Oliveira, quem o Bancada tentou contactar até há hora da publicação deste artigo, mas sem sucesso. Contudo, tivemos acesso ao Plano de Insolvência do clube e no documento pode ler-se que o motivo que guiou a agremiação à inevitável insolvência resulta de “cerca de 12 anos de inadequada e megalómana gestão.”
Ora, entre 1996 e 2008 os presidentes da direção do clube do concelho da Amadora foram: José Maria Salvado, Fernando Pombo e António Fernandes Oliveira.
As tentativas em contactar os envolvidos saíram infrutíferas e os esclarecimentos sobre o que foi feito nos tais “12 anos de gestão megalómana e inadequada” ficaram por apurar.
No entanto, e curiosamente na altura que trabalhávamos nesta reportagem, a notícia da condenação de José Maria Salvado por peculato e falsificação de documentos é veiculada pelos órgãos de comunicação social. O antigo presidente do Clube de Futebol Estrela da Amadora foi condenado, pelo Juízo Central Criminal de Lisboa, a seis anos e três meses de prisão por crimes cometidos na altura que liderava a direção do clube amadorense.
Deixemos de lado, por instantes, as questões administrativas, até porque “será muito difícil chegar à verdade…ela existe, mas é difícil lá chegar”, como nos elucidou o presidente do Clube Desportivo Estrela, e antigo sócio do Clube de Futebol Estrela da Amadora, António França, e debrucemo-nos sobre o plano desportivo.
Quem melhor que Lázaro Oliveira para nos revelar o que se passou no clube durante os anos finais. Lázaro chegou ao Estrela em 1997 pelas mãos do atual selecionador nacional, Fernando Santos, e por lá ficou até 2009, o último ano do clube na primeira liga. Recorda-se?
O atual treinador do Farense coincidiu, portanto, no clube, com os “12 anos de gestão inadequada e megalómana” e recorda que “os jogadores se iam apercebendo do caminho que o clube seguia”, e lembra que “nesses anos era normal acabarem as épocas com um ou dois meses de ordenados em atraso.”
“Mas ninguém ligava muito, até porque as situações lá se iam resolvendo. Por vezes com cheques pré-datados, mas a verdade é que se iam resolvendo”, admite, mas ressalva: “Eram sinais do que estava para vir.”
As notícias dos atrasos no pagamento dos salários aos jogadores “só chegavam aos sócios por vias não oficiais” e, portanto, a confrontação com os responsáveis pelo clube foi sendo adiada.
Como antigo sócio do clube insolvente, António França lembra que nos últimos anos da era António Oliveira, “os sócios estavam bastante limitados nas intervenções das Assembleias Gerais do clube.”
“O Oliveira tinha uma empresa de segurança, e nas assembleias tinha lá os “capangas” que não deixavam ninguém falar. E essa gente nunca ninguém via nos jogos. Só apareciam nas assembleias.”, reforça.
“Aliás, quando nos apercebemos que o clube estava a caminhar por vias que não interessavam foi solicitada uma Assembleia Geral Extraordinária, que foi liminarmente recusada com o argumento que as assinaturas que haviam sido recolhidas pelos sócios eram falsas.”
“Portanto todas as intenções que tínhamos em pôr tudo em pratos limpos e eventualmente pedir a destituição dos órgãos sociais foram-nos retiradas. Foram dois/três anos de muita neblina, a partir de 2007, sensivelmente”, recorda.
Por essa altura a situação do plantel agravou-se e o que, até à data, se ia resolvendo com maior ou menor dificuldade deixou de ser resolúvel tornando-se no maior pesadelo para uma equipa de futebol: os problemas financeiros que afetam as famílias dos jogadores que destes dependem.
“O pior foi quando descemos da primeira para a segunda liga em 2002/03, era o Estrela gerido por uma comissão executiva liderada pelo Jaime Salvado, e aí chegámos a estar com cinco meses de ordenados em atraso, mas como tínhamos um projeto para regressar à primeira liga continuámos a jogar”, recorda Lázaro.
“Até que tivemos que meter o clube em tribunal, mesmo continuando a jogar, acho que isto foi inédito, e ganhámos a ação. Começámos essa época com o Jorge Jesus que saiu já no final da temporada e veio para o seu lugar o João Alves. E nessa altura começou a perceber-se que o clube estava em sérias dificuldades”, que foram mais uma vez disfarçadas pela subida ao principal escalão do futebol português.
Este foi, aliás, um dos momentos mais importantes e felizes vivido por António França como sócio do clube. Sim, o atual presidente do Clube Desportivo Estrela, também foi muito feliz no Jamor, no verão de 1990, naquela que será para sempre a grande conquista do antigo Estrela da Amadora, a Taça de Portugal ganha numa finalíssima frente ao Farense de Paco Fortes. Paulo Bento e Ricardo Lopes marcaram os dois golos da vitória tricolor por 2-0. E foi muito feliz nas duas partidas no Estádio José Gomes, frente ao Neuchâtel Xamax e diante o RFC Liège, ambas para a extinta Taça das Taças em 1990. E ainda recorda a inauguração da iluminação artificial do José Gomes numa partida frente ao Schalke 04 da Alemanha. “Mas a subida de divisão em 2003 teve um sabor especial, talvez por ser mais consciente em relação à realidade do clube”, sublinha.
As descidas e subidas sucederam-se nos anos que se seguiram e os problemas a serem, consecutivamente, empurrados com a barriga até se atingir o ponto insustentável em 2009/2010, quando os incumprimentos financeiros do Estrela culminaram com a descida de divisão por vias administrativas.
“As coisas foram-se agravando na era do António Oliveira, até não existirem mais soluções”, afirma Lázaro que por essa altura passou a assumir o papel de treinador principal depois de Lito Vidigal “ter batido com a porta”, por ver adiada a resolução dos “problemas diários que abalavam o plantel.”
“Foi uma altura complicada. Deparávamo-nos todos os dias com situações de jogadores sem dinheiro para comer. Ou tinham os senhorios à perna porque não conseguiam pagar as rendas. Todos os dias aparecia um problema novo. Mas tínhamos um grupo fantástico e os jogadores queriam acima de tudo valorizarem-se e entravam dentro do campo e esqueciam os problemas e jogavam ao seu melhor nível. Mas é evidente que não foi uma tarefa fácil. Muitas vezes durante a semana optávamos por não treinar porque os jogadores não tinham condições para isso”, revela o treinador de 49 anos.
Lázaro contou ao Bancada um episódio que se viria a revelar fatal nas aspirações do clube em manter as portas abertas por mais algum tempo. Na época 2008/09, em que o Estrela acabou num confortável 11.ºlugar, “havia um jogador que era o motor da equipa” e que tinha o FC Porto à perna: Silvestre Varela.
“O Silvestre Varela tinha uma proposta para sair para o FC Porto no início de janeiro, e depois de um jogo frente à Académica o presidente veio ter comigo é diz-me que íamos ficar sem o Varela e que o dinheiro a receber pela transferência iria ser usado para pagar a toda a gente”, porreiro, pensou o mister mais preocupado no bem-estar dos seus jogadores e das suas famílias e menos nos resultados desportivos que poderiam ser abalados com a partida de um dos melhores jogadores do grupo.
“Acontece que a notícia é publicada na primeira página do jornal A’Bola no dia seguinte, sem o FC Porto ter dado o aval para que tal acontecesse e abortou a transferência. Ficámos com o jogador, mas sem dinheiro para pagar à equipa”. Silvestre Varela acabaria por sair para o FC Porto no fim da época a custo zero e o clube acabaria por descer apesar do 11.ºlugar.
Torniquetes de uma das entradas para as bancadas do Estádio José Gomes
O Plano de Insolvência não foi aprovado em Assembleia de Credores em 24 de janeiro de 2011 onde os créditos reclamados e reconhecidos atingiram o valor 40.587.544,00 €, seriam necessários 2/3 dos votos emitidos, ou seja, 24.507.648,00 € de votos favoráveis. O valor total de 20.289.171,00 € foi inferior ao limite exigido. Pelo que se concluiu que era impossível aprovar o Plano de Insolvência.
Com o fim, do Clube de Futebol Estrela da Amadora, traçado reuniu-se um grupo de sócios com a designação de “Sempre Tricolores” que “não pretendendo ser revolucionário ou aplicar um golpe de estado, pretendia ter um papel ativo na vida do clube”, explica António França.
“Uma primeira solução passava por sermos uma alternativa às pessoas que lá estavam, cumprindo com todos os procedimentos estatutários, mas com a não aprovação do Plano de Insolvência partimos para a fundação de uma nova organização que continuasse os 79 anos de vida do Estrela, e assim foi. Partimos do zero.”
O Clube Desportivo Estrela foi fundado em 28 setembro de 2011 e a primeira atividade em que o clube participou, aconteceu na corrida de São Silvestre da Amadora, o que curiosamente coincide com o início da história do Clube de Futebol Estrela da Amadora, no qual o atletismo aparece como primeira modalidade.
E os planos para o futuro? Voltará a existir uma equipa de seniores?
“Se o Estrela tiver equipa de seniores outra vez eu volto logo. Aliás, nós vimos todos os fins de semana ver os jogos dos miúdos. Dos infantis aos juniores”, contou-nos o antigo sócio Luís Segadães.
Para o atual presidente do CD Estrela, “uma equipa de seniores é possível e expectável”, aliás, António França afirma “que mais que um desejo, o projeto para ter uma equipa de seniores é uma obrigação”, há, no entanto, que resolver “as limitações dos espaços físicos”, uma vez que “a utilização do Estádio José Gomes está limitada pelo que foi estabelecido com a massa falida”, explicou.
Por enquanto vai-se realizando o “trabalho de sapa”, e o presidente António França faz questão de acentuar o facto que o trabalho não é exclusivamente dele: “Sou um colaborador num grupo onde há muita gente que normalmente não aparece, mas que faz parte da estrutura e em certos casos até têm uma carga de trabalho superior à minha.”
“O objetivo, no momento, passa por recolocar as várias equipas dos escalões de formação de volta a competir nas divisões nacionais. E o caminho vai ser feito através das subidas até às divisões nacionais. Não há outra forma”, refere-se àquilo que é o trabalho diário feito com as sete equipas que jogam com o novo emblema do CD Estrela.
O presidente do novo CD Estrela, António França
Pois bem. Analisado o processo de insolvência, percebidos os dramas da equipa de futebol nos anos finais do clube e estabelecidos os planos para o futuro do novo CD Estrela, o Bancada não queria deixar a conversa com o presidente António França sem perceber o que será feito com os sócios que estão muito magoados com o passado. Recordar-se-á, o leitor, da forma como fomos recebidos no início da nossa reportagem.
“Em relação à massa associativa do Estrela, tenho uma opinião que poderá provocar ondas de choque: enquanto sócio, durante os muitos anos que fui sócio, nunca acreditei muito na massa adepta do Estrela da Amadora”, explicou António França, medindo as palavras que utilizava.
“Por uma razão muito simples: existiam diversos grupos de sócios. Existiam aqueles que como nós só queríamos saber do Estrela e não temos interesse em mais nenhum clube. E esses estão do nosso lado. Haviam, depois, aqueles que eram sócios de dois clubes. E haviam ainda aqueles que eram sócios do Estrela, mas que eram adeptos de outros clubes, e que eram a grande maioria.”
“Dessa fatia significativa dos associados do Estrela, haviam muitos que eram estrelistas por conveniência, apareciam cá quando as suas equipas cá jogavam e prevalecia a vontade que os outros clubes vencessem. Esses acredito que estejam divididos e relutantes em abraçar o novo CD Estrela.”
Resta aos amantes do futebol português esperar que, um dia, situações como a do antigo Clube de Futebol Estrela da Amadora cessem de ser uma realidade. Como foram os casos de clubes espalhados por todo o país e como é o caso de tantos outros que veem pairar no ar o espetro do fim de vida depois de anos e anos de história. Os resultados desportivos, não são para aqui chamados, mas sim o que estes clubes significam para as comunidades envolventes e para a história do desporto, que é também a história do país.