Prolongamento
Miguel Vítor: Benfica, arma numa loja de roupa e peixe podre
2018-03-30 17:30:00
No Benfica, chegou a ser visto como o menino do futuro.

De Torres Vedras para Lisboa, de Lisboa para a Grécia – com um cheirinho a Liga Inglesa – e dos gregos para a terra prometida. É lá, em Israel, perto da Faixa de Gaza, que está Miguel Vítor. Ele que contou, ao Bancada, que não precisou de Gaza para andar metido em grandes guerras. Ele que é herói, em Israel. Ele que, no Benfica, chegou a ser o menino do futuro. Tudo isto depois de armas apontadas numa loja de roupa e de peixe podre num banco de suplentes. Mas já lá vamos.

Antes, conheçamos Miguel Vítor. O central natural de Ponte do Rol, no concelho de Torres Vedras, assume as dificuldades de falar de si próprio, mas define-se como “uma pessoa calma e tranquila” e, no balneário, reconhece que tenta ser assertivo, quando fala, e que treinadores e colegas sempre lhe reconheceram um perfil de líder. Mas falemos de bola. “Sou um central agressivo, rápido quanto baste e bom na antecipação. Apesar de não ser alto, sou bom no jogo aéreo ofensivo e defensivo”, detalha, ao Bancada.

Tanto tempo no Benfica, caro Miguel... tanto tempo...

Miguel Vítor chegou cedo ao Benfica. No clube desde os 12 tenros aninhos, o defesa entrou na equipa principal com 18 anos e não demorou a impressionar. “Se, no primeiro ano de sénior, jogas logo mais de 20 jogos a titular, ficas com a sensação de que as coisas só podem melhorar. Nessa altura, claro que fiquei com muita ilusão. Com o sonho de continuar a progredir. Senti que, nos anos seguintes, poderia dar continuidade”. Mas não deu. Apesar do bom primeiro ano, a utilização intermitente fez de Miguel Vítor uma figura descartável, apesar do potencial que demonstrava.

Temos um central agressivo, líder – apesar da tenra idade – e com produto da formação. Ingredientes suficientes para se fixar. O que falhou? “Foi um misto de várias coisas. Uma delas é que, hoje em dia, os jogadores saem da formação mais preparados. Na minha altura, lembro-me de me ter estreado com 18 anos e passei do campeonato de juniores para a Liga dos Campeões, o que é um grande salto. As equipas B vieram dar uma grande ajuda e isso é benéfico”, analisa, antes de lembrar, ainda, a grande concorrência: “Na altura, havia grande competitividade. Luisão, David Luiz, Garay... internacionais pelo Brasil e pela Argentina”. Se fosse hoje, teríamos Miguel Vítor com as oportunidades de um Lindelof ou de um Rúben Dias? “É difícil dizer. Ninguém sabe o que poderia acontecer. Mas que hoje em dia mudou o paradigma, isso sim”, dispara.

Questionado sobre se acabou por “perder” demasiado tempo de carreira a lutar pela afirmação no Benfica, Miguel Vítor revela que chegou a falar da saída do clube, mas que algo o convenceu a ficar. “Sim, talvez pudesse ter saído mais cedo para jogar”, começa por reconhecer, antes de contar: “Cheguei a falar disso, mas, nessa altura, disseram-me que eu teria mais oportunidades e que era importante na equipa. Talvez a minha decisão pessoal tivesse sido sair. Teria sido benéfico”. Mas uma coisa é certa: o rapaz foi campeão nacional e venceu duas Taças da Liga. Isso ninguém lhe tira.

O maior daquela aldeia

Pausa na história para um momento lúdico. Desafiámos Miguel Vítor para uma série de perguntas de resposta rápida. O central aceitou, com simpatia, mas fez duas batotas: vários nomes na primeira e resposta vaga na última. Vá, 4 em 6 não é nada mau, Miguel.

Melhor treinador: Jorge Jesus, Paulo Sousa e Quique Flores.
Melhor jogador com quem jogou: Pablo Aimar.
Adversário mais difícil de marcar: Kun Aguero.
Melhor momento da carreira: Ser considerado o melhor jogado da Liga Israelita.
Pior momento da carreira: É o atual, com a lesão no joelho.
Principal objetivo por alcançar: Penso, sobretudo, em recuperar e, depois, manter-me no nível a que cheguei.

Plot twist: Miguel Vítor acabou mesmo por sair do Benfica. Foi para o Leicester, na altura ainda na Segunda Liga Inglesa, por empréstimo. Era com o objetivo de ficar ou de fazer um bom ano e voltar à Luz? Um bocadinho dos dois. “Fui com as duas coisas no pensamento. O primeiro pensamento seria poder voltar ao Benfica, mas, se não desse, sabia que o Championship tinha boa visibilidade. O Leicester queria continuar comigo, mas os clubes não chegaram a acordo”, recorda.

Depois de mais duas temporadas assim-assim, no Benfica, o central saiu mesmo. Sem “v” de volta. Na cidade costeira de Salónica, no Norte da Grécia, Miguel Vítor conquistou os adeptos do PAOK. Uma média de 37 jogos por temporada, em três anos, são um bom cartão de visita. E olhem que conquistar aqueles gregos não é fácil para ninguém: “O segredo é o trabalho. E depois também há a minha grande entrega e os adeptos reconhecem isso”.

Próxima paragem: terra prometida. No Hapoel Beer’Sheva, Miguel Vítor pousou no meio de um país com problemas geopolíticos e religiosos profundos. A cerca de 50 quilómetros da Faixa de Gaza, o português aterrou num clube que lhe deu competições europeias. Que lhe deu folga financeira. Que lhe deu, acima de tudo isto, reconhecimento. Miguel Vítor foi, no ano passado, o melhor jogador do campeonato de Israel. Sim, um destaque que costuma ir para avançados e extremos foi para um defesa central. Miguel é o maior lá da aldeia e, não fosse a lesão no joelho, e já estaria numa segunda temporada de sucesso.

Mas como nem tudo são rosas, o português reconhece que estar em Israel acaba, provavelmente, por fechar a porta a outras coisas. A seleção, por exemplo. “Há alguns anos era um sonho. Hoje em dia é mais complicado, porque estou num campeonato com pouca visibilidade. Continuando em Israel, dificilmente vou lá chegar”. Porquê esta opção, então? “Tentei dar mais enfâse à parte financeira. Tenho procurado isso e estar em equipas de títulos e de competições europeias”, explica, contando que até as filhas já estão perfeitamente adaptadas: “Renovei e tenho mais dois anos de contrato. Neste momento, penso ficar estes dois anos, mas nunca se sabe. Sinto-me muito acarinhado e valorizado. As minhas filhas já falam hebraico. Penso mais na minha família”.

Armas em lojas e peixe podre

Estava prometido. Perguntámos a Miguel Vítor se não tinha histórias bizarras, tão comuns entre os portugueses que embarcam para realidades muito diferentes das de Portugal. Pedimos desculpa, mas os relatos vão ficar totalmente a cargo do jogador português. Não nos atreveríamos a estragar isto. Por nada. Dá-lhe, Miguel.

“Tenho uma em Israel. Viajei para assinar, no final de junho. Chegámos numa sexta-feira ao final da tarde e eles, a partir de sexta às 15h, é tipo dia santo e está tudo fechado. As minhas malas e da minha mulher não chegaram, porque tinham ficado perdidas na escala em Madrid. Ficámos sem roupa, porque as lojas só abriam no sábado à noite. No sábado, a seguir ao jantar, lá fomos a uma loja de roupa. Entrámos e vemos uma pessoa pendurada, com uma metralhadora. Mas toda a gente reagia naturalmente. O meu empresário foi perguntar se era normal e o senhor da loja lá explicou que os militares, à sexta, levam as armas para casa, mas são obrigados a não as deixarem em casa. Têm de andar com ela. 'Assim ainda estão mais protegidos', disse-nos ele”.

A outra história tem contornos bem atuais. Certamente já ouviu falar do presidente do PAOK que entrou com uma arma no relvado. Pois bem, Miguel Vítor já andou por lá.

“Tenho outra na Grécia, que tem sempre grandes ambientes, mas também alguns excessos. Mas dentro do campo dá uma adrenalina fantástica. Foi um PAOK-Olympiacos, em nossa casa. O estádio todo vermelho, com 15 mil tochas. Um ambiente espectacular. Foi o jogo com melhor ambiente que já vivi”, conta, ao Bancada. Mas calma, que o Miguel tinha-se esquecido de um pormenor: “Antes do jogo, meteram peixe podre no banco do Olympiacos e o jogo começou atrasado”.