Prolongamento
Jogou na Liga dos Campeões, viajou pelo mundo e voltou a Vila Franca de Xira
2018-04-19 21:30:00
A história da carreira de Carlos Fernandes, um guarda-redes que "abriu as portas da Roménia a muitos portugueses"

É um homem da terra. Apesar de ter nascido em África (tem nacionalidade angolana), Carlos Fernandes cresceu em Vila Franca de Xira, no distrito de Lisboa, e foi lá que se tornou jogador de futebol. Depois de uma carreira de sucesso, tendo chegado à Primeira Liga e ao futebol internacional. Jogou na Liga dos Campeões contra craques como Ronaldo – o brasileiro -, Roberto Carlos, Raúl, Cannavaro, Ruud van Nistelrooy ou David Beckham, representou equipas de cinco países diferentes e no início desta época, depois de já se ter afastado dos relvados, regressou ao Vilafranquense, emblema onde se formou, para jogar no Campeonato de Portugal e a experiência não podia estar a ser melhor, com a equipa a lutar pela subida à Segunda Liga.

Ao Bancada, Carlos Fernandes confirmou que está muito satisfeito com o regresso ao Vilafranquense. Com 38 anos, o guarda-redes internacional por Angola (jogou duas Taças das Nações Africanas) mostrou-se muito feliz com que tem vindo a ser feito pela equipa principal do Vilafranquense. “Não podia pedir melhor. Está a correr bem, muito bem. Estamos prestes a conseguir o objetivo, disputar o playoff. Se acontecer, é inédito para a cidade. Poder regressar e estar a ajudar esta equipa neste feito inédito é muito bom e gratificante”, começou por assumir Carlos Fernandes. O Vilafranquense ocupa o segundo lugar da série D do Campeonato de Portugal, apenas atrás do CD Mafra. Os primeiros de cada série apuram-se diretamente para o playoff de acesso à Segunda Liga, assim como os três melhores segundos. A uma jornada do fim, o Vilafraquense está perto de fazer parte desse lote de três equipas.

As botas e as luvas de Carlos Fernandes foram penduradas em 2016, depois da segunda temporada ao serviço dos angolanos do Recreativo da Caála. Nessa altura, chegou a receber algumas propostas de clubes da Primeira Liga de Portugal, mas acabou por rejeitar por razões financeiras e contratuais. “Quem passa muito tempo lá fora fica mal habituado em relação a salários e contratos. Na altura, depois de ouvir algumas propostas, decidi abandonar [a carreira de futebolista]. Decidi que tinha chegado a hora de pendurar as botas. Mas tive amigos, como o Rodolfo Frutuoso [presidente da SAD do Vilafranquense] e o Vasco Matos [treinador da equipa principal], que me convenceram e decidi voltar”, explicou.

Vasco Matos é o atual treinador de Carlos Fernandes. Conhecem-se há largos anos, quando foram colegas no Campomaiorense. Vasco, formado no Sporting, terminou a carreira em 2016, no Vilafranquense, e dedicou-se à carreira de treinador. O regresso de Carlos ao clube não aconteceu por acaso – a relação entre as duas partes é longa e forte. “Soubemos que o Carlos estava disponível. Na altura, eu não era o treinador principal, mas tinha uma relação próxima com o Carlos, conhecemo-nos bem. Ele já tinha estado a treinar do clube numa altura em que a carreira dele estava parado e as pessoas conheciam-no. Ele já tinha relação com a estrutura”, contou Vasco Matos ao Bancada.

“Já havia jogadores que o conheciam do tempo em que ele treinou dois ou três meses no clube. Ele já conhecia a dinâmica do clube. Foi tudo natural, naquele clube também é muito fácil. É um clube que recebe toda a gente bem, com um grupo forte e onde é fácil ser integrado. O Carlos não teve dificuldade nesse aspeto”, assegurou.

Carlos Fernandes ao serviço do Vilafranquense (foto: Facebook Vilafranquense)

A escada subida até à Liga dos Campeões

Depois de completar a formação no Vilafranquense, no final dos anos 90, Carlos Fernandes começou a dar nas vistas na equipa principal do clube na viragem do século. As boas exibições fizeram com que fosse contratado pelo Campomaiorense em 2001, mas nem tudo correu bem. “Não foi fácil. Lembro-me que quando fui para o Campomaiorense o clube fechou logo na primeira época. Eu não quis desistir do contrato e acabaram por me emprestar ao Amora, da 2ª B. Fui para lá e, a meio da época, quis desistir porque eles não me pagavam, estive quase seis meses sem receber e estive seis meses sem jogar. Foi o Diamantino Miranda, que tinha sido meu treinador no Campomaiorense, que me convidou para ir para o Felgueiras com ele. Aceitei logo, mas estava com 92 quilos. Em 35 jogos, fiz 34. O único que falhei foi contra o Penafiel, no Bessa. Na época a seguir vou para o Boavista.”

Nos nortenhos, Carlos Fernandes realizou 23 partidas em 2004/05 e 13 na primeira metade de 2005/06. Em janeiro saiu de Portugal pela primeira vez para reforçar o Steaua Bucareste, mas não teve muito voto na matéria. O valor da transferência convenceu o Boavista de tal forma que o guarda-redes foi praticamente ‘obrigado’ a trocar Portugal pela Roménia, mesmo sendo aconselhado a não o fazer por um craque chamado João Vieira Pinto (o melhor jogador com quem Carlos Fernandes partilhou o balneário, segundo o próprio). “Foi tudo muito rápido, nem tive tempo para pensar. O Boavista estava a atravessar uma situação difícil e precisava de vender. Lembro-me que foi a seguir a um jogo com o FC Paços de Ferreira, tivemos um treino de manhã, de recuperação, e fui para o hotel e tinha que ir ou tinha que ir. Entrei no hotel às 11 da manhã, saí às 8 da noite, fui para Lisboa despedir-me da minha mãe para apanhar o avião. O João Vieira Pinto aconselhou-me a não ir para a Roménia, mas fui. Acabei por abrir as portas da Roménia a muitos portugueses”.

Em Bucareste, pegou de estaca. Foi titular de imediato e foi peça essencial na campanha do Steaua na Taça UEFA de 2005/06. Os romenos chegaram às meias-finais da prova eliminando o SC Heerenveen, o Betis e o rival Rapid Bucareste até lá. Depois, na ronda logo antes da final da segunda competição de clubes mais importante da Europa, o Middlesbrough foi mais forte e derrotou o Steaua Bucareste. Carlos Fernandes jogou todas as partidas e, no ano seguinte, o Steaua qualificou-se para a fase de grupos da Liga dos Campeões, onde a sorte ditou que os adversários fossem o Dynamo Kiev, o Olympique Lyon e um Real Madrid cheio de galácticos, mas isso não assustou Carlos Fernandes, mesmo que reconheça que nestes jogos é preciso outra atenção. “Depois de jogar o primeiro jogo, tem-se a clara noção que o que tem mais peso são os nomes. A imprensa faz o jogador. O Roberto Carlos tinha uma bomba do caneco. Cada vez que havia uma falta eu pensava 'lá vem ele'. Mas, se formos a ver, era um jogo normal. O que pesava ali era o nome, o que víamos na televisão. O foco nestes jogos tem de ser redobrado.”

Foi depois da receção ao Real Madrid, em outubro de 2006, que Carlos Fernandes passou por um dos momentos mais complicados no Steaua Bucareste. Os romenos perderam por 1-4 com os espanhóis e, no final do jogo, o polémico Gigi Becali, dono do clube, veio criticar a exibição do luso-angolano. Pior: Becali disse aos jornalistas que pagava 100 mil dólares ao clube que contratasse Carlos Fernandes. Esse momento foi decisivo para o guardião abandonar o Steaua Bucareste. Essa não foi a primeira vez em que Carlos Fernandes teve um episódio curioso com Becali. “Estava mortinho para me ir embora e ele oferece os 100 mil dólares para me ir embora. Na altura tinha o interesse do Betis e do Sevilha e estava sempre a chatear para me deixarem ir. Depois do meu primeiro jogo na Liga dos Campeões o meu valor subiu tanto que eles não quiseram abdicar disso. Ele [Becali], depois do jogo com o Real Madrid, teve essa saída infeliz em que disse que pagava 100 mil dólares a quem me levasse. Antes, quando chegámos às meias-finais da Taça UEFA, estávamos a festejar e molhei o fato dele com champanhe. Ele disse-me que o fato custava quatro mil euros e que lhe tinha estragado o fato”, revelou, contando ainda que, depois, foi treinar aos ingleses do Charlton Athletic, mas não conseguiu assinar porque o Steaua Bucareste não enviou o certificado internacional. Ainda assim, a relação entre Carlos Fernandes e o clube e os respetivos adeptos não ficou danificada. Continua a receber mensagens e a estar em contacto com elementos do Steaua e até foi convidado a ir ter ao hotel da equipa quando esta defrontou o Sporting, em Lisboa, no recente playoff de qualificação para a fase de grupos da Liga dos Campeões.

Carlos Fernandes, aqui a disputar um lance com Ronaldo, no famoso jogo contra o Real Madrid (STR/EPA)

Regressou ao Boavista, onde já tinha sido feliz, e surgiu a oportunidade de voltar a sair do país, desta feita para o Irão, onde representou o Foolad FC. Foi convidado por Augusto Inácio e aceitou “pelas questões financeiras e tudo mais”. Teve duas passagens e a primeira durou apenas um mês, regressando de seguida para uma temporada completa. Voltou novamente a Portugal para um ano na Primeira Liga com o Rio Ave e o Bucaspor, da Turquia, foi o destino seguinte. Passou ainda pelo Feirense e pelo Moreirense antes de, finalmente, jogar na liga do país que representa a nível internacional: Angola. Foi contratado pelo Recreativo da Cáala em 2015, jogando duas épocas na Liga Angolana. “Depois de jogar pela seleção, muitos clubes angolanos tentavam levar-me para lá e nunca conseguiram. Naquele momento, tinha ouvido bem das pessoas que lideravam o clube e acabei por aceitar e foi uma bela surpresa jogar naquela que, para mim, é a melhor cidade de Angola, que é Huambo.”

O futuro

O Vilafranquense está na luta pela subida à Segunda Liga e jogar num campeonato profissional com a camisola do clube onde se formou já não é um sonho para Carlos Fernandes. É mais uma “tarefa”. “Foi um sonho quando eu cá estive [antes]. Agora, penso que seja uma tarefa a que eu me propus quando cá cheguei e agora penso que, a acontecer, será uma realização pessoal. Melhor feito do que este nunca aconteceu neste clube”, frisou.

E a seguir a esta temporada? Para o guarda-redes de 38 anos, a visão que tinha para a própria carreira mudou depois do que tem vivido em 2017/18. Um dos maiores exemplos é o mais velho jogador da Primeira Liga: Quim, guarda-redes do Aves. “Pensava muito em acabar, mas depois desta época... Para mim é muito mais difícil jogar nestas divisões do que lá em cima. Com 38 anos, vejo que o Quim, que é mais velho, está em grande forma e joga na Primeira Liga. Enquanto tiver saúde, porque não continuar a acreditar que posso ajudar a minha equipa? É aquilo que gosto”, disse. O argumento é válido, Carlos. Sem dúvida.

Beckham (esquerda) e Carlos Fernandes (direita) no Steaua Bucareste-Real Madrid (foto: Robert Ghement/EPA)