Prolongamento
João Coimbra: o careca da mousse de chocolate e do esticanço valente com Simão
2018-05-02 21:00:00
Histórias com fartura: Mousses de chocolate, um Miccoli gordinho, crianças indianas e hotéis de luxo em favelas.

João Coimbra é, hoje, com quase 32 anos, um médio do Trofense, no Campeonato de Portugal. Há uns anos, era um rapazola que chegou a ser titular no Benfica, no meio de craques. Mas craques a sério. Trazemos-lhe o percurso deste médio e garantimos: há aqui matéria de rir e chorar por mais. Temos mousses de chocolate, um Miccoli assim um bocado para o gordinho (falaremos muito deste italiano), crianças indianas e hotéis de luxo em favelas. A sério, se puder, não desperdice a possibilidade de falar com João Coimbra. Se não puder falar, leia aqui. Já é bom.

Nem sabemos bem por onde começar, por isso vamos pelo princípio. Nada, com este jogador, aconteceu por acaso. Vejamos: Chama-se João Coimbra e é natural de Santa Comba Dão, que fica bem perto de Coimbra e na região centro. A região que este médio-centro ocupa no relvado. Estava tudo pensado desde a nascença. Tudo pensado.

"Não toquei na bola. E se calhar ainda bem"

Formado no Benfica, Coimbra chegou ao plantel principal com um ano de atraso. Se tem aparecido uns meses antes, teria sido campeão nacional, com Trapattoni. Foi pena, João, foi pena.

Primeira pausa na história. Ao Bancada, João Coimbra fala dos tempos do Benfica. Foi companheiro de Fabrizio Miccoli, o “pequeno bombardeiro”. João Coimbra conta-nos que, um dia, Miccoli estava de dieta imposta pelo clube. “No estágio, ele estava em dieta e eu estava na mesa com ele. A lógica era eu ficar de frente para a mesa dos treinadores e ir buscar uma mousse de chocolate para ele. Ficou ele de costas para os técnicos e lá comeu a mousse”. E lá se foi a dieta do italiano, não é, João?

João Coimbra estreou-se com Ronald Koeman, num jogo em que atuou cerca de três minutos. O Benfica estava a ganhar 1-0 ao Vitória de Setúbal e era hora de defender. Lá veio o miúdo João para o lugar de... Miccoli. João Coimbra lembra-se bem desse dia. Até me lembro de que não toquei na bola. E se calhar ainda bem (risos). Substituí o Miccoli. Foi o concretizar de um sonho”, diz o jogador que se assume benfiquista.

Como curiosidade, o Benfica acabou com três centrais e cinco médios-centro em campo. Anderson fez de lateral, mais os centrais Luisão e Ricardo Rocha, enquanto, no meio campo, ficaram os titulares Petit, Manuel Fernandes e Beto, mais os suplentes utilizados Karagounis e João Coimbra. Vá, tudo a defender, que isto não está para brincadeiras, deve ter dito Koeman. Com todos aqueles defesas e médios, não é difícil adivinhar o que Koeman pediu, na altura, ao jovem João: “Lembro-me vagamente de ter pedido para dar consistência ali no meio. Foi mais para segurar o resultado”.

Após a chegada de Luís Filipe Vieira, João foi um dos primeiros jovens formados no clube a ser aposta na equipa principal. Em 2006/07, tirando Rui Costa, era o único jogador da formação que jogava com alguma regularidade (Moreira e Nereu estavam tapados). Apesar disso, acabou por nunca fazer um jogo a titular pelo Benfica na Liga (fez dois na Europa e um na Taça). Tendo chegado ali, fica a questão: a carreira sabe a pouco? Como seria se fosse hoje? João Coimbra considera que “como hoje está a formação e a ligação ao futebol profissional, poderia ter tido mais oportunidades. Mesmo na formação, hoje seria diferente, com a BTV a dar os jogos todos, com as competições internacionais e com a qualidade dos campos. Nós até em campos pelados treinávamos, porque o novo estádio estava a ser construído. Tudo isso poderia ter dado mais qualidade à formação e ao meu percurso como jovem”. “Mas a culpa não é só disso. Também é minha”, acrescenta.

É assim, humilde e sensato – e apreciador de cinema, já agora –, que João Coimbra se mostra durante toda a conversa. Aliás, Leandro Albano, colega de equipa, no Trofense, diz, ao Bancada, que João Coimbra é assim mesmo. “Poderia estar a definir o João Coimbra em muitas coisas, mas o que se destaca mais é a humildade e a capacidade de ajudar os que mais precisam. É, sem dúvida, um ser humano incrível”. E nem o facto de ter ido jogar para o Campeonato de Portugal lhe mudou a personalidade. "O João encarou com naturalidade a vinda para o Campeonato de Portugal. A única coisa que lhe interessava era poder fazer o que mais gosta de fazer, poder jogar e transmitir para os mais novos tudo aquilo que aprendeu nos clubes por onde passou".

Segunda pausa: desafiámos João Coimbra para uma série de perguntas de resposta rápida. E houve batota! Batota da grossa e sem vergonha. Mas nós perdoamos.

Treinador que mais o marcou: "Fernando Santos, pela época que fiz na altura. E depois o Marco Silva". Já começámos mal. Era só um!
Melhor jogador com quem jogou: "Simão, Rui Costa e Miccoli". Já tínhamos falado sobre isto de escolher vários…
Adversário mais difícil de enfrentar: "Ivan de la Peña. Sem dúvida, uma qualidade incrível". Assim, sim, João! Escolher só um.
Melhor momento da carreira: “Vou dizer dois (risos). Ou melhor, ate vão ser três (ri-se novamente). Ter sido campeão da Europa sub-17, a estreia no Benfica e ter sido campeão pelo Estoril e capitão, na II liga”. (Imagine que está aqui aquele emoji com os olhos revirados).
Pior momento da carreira: "Sem dúvida, o falecimento do Bruno Baião, ainda como júnior".

Voltamos à humildade. A nós, depois de falar com João Coimbra, isto não espanta. É que, apesar dos treinadores intransigentes, das lesões graves e do azar, João Coimbra continua a insistir – disse-o mais do que uma vez – que o principal culpado de uma carreira aquém das expetativas é ele próprio. “Sinto que sim, a minha carreira poderia ter sido melhor. Mas também sinto que, se não foi, a culpa é minha. Em certos momentos, com mais sorte, talvez pudesse ter sido melhor. Mas, na globalidade, a culpa é mais minha, não tenho dúvidas”.

Aliás, um dos momentos que João Coimbra destaca como culpa própria foi a saída do Benfica. “Quando saio do Benfica, foi por opção minha, para jogar mais e ver o meu comportamento noutro ambiente. Se calhar, não saí na altura certa. Sair para o Nacional talvez tenha sido a maior mágoa da minha carreira. Fui para longe e sozinho. Talvez tenha sido demasiado cedo. Mas, na altura, decidi o que achava que era melhor”.

"Baixa as calças e começa a fazer as necessidades. Acaba, põe as calças para cima e volta a brincar"

Depois de Nacional e Gil Vicente, João Coimbra tornou-se um “menino da linha”. Foi para o Estoril e, no clube de Cascais, o médio foi tudo menos um “betola”. Aliás, foi bastante rebelde. Um rebelde que ajudou a tramar o clube que o formou. Toma lá, Benfica, que foste tu quem o deixou sair.

No célebre ano do golo de Kelvin, aos 90+2, o Benfica foi para esse jogo no Dragão pressionado. Tudo porque, na semana anterior, a expulsão de Carlos Martins e a boa exibição do Estoril permitiram sacar um empate na Luz. João Coimbra esteve lá. “Claro que me lembro. O Estoril estava na luta pela Europa e o resultado até nos ajudou. Foi um empate dececionante para o Benfica. Entrei no jogo após a expulsão do Carlos Martins e pensei que até isso tinha sido bom, porque percebi que, se calhar não tinha de correr tanto (risos). Mas mesmo a jogar contra dez, ainda levámos um sufoco”, recorda.

Depois de quatro boas temporadas no Estoril, veio uma quinta. Mais fraquinha. Foi apenas um jogo feito. “Entrei só no último jogo. Fui operado ao joelho, no verão, e, quando voltei, as coisas continuavam a não estar bem e não escapei a uma nova operação. Se uma já não é boa, duas então lixaram-me o joelho todo”, dispara.

Com isto, era hora de ir à vida dele. Foram uns meses divididos por Académico de Viseu e Rapid Bucareste e, depois, Índia. No sul, lá mesmo no sul, encostado à costa oeste, João Coimbra esteve no Kerala Blasters, clube da cidade de Kochi.

Lá, João Coimbra diz que viu coisas inacreditáveis. “Lembro-me de estarmos num bom hotel, de cinco estrelas, e o hotel estava totalmente no meio de uma favela. Íamos à varanda e era uma pobreza extrema, com miúdos quase nus a jogar críquete. Um dos miúdos sai do jogo – até tenho isso filmado – e, em plena, rua baixa as calças e começa a fazer as necessidades que tinha a fazer. Acaba, põe as calças para cima e volta a brincar. Continuava bem disposto e a sorrir”.

Questionado sobre como foi essa aventura indiana, João Coimbra começa por suspirar. “Foi uma experiência diferente. Um país pobre e que tem realidades diferentes. Foi muito enriquecedora. O que vi ali não verei aqui. É uma realidade que custa observar”, diz, garantindo: “Em termos desportivos, adorei. Estádios cheios. Povo humilde”.

Perguntámos ainda ao João se, em Kochi, há vestígios da presença portuguesa nos séculos 16 e 17. “Cheguei a visitar uma ou duas igrejas com raízes portuguesas. Não havia muita coisa, mas as pessoas mostraram-me esses pontos onde Vasco da Gama esteve”.

Uma careca que engana

Estamos habituados a que os jogadores se foquem nas carreiras de futebolista e que, boa parte deles, descure o pós-futebol. Com João Coimbra, não há nada disso. Pasme-se, caro leitor, porque este rapaz já fez três anos do curso de medicina.

Já há alguns anos que não vou ao curso, apesar de o pagar todos os anos. Tenho três anos feitos. Muito do conhecimento que adquiri já foi. Mas para continuar a pagar o curso, é porque ainda penso voltar”, diz, antes de disparar que, depois de deixar o futebol, não terá de escolher entre a medicina e um percurso no desporto: “Se calhar, com uma delas posso continuar ligado à outra”.

A conversa resvalou para o pós-futebol, mas João Coimbra não vai nessa cantiga. É que o homem, apesar de não parecer, ainda nem 32 anos fez. “Ter aparecido tão cedo faz com que pensem que sou mais velho do que sou. Vou fazer 32, não vou fazer 36. Isso prejudica-me um pouco. E talvez por não ter cabelo, também (risos)”.

A verdade é que João Coimbra parece estar para as curvas, até pela temporada feita na Trofa. Foram 30 jogos e uma temporada que, apesar de tremida, terminou bem, com a salvação do Trofense. “Sinto-me bem. Fiz 30 jogos e sinto-me melhor do que com 20 ou 21 anos. Sinto que tenho qualidade para jogar mais acima e tenho alguma ilusão, mas também tenho noção de que pode não aparecer nada”.

Com os elogios feitos por João aos anos passados no Estoril e com o clube de Cascais numa posição tão complicada na Liga Portuguesa, impõe-se a questão: poderemos ter João Coimbra no Estoril, na II Liga? “Espero que não haja esse cenário do Estoril na II liga. É um clube que me marcou muito e que fiquei a adorar. O Benfica ajudou-me a formar como pessoa, mas foi no Estoril onde cresci mais a nível profissional. É uma segunda casa para mim. Estou um pouco apreensivo com a situação que vivem e deixo os meus votos para que não desçam”. “Mas adoraria voltar ao Estoril, sem dúvida nenhuma”.

João com a Taça na mão

“Oh miúdo, baixinho é o teu ordenado”

A terminar, deixemos o careca falar do baixinho. Realmente, oh João, isso foi um esticanço valente! Puseste-te a jeito.

“Conto algumas vezes uma história que foi uma brincadeira, mas que as pessoas até podem pensar errado sobre a pessoa em questão. Ao Simão Sabrosa, muitos tratavam por “baixinho”, sobretudo os mais próximos dele. Nessa época, eu achava que já tinha moral para o tratar por baixinho e disse ‘oh baixinho’. Nisto, o Simão responde ‘Oh miúdo, baixinho é o teu ordenado’. Fiquei sem reação e sem palavras. Mas sempre fui bem tratado por ele. Aquilo foi mais para pegar e brincar comigo”.