Prolongamento
Hélio Sousa, o treinador que já o era dentro do campo e que é ouvido sem falar
2017-07-16 21:15:00
Um histórico do Vitória de Setúbal e “perfecionista” que foi talhado para conduzir Portugal ao topo nas seleções jovens

Nem o facto de Portugal ter vindo da Geórgia sem o título de campeão europeu de Sub-19 pode apagar o trabalho desenvolvido ao longo dos anos recentes. Até porque esta mesma geração já havia sido campeã europeia de Sub-17 no ano passado, repetindo, agora, a final alcançada em 2014 e perdida para a Alemanha no Europeu de Sub-19. A juntar a isso, há ainda o triunfo no prestigiado Torneio de La Manga, já este ano, e os quartos-de-final do Mundial de Sub-20, em 2015, onde a Seleção Nacional só foi travada pelo Brasil nos penáltis. O ponto em comum entre todas estes feitos tem um nome: Hélio Sousa. O selecionador que tem conduzido as equipas jovens portuguesas ao topo europeu, depois de uma carreira de jogador inteiramente dedicada ao Vitória de Setúbal. E foi lá, à beira do Sado, que se lançou como treinador e começou a mostrar estar “talhado” para todas estas proezas.

“O Hélio faz parte do grupo de jogadores que sempre se viu que a carreira não ia ser como empregado de escritório ou bancário, mas, sim, como treinador. E cá está ele”, refere a Bancada Carlos Cardoso, outro histórico do Vitória de Setúbal, que não só foi treinador do antigo médio sadino, como ainda foi adjunto deste na sua primeira aventura como técnico principal. Por sua vez, Chumbita Nunes, antigo presidente do Vitória, destaca uma característica marcante de Hélio Sousa. “Era um rapaz que não precisava de falar para ser ouvido pelos colegas, uma vez que lhe tinham muito respeito”, lembra o grande responsável pelo lançamento nos bancos de suplentes do atual selecionador das camadas jovens portuguesas. Mas já lá vamos…

"Não joguei o último jogo para me despedir dos sócios, mas saí muito cedo. Para o meu lugar entrou o Hélio" - Manuel Fernandes

Antes disso é preciso recordar uma carreira ímpar como jogador no Bonfim - onde esta época, curiosamente, começa a despontar o filho André. Sadino de gema, nascido e criado, foi subindo a pulso pela formação até chegar a sénior. Em 1987/88, era ainda júnior e já integrava o plantel principal do Vitória, na altura liderado por Malcom Allison. Hélio era pouco utilizado. O inglês saiu e Manuel Fernandes assumiu o comando na parte final da época, ele que, aos 37 anos, ainda jogava na frente de ataque sadina, já depois de ter brilhado no Sporting. “Não joguei três dos últimos jogos e comecei a convocar o Hélio”, começa por recordar o símbolo leonino ao Bancada. “Depois, joguei o último jogo para me despedir dos sócios, mas saí muito cedo. Para o meu lugar entrou o Hélio. Foi a partir daí que começou a jogar e a ter regularidade. No ano seguinte continuei em Setúbal e jogou mais vezes”, afirma.

A partir daí estabeleceu-se como pedra nuclear do Vitória, clube onde esteve interruptamente até terminar a carreira em 2004/05. Foram mais de 300 jogos pelos sadinos e apenas uma camisola vestida em toda a carreira. Algo que poucos jogadores conseguiram na história do clube. Carlos Cardoso foi um deles e pede-nos para realçar essa particularidade entre ambos. “O Hélio é uma pessoa que se agrara e é vitoriano desde pequeno. Há que louvar a carreira que fez como jogador e a que está a fazer como treinador. É a continuidade do bom jogador que ele era. Da boa pessoa que é. Está a demonstrar que tem capacidade para assumir as responsabilidades”, frisa o antigo jogador, treinador e dirigente sadino, agora com 72 anos.

“Apesar de jovem tinha uma maturidade muito grande e foi a partir daí que se começou a afirmar no clube. Era um miúdo muito educado, introvertido, muito sério no que fazia, responsável. Notava-se que tinha capacidade de liderança. Não complicava nada. O objetivo dele era afirmar-se no futebol português e conseguiu, teve uma regularidade muito grande e fez uma carreira brilhante dentro do clube”, aponta Manuel Fernandes. Ideia que também é corroborada por Chumbita Nunes. “O Hélio sempre foi um grande jogador e um dos grandes capitães do Vitória. Lembro-me do respeito que tinham por ele e qualquer coisa que o Hélio nos transmitisse era realmente essa a vontade do grupo. Ele era a melhor pessoa para o transmitir. Era uma pessoa que impunha respeito como capitão e estava sempre disponível para dialogar”, assegura-nos.

"Ele não foi daqueles de encostar a faca ao peito do presidente, nem ameaçou com nada" - Chumbita Nunes

O antigo presidente do Vitória de Setúbal, cargo que teve entre 2003 e 2006, exemplifica com uma história que, em seu entender, demonstra a personalidade do técnico: “Recordo-me quando cheguei que havia valores em atraso a alguns jogadores. Numa das conversas que tive com o Hélio a discutir isso, ele não foi daqueles de encostar a faca ao peito do presidente, nem ameaçou com nada. Apenas disse que os jogadores gostavam de ver resolvida a situação, sem querer criar confusões e sem avançar para tribunais, procurando apenas uma plataforma de entendimento. E foi assim que chegamos a acordo com eles e pagámos”.

“Como jogador foi meu capitão de equipa”, lembra Carlos Cardoso. “Impunha-se pela forma como se comportava dentro do campo e transmitia lá dentro aquilo que o treinador muitas vezes conversava com ele. Era um ótimo colaborador e está provado, porque fez uma carreira de muitos anos e jogos ao serviço do Vitória”, defende o conterrâneo do selecionador português. Foram 18 épocas e na última ajudou o clube a chegar à final da Taça de Portugal, conquistada frente ao Benfica. Mesmo sem sair do banco no jogo decisivo, fechou aí a carreira de jogador com chave de ouro. Mas novos desafios não tardariam a chegar.

Hélio Sousa deixou os relvados em 2014/15 e na época seguinte foi chamado para uma emergência no clube do coração. Norton de Matos começou a temporada em Setúbal, mas não a acabou. A solução encontrada por Chumbita Nunes era da casa: Hélio. Começava aí a carreira de treinador do antigo médio. “Entendi que ele poderia ter perfil para ser treinador. Fui eu que o convidei pela primeira vez. Convidei-o porque ele tinha sido jogador e tinha um bom relacionamento com os ex-colegas. Foi aí que ele se lançou”, relembra-nos o antigo presidente sadino.

"A escolha para capitão era sempre feita sabendo que o jogador era querido pela massa associativa e todos já viam nele um capitão que poderia dar treinador" - Carlos Cardoso

Uma aposta que não surpreendeu quem acompanhava de perto Hélio, uma vez que este sempre havia demonstrado capacidade para assumir o papel. “Há jogadores que se atingem o cargo de capitão é porque os treinadores veem que têm certas características para ser aproveitadas. A escolha para capitão era sempre feita sabendo que o jogador era querido pela massa associativa e todos já viam nele um capitão que poderia dar treinador”, afirma Carlos Cardoso, que acabou por ser adjunto de Hélio no Bonfim.

O arranque não poderia ter sido melhor, levando o Vitória novamente ao Jamor, mas, dessa vez, a Taça iria para o FC Porto. Na temporada seguinte, as coisas já não correram tão bem e o jovem técnico saiu ao fim de quatro jogos, um deles a Supertaça perdida novamente para os dragões. Foi substituído por António Conceição. O que poderá ter corrido mal nesta experiência a orientar um cube? A inexperiência. É essa a ideia transmitida por Chumbita Nunes. “O problema do Hélio é que acabou de jogar e foi logo para treinador. Se calhar não estava ainda totalmente preparado para o desempenho das funções. As coisas não correram da melhor maneira”, lamenta.

“É sempre difícil a uma pessoa do clube pegar numa equipa com parcos recursos. Para os de cá a exigência é maior. No caso dele também foi, pois tudo o que não estava bem a culpa era do treinador e da equipa técnica. O presidente e os diretores acharam que era preciso fazer uma mudança, mas acabaram por fazer uma mudança que também não resultou. Foi pior a emenda que o soneto”, salienta Carlos Cardoso, que acabou por aguentar o barco na parte final dessa mesma época, salvando o clube da descida. Uma história muitas vezes repetida no Bonfim.

Foto: Lusa

Apesar de ter deixado o comando técnico da equipa, o presidente da altura revela-nos que quis manter Hélio na estrutura. “Sempre tínhamos pensado nele para treinador e até o convidámos para ser o responsável pelos escalões jovens e assumir a formação do clube. Sempre achámos que era a vocação dele. Acabou por não ficar. E mais tarde acabou por ir para a Federação. Fez bem, pois tem demonstrado que está no sítio certo”, assevera Chumbita Nunes. De Setúbal, Hélio seguiu para a Covilhã, onde teve uma curta experiência no comando do Sporting local, em 2008/09, na última vez que orientou um clube…

Talhado para o sucesso com os jovens

A carreira nos bancos não estava a ter o melhor dos começos, mas em 2010 a história começou a mudar quando entrou para os quadros da Federação Portuguesa de Futebol. Um local que não era novo para Hélio, uma vez que ajudou Portugal a ganhar o primeiro campeonato mundial da sua história, em 1989, em Riade, quando Carlos Queiroz conduziu um grupo de jovens ao título maior no escalão de Sub-20. Aí coube-lhe a vez de ser ele o professor. E não demorou a mostrar que estava à altura da missão.

“O Hélio é um homem com muita calma, ponderado, paciente, não fala muito, mas tem uma visão fantástica, sabe ler o que vai na cabeça de cada um e sempre teve uma grande propensão para lançar jovens”, diz-nos Chumbita Nunes, antes de revelar uma grande vantagem de Hélio em relação à concorrência: “Fez todo o percurso no Vitória, desde as camadas jovens até ser capitão. Era um capitão muito respeitado por isso mesmo. Passou por todas essas fases e isso deu-lhe, não só conhecimento sobre as camadas jovens, mas também uma grande capacidade e tranquilidade para encarar algumas situações que normalmente acontecem aos mais jovens nos seus percursos até seniores”.

Foto: Lusa

Manuel Fernandes também vê em Hélio “uma pessoa calma e tranquila”, mas tudo tem um limite. “Quando é preciso também se enerva. Ainda agora no Europeu vi alguns jogos e às vezes lá estava ele pegado com o assistente. Por muito calmos que sejamos, há coisas que mexem connosco. Ele parece calmo, mas quando tem de ferver também o faz”, assegura o antigo técnico de Hélio Sousa, que o orientou em Setúbal por mais do que uma vez – Manuel Fernandes regressou ao Bonfim em 1997.

“Penso que ele tem um discurso muito pragmático e de louvar. Um discurso para jovens. Pelas entrevistas que leio e pelo que conheço dele, é um treinador para se afirmar nestes escalões. Não sei qual é a intenção, mas penso que um dia quererá passar para outros patamares. Tem qualidades humanas muito sérias, muito verdadeiras, porque é uma pessoa humilde e que gosta de aprender”, aponta Manuel Fernandes.

Apesar de toda a maturidade sempre apresentada ao longo da carreira, Carlos Cardoso destaca ainda outra característica de Hélio que poucos podem alcançar à primeira impressão. “Tinha uma forma de brincar que algumas pessoas nem acreditavam que ele fosse como é. As pessoas que não lidam com ele frequentemente, pensam que ele é sisudo e de poucas falas, mas quando entra na brincadeira é brincalhão a sério”, assegura-nos.

"Tem o seu característico leque de piadas" - Luís Silva

Esse lado mais extrovertido que ganhou com o passar dos anos é também salientado pelos jogadores. Luís Silva, defesa de 18 anos, do Stoke City, que fez parte da equipa portuguesa que Hélio Sousa conduziu ao título europeu de Sub-17 no verão passado, confirma-o. “Do que me fui apercebendo ao longo dos anos, é uma pessoa extremamente tranquila, disponível, atenta e que tem o seu característico leque de piadas”, conta o jovem jogador formado no Benfica ao Bancada.

No entanto, brincadeiras à parte, todos lhe reconhecem qualidade no trabalho desenvolvido, assim com muito profissionalismo. “Tem uma boa relação com os jogadores, uma excelente postura como treinador, é muito perfecionista, trabalha muito bem as suas equipas em todos os aspetos e impõe muita qualidade tática nas equipas”, destaca Rúben Vinagre, lateral esquerdo do AS Mónaco, que foi uma das estrelas da equipa portuguesa campeã europeia de Sub-17.

Por sua vez, Nélson Monte encontrou Hélio em escalões mais acima e não hesita em elogiar as competências do técnico. “A principal virtude creio que seja o método de trabalho. É um treinador muito conhecedor do jogo, é forte em muitos aspetos do jogo. A nível pessoal é um grande homem, para além de treinador é amigo do jogador. Não é à toa que nos últimos anos conseguiu estar sempre em todas as frentes. É um treinador com ideias muito certas e essas ideias estão a colher os frutos”, observa o defesa do Rio Ave. 

“O mister Hélio é uma pessoa que a nível profissional defende que o rigor máximo e a competência naquilo que cada um de nós pode controlar no dia-a-dia são valores preponderantes, como por exemplo o cumprimento de horários ou a prática de grandes penalidades nos treinos”, confessa-nos o jovem Luís Silva, antes de defender a quota parte de responsabilidade do treinador nos feitos de uma geração que tem andado sempre pelos lugares mais altos do pódio: “Acredito que o sucesso da nossa equipa no ano passado, em Sub-17, e este ano, em Sub-19, é o entrelaçar dos dedos dos jogadores com a filosofia da Federação e, como é natural, com os do mister, que é o nosso mais próximo mensageiro dessa filosofia e forma de estar, treinar e jogar”.

"Na fase decisiva para o Europeu Sub-19, em 2014, e para o Mundial Sub-20, em 2015, ele deixou-me de fora e até chorou" - Nélson Monte

As características humanas de Hélio também são destacadas por Nélson Monte, que relembra um episódio específico passada entre ambos. “Na fase decisiva para o Europeu Sub-19, em 2014, e para o Mundial Sub-20, em 2015, ele deixou-me de fora e até chorou. Contudo, no caso do Mundial, mais tarde vim a ser chamado por infelicidade de um colega. Apesar de tudo, é uma grande pessoa e um amigo”, garante o defesa ao Bancada.

Quem também não se esquece de um momento vivido com Hélio Sousa é Rúben Vinagre. Uma frase que marcou o jovem defesa e que viria a ser determinante na conquista do título de Sub-17. “Durante todo o Europeu passou-nos uma mensagem que era jogo a jogo, mas sempre a acreditar que o título estava ao nosso alcance e que só dependia de nós. Ele uniu-nos muito. Sentíamos que ele estava connosco. Antes da final a frase que me recordo de ele dizer é que ‘as finais são para se ganhar’. Assim foi. Portugal ganhou. Algo que esteve perto de fazer novamente no sábado, embora a Inglaterra tenha levado a melhor. E, a avaliar pelo percurso feito até aqui nas seleções mais jovens, algo que Hélio Sousa poderá voltar a fazer brevemente com Portugal. “Desta vez não deu, mas acredito que na próxima ele conseguirá o título”, remata Nélson Monte.