Prolongamento
Excesso de jogos = mais lesões? Talvez não…
2017-08-22 20:00:00
Lesões na juventude deixam marcas para o resto da vida

“Há muitos jogos, isso é certo. Não tens paragens, são muitos torneios. Acho que toda a gente concorda que esse não é o caminho” – Jurgen Klopp

Diz Klopp e dizem muitos outros treinadores. O excesso de carga competitiva tem provocado vozes de indignação e os jogadores chegam a fazer três jogos por semana e, muitas vezes, têm 48 horas de recuperação entre jogos. Este tempo é suficiente? Sim, é. A carga excessiva é a causa das lesões? Não, não é. Podemos dizer, desde já, que o problema vem da formação dos atletas e de práticas como brincar aos “meínhos” (ou rabia) e fazer alongamentos de formas erradas. Mas já lá vamos.

Com base no UEFA Elite Club Injury Study Report – estudo que avalia e quantifica diversas variáveis relacionadas com as lesões dos jogadores –, podemos perceber se existe, ou não, um aumento do número de lesões no futebol profissional. Os dados disponibilizados pela UEFA permitem, além da análise mais detalhada às lesões, perceber, de forma transversal, a evolução do número de casos, nos últimos 15 anos.

Alerta Spoiler: nos últimos anos, não só não existe aumento do número de lesões, como existe até ligeira diminuição.

Posto isto, pergunta o leitor e pergunta o Bancada: se os jogadores disputam mais jogos, num futebol cada vez mais intenso, e têm pouco tempo de recuperação, não seria suposto o número de lesões aumentar, pelo esforço exigido ao corpo? Qual será a explicação para esta diminuição? Melhores meios e melhores preparações físicas compensam o excesso de jogos?

Pedimos ajuda ao Professor Paulo Badajoz, da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa, e especialista em preparação física, que explica:

A influência positiva da idade média das equipas de agora, os diferentes hábitos de saúde e de nutrição, os cuidados e práticas médicas mais evoluídas, o número de praticantes, etc, poderão explicar a estabilização do percentual de lesões ou a sua redução”, começa por dizer Paulo Badajoz, antes de alertar: “No entanto, há aqui uma coisa absurda e que é perversa. Um clube tem 17% de lesões em permanência. No início da época, há níveis de 30% de lesionados num plantel de uma equipa. Isto é inadmissível. Os atuais 17% de lesões são vistos como um valor aceitável. Para mim, o aceitável é zero”.

Paulo Badajoz explica-nos porquê e dá-nos três áreas-base de erros que provocam as lesões: más práticas de treino, falta de avaliação individual aos atletas e problemas físicos que vêm do futebol de formação.

Os atletas de alto rendimento, para mim, não se podem lesionar, digamos assim. Têm os melhores médicos, os melhores fisioterapeutas, os melhores fisiologistas… Os fisioterapeutas, por exemplo, sabem de recuperação, mas não sabem nada de preparação física e de práticas de treino. E é daí, dessas práticas de treino erradas, que vêm boa parte das lesões”.

Quer um exemplo? Todos os atletas, desde muito jovens, fazem “meínhos”. Todos. Desde os dos distritais até aos da Liga dos Campeões. E fazem “meínhos” sem aquecer. Os “meínhos” sem aquecer são o fator de risco primário das lesões”, exemplifica, antes de explicar: “O problema não está nos exercícios de prevenção e recuperação, está nas práticas de treino. Os alongamentos não são feitos da forma técnica correta. Estão a alongar um músculo, mas a posição está errada e não estão a alongar coisa nenhuma. Continuam a fazer saltos, saltos, saltos, seguidos de sprints… uma data de coisas que são erros de prática e que não são os fisioterapeutas e os treinadores que os sabem corrigir”.

“Temos evidências de erros na execução de exercícios de alongamento por parte de equipas que os utilizam, desde os campeonatos distritais até equipas de Liga dos Campeões que, para além de não produzirem o efeito positivo desejado, incorrem em riscos acrescidos desnecessários".

Não esconder o passado clínico é essencial

Para Paulo Badajoz, a solução está – para além da adequação das práticas de treino – na avaliação do historial dos atletas. Esta questão vai ao encontro da recente polémica com Fábio Coentrão, que ainda nesta terça-feira, respondeu ao alegado chumbo nos exames médicos, antes de assinar pelo Sporting.

O Professor Badajoz constata que esconder lesões antigas é um problema bem real. “Existe a evidência de que algumas dessas lesões não estão a ser divulgadas ou consideradas, tal é a normal aceitação da sua ocorrência. Há um quadro clínico histórico dos atletas que vai sendo mais penoso e escondido pelos interesses económicos e pela necessidade de valorizar (ou não desvalorizar) os ativos. As avaliações físicas podem e devem fazer esse papel. O caso Fábio Coentrão é um exemplo muito fácil e paradigmático do que digo".

Ligada à avaliação está a questão das lesões na juventude. “80 e tal por cento das lesões derivam de situações de lesão e pré-lesão no período de formação dos atletas. O problema não está a jusante, está a montante. Os estudos todos têm que ver com jogadores profissionais, mas até lá chegarem não são profissionais e é daí que as coisas vêm. Posso dizer-lhe que um clube dos três grandes já me pediu opinião sobre lesões nos posteriores das coxas num jogador de 14 anos. 14 anos! É inacreditável. As lesões nas camadas jovens têm repercussões na vida toda”.

Pausa. Voltemos ao futebol. Problemas físicos, sobretudo no Sporting e no Benfica, têm sido debatidos insistentemente. Mas há pior do que os rivais de Lisboa.

Hospital de São Arsenal

São José, em Lisboa, São João, no Porto, e São Arsenal, em Londres. Ano após ano, época após época, o Arsenal é o maior “hospital” entre as principais equipas europeias. Os problemas físicos dos jogadores do clube já deixaram de ser “uma onda de lesões”, para passarem a ser uma previsão fácil de acertar.

O passado do Arsenal, no que diz respeito a lesões, fala por si. São já muitos anos, sempre com atletas no “estaleiro”, por tempo prolongado, quase todos eles devido a lesões que não envolveram contacto físico.

Veja se a lista que se segue lhe sugere saúde e resistência física ou problemas físicos e fragilidade. Abou Diaby, Thomas Rosicky, Mikel Arteta, Jack Wilshere, Thomas Vermealen, Theo Walcott, Aaron Ramsey, Robin Van Persie, Niklas Bendtner, Andrei Arshavin, Danny Welbeck, Fredrik Ljungberg, Keiran Gibbs, Mathieu Debuchy, Samir Nasri ou Laurent Koscielny. Exacto, é isso que está a pensar. Muita gente habituada a lesões, sendo que, a estes nomes, podemos ainda juntar as lesões ocasionais de Alexis, Bellerín, Coquelin, Oxlade ou Ozil.

O jornal britânico “The Telegraph” selecionou os 20 jogadores mais propensos a lesões, na Liga Inglesa, desde 2010. Momento trívia: quantos jogadores do Arsenal estão no lote de “physio favourites”?

Resposta: 8 em 20. Um número assustador e suportado também pelo jornal “The Sun”, que destacou Diaby, Walcott e Wilshere nos seis jogadores mais propensos a lesões, na Liga Inglesa, no século XXI.

Azar, “homens de vidro” ou dedo de Wenger?

As teorias para este excesso de lesões são muitas. Há quem fale, por um lado, de métodos de treino antiquados, e quem fale, por outro, de maus preparadores físicos. Existe ainda quem culpe o azar e quem veicule a teoria que mais consenso reúne: a de jogadores propensos a lesões – os chamados “homens de vidro”.

Comecemos por estes últimos. Há quem diga que o “truque” é simples: não ter, no plantel, demasiados jogadores propensos a lesões. Ou seja, não ter um Diaby, cujo substituto era Wilshere e que, por sua vez, era secundado por Ramsey. As probabilidades dizem que os três poderão estar de fora em simultâneo. E isto tem acontecido, frequentemente, no Arsenal.

Mas, afinal, o que é isso de jogador “propenso a lesão”? Este conceito existe mesmo?

A predisposição para uma determinada lesão deve ser vista com base nos fatores de risco. Com base nestes fatores, podemos dizer se um atleta tem maior ou menor predisposição para uma determinada lesão. Acresce a isto que há lesões que são recorrentes. Quem tiver uma lesão no músculo posterior da coxa, muitas vezes reincide nesse ano”, explica o Professor Paulo Badajoz.

E é desta reincidência que reside, em parte, o conceito de “jogador propenso a lesões” (vulgo “homem de vidro”).

Queres manter os jogadores “fit”? É fácil, contrata jogadores “fit” e "limpos"

Há um dado que poderá ajudar a corroborar a teoria dos jogadores propensos a lesões. Na última temporada, o Arsenal já não teve Rosicky e Arteta, bem como Wilshere, que saiu por empréstimo. Menos três jogadores que eram clientes habituais da enfermaria dos gunners, que foram substituídos por Elneny e Xhaka, dois jogadores com registos médicos relativamente limpos. O número de ausências por lesão caiu bastante, algo que poderá ser explicado pela questão abordada por Paulo Badajoz: um jogador que tem uma lesão terá uma propensão grande para voltar a tê-la e, sobretudo, poderá ter problemas que advêm dessa lesão. 

Ainda na teoria dos jogadores propensos a lesões, podemos recordar alguns que são/foram clientes assíduos das enfermarias. Arjen Robben, Jamie Redknapp, Owen Hargreaves, Sturridge, Diaby, Ledley King, Djibril Cissé, Kompany, Phil Jones, Agger, Vidic, Micah Richards, Andy Carroll, Jack Rodwell, Woodgate, Essien, entre outros.

Se for possível encontrar um padrão comum entre quase todos estes jogadores, esse padrão será a quantidade de músculo. São, quase todos, jogadores fortes fisicamente, pesados, com membros largos e músculos desenvolvidos. Poderá estar aqui uma causa?

Para Paulo Badajoz, isto é totalmente falso. “É mentira. Isso não existe. Se isso fosse assim, os atletas da ginástica estariam sempre lesionados. O que acontece é que há um fator que tem que ver com desequilíbrios musculares. Os músculos funcionam por ação oposta, isto é, quando um contrai, o seu oposto descontrai. O que acontece é que se um está mais forte do que o seu oposto, pode acabar por não descontrair a tempo de o outro contrair (ou vice-versa) e aí pode haver lesão”.

Mas os rapazes falham muitos jogos por lesão ou não?

Voltando ao estudo da UEFA, podemos dizer que, em média, no período de teste do estudo, as equipas tiveram 20 sessões de treino e 5,4 jogos por mês, o que significa que as equipas passaram 85% da sua exposição física no treino e 15% no jogo.

Neste período, foram reportadas 1200 lesões, das quais 44% foram feitas em treino e 56% em jogo. Estes valores equilibrados podem ser explicados pelo facto de os jogadores passarem mais tempo a treinar, por um lado, mas, por outro, a exposição física em jogo ser bastante mais exigente e propensa a lesões.

Entre as lesões reportadas, 45% foram lesões musculares, 15% ligamentares e 19% enquadram-se nas “lesões severas” – lesões que obrigam a, pelo menos, quatro semanas de paragem. Nas lesões ligamentares, uma curiosidade remete para o facto de 28,7% serem contraídas em lances com contacto, nomeadamente em tackles. Sem surpresa, 44,2% das lesões musculares são contraídas em sprint e corrida.

O estudo da UEFA revela ainda que 71,5% das lesões acontecem em situações em que não existe contacto físico entre jogadores. É o chamado “lesionou-se sozinho”. Apenas 27,1% das lesões acontecem em jogadas com contacto, mesmo tratando-se o futebol de um desporto em que o contacto físico é permanente.

Isto corrobora a teoria de do Professor Paulo Badajoz, segundo a qual existe má preparação dos atletas, quer no doseamento das cargas, quer nas práticas de treino, quer na avaliação do historial clínico. O tempo de recuperação de 48 horas é mais do que suficiente. "É mais do que suficiente, desde que sejam atendidos pressupostos anteriores, nomeadamente o planeamento e periodização correta do treino e da competição, juntamente com as práticas corretas no aquecimento e no retorno á calma, após o esforço".

Dedo de Wenger?

Acerca dos métodos de treino antiquados, Raymond Verheijen, holandês, especialista em preparação física, acusou, em 2015, Arsène Wenger, treinador do Arsenal, de não ter adaptado os seus métodos de treino ao futebol moderno. “Ele tem aplicado esses métodos – revolucionários, quando ele chegou a Inglaterra, nos anos 90 – há 10 ou 20 anos e, quando fazes isso, és apanhado e ultrapassado pelos que se desenvolveram mais do que tu”.

Mas o que é um método de treino antiquado? Excesso ou falta de trabalho físico? Excesso ou falta de ginásio?

Para Paulo Badajoz, vem tudo das pré-temporadas. “Hoje em dia, os treinos são absurdos. Quando vêm das férias, os jogadores começam por levar uma semana de carga e corrida, todos desvairados. Isso é completamente errado. Os treinadores metem todos juntos, a levar as mesmas cargas e esperam que nada aconteça”. Qual é, então, a solução? Mais uma vez, as palavras-chave: avaliar e individualizar.

É necessário avaliar cada atleta e dosear a carga, com base nas necessidades de cada um. Mas não pode ser feito à pressa”. Mas se para isto é preciso tempo, onde entram os jogos de preparação? Entram logo. Erradamente. “Os treinadores começam logo com os jogos. Jogar duas ou três semanas depois do início dos treinos parece-me desajustado. O jogo de pré-época serve para quê? Para ver um jogador. Ora, se um jogador ainda só pode dar 50%, vou pedir-lhe que jogue assim? Os treinadores pedem, mas o jogador, que quer mostrar serviço, acaba por tentar dar 100%, mas não pode”.

Avaliar, não esconder as lesões passadas, individualizar as necessidades e ensinar os procedimentos de treino prático no aquecimento, alongamento e retorno à calma. Quatro pilares que não têm sido respeitados e que causam as lesões do futebol atual.

O mais perverso de todos eles é, para Paulo Badajoz, o de esconder lesões para não desvalorizar um ativo. É, portanto, um problema conjuntural do futebol atual e que deve ser combatido. Pelo menos com Fábio Coentrão não há que temer: o jogador garantiu que passou nos exames médicos e que já não tem nenhuma mazela.