Prolongamento
Em tempos de guerra com a SAD, o futebol do clube cresce
2018-02-13 20:15:00
O Belenenses vai ter uma equipa sénior já a partir da próxima temporada para deixar de perder jovens jogadores

Não é segredo: há tudo menos paz na relação entre o Clube de Futebol “Os Belenenses” e a Belenenses SAD. Sabendo isso, o clube apostou no crescimento do futebol de formação, tem equipas a lutar pelos primeiros lugares dos respetivos campeonatos contra os chamados ‘Três Grandes’ e, a partir de 2018/19, vai ter uma equipa sénior própria para poder dar uma oportunidade aos jovens jogadores que a SAD acaba por não aproveitar. Essa ideia, quando implementada, vai também ajudar no processo de recrutamento no futebol de formação, fase em que o Belenenses sofre por não ter um projeto com continuidade para os seniores para apresentar aos jogadores.

Apesar de utilizarem o mesmo emblema nas respetivas equipas, clube e SAD são entidades completamente diferentes e com responsabilidades e objetivos distintos. Enquanto o clube gere o futebol de formação e as restantes modalidades, a SAD é a responsável pela equipa profissional que participa na Primeira Liga. Assim sendo, e depois da última Assembleia Geral marcada pela aprovação da proposta da quebra do protocolo com a SAD, não há nada que impeça o clube de criar a própria equipa sénior. Contudo, para chegar ao ponto de ter condições para que isso aconteça, o Belenenses teve de mudar algumas coisas no futebol de formação.

À conversa com o Bancada no Estádio do Restelo, Patrick Morais de Carvalho, presidente do clube desde 2014, relembrou o estado em que o futebol de formação do Belenenses se encontrava há poucos anos e o que foi preciso alterar. “Se nós recuarmos aqui seis anos, o futebol de formação estava sem rumo. A anterior direção do clube, ainda liderada pelo engenheiro António Soares, cometeu um erro de palmatória no início do seu mandado que foi externalizar o futebol de formação até aos sub-14 a uma empresa do norte que tinha um franchinsing do Milan”, começou por dizer o dirigente azul. “Na altura, era apenas um adepto do clube e bati-me contra isso porque achava que o Belenenses não podia ter dezenas e dezenas de miúdos equipados com a camisola de outro clube no Complexo do Restelo, ainda que fosse o Milan, porque somos um clube grande e temos o nosso ADN, a nossa mística e a nossa identidade”, acrescentou.

O projeto acabou por não vingar e a direção de António Soares terminou esta aventura, virando-se para outro caminho. Foi feito um contrato com a empresa Blue Dream, liderada por João Raimundo, hoje diretor geral do futebol do clube. “Quando chegámos cá, em outubro de 2014, era isso que existia. A partir dos sub-15, inclusive, até aos juniores, eram liderados a 100% pela estrutura do clube. E existia ainda a estrutura do futebol sénior. (…) Aquilo que queríamos implementar aqui foi, desde logo, tentarmos, no âmbito daquilo que já se falava que seria a certificação de entidade formadora pela FPF e pela FIFA, ser uma das primeiras entidades certificadas. Conseguimos e fomos uma das onze primeiras, o que foi um upgrade extraordinário para a estrutura, quer em termos organizativos, competitivos e de recrutamento”, frisou Patrick Morais de Carvalho.

O objetivo passou a ser aumentar ao máximo o número de praticantes até aos sub-14 e, para isso, foram criadas as Escolas de Futebol Belém, mais destinadas à recreação do que à competição e eventual crescimento no mundo do futebol. “Fizemos uma separação clara entre aqueles que são os atletas do Belenenses e aqueles que são os atletas da EF Belém. De um lado tentamos colocar o talento e as equipas competitivas e do outro temos a recreação, sendo certo que, nestas idades, o potencial e o rendimento dos atletas muda muito rapidamente. Até aos sub-14 vamos nesta linha.” A partir dos sub-15 já só há Belenenses e a recreação acaba, com todo o futebol a ser encarado de forma competitiva.

Patrick Morais de Carvalho é presidente do clube desde 2014 (foto: Twitter Belenenses)

Para João Raimundo, “o futebol do Belenenses está muito melhor que aquilo que estava anteriormente”, ainda que o dinheiro não abunde. O mais importante é mesmo lançar jogadores para o futebol profissional (mesmo que não seja no Belenenses) e isso, de acordo com o dirigente, está a ser feito com sucesso. “Tirando os clubes que investem, realmente, muito dinheiro, e fazendo o comparativo connosco, acho que as coisas estão a correr bem. Temos projetado jogadores no futebol profissional, temos tido resultados no futebol de formação e, basicamente, é isso que se espera de uma estrutura de futebol de formação. As coisas não são avaliadas ano a ano, tem de haver uma avaliação prolongada no tempo. Não podemos ser avaliados pelos mesmos parâmetros que o futebol profissional”, assegurou em declarações ao Bancada.

A batalha chamada recrutamento e o os efeitos secundários nos juniores

Onde o Belenenses ainda sofre é no momento de recrutar novos atletas e de garantir a continuidade dos que já vestem a camisola com a cruz de Cristo ao peito. Aí, o Belenenses ainda não está ao nível dos outros clubes e a principal razão é só uma: os atletas não encontram futuro sénior no clube porque a equipa profissional da SAD tem uma ligação quase nula ao futebol de formação.

“Vamos percebendo que todos os anos temos mais dificuldade do que os nossos adversários no recrutamento porque não temos um projeto para apresentar aos miúdos até aos seniores e há muitos atletas que, pese embora o nome e a grandiosidade do Belenenses, às vezes preferem assinar por outros clubes onde lhes é oferecido um projeto que vá até aos seniores”, admitiu Patrick Morais de Carvalho, que considera que “o Benfica, FC Porto e Sporting só não têm os melhores jogadores em Portugal se andarem distraídos” e que o Belenenses tem “de encontrar outras armas para tentar encurtar ao máximo a distância para esses clubes”. O vice-campeonato de juniores em 2016/17 e as vitórias que os iniciados e juvenis têm contra esses três clubes são, por isso, “um feito extraordinário nos tempos que correm”.

De acordo com João Raimundo, não ter equipa sénior faz também com que os melhores jogadores das equipas de formação do Belenenses saiam do clube assim que outro emblema se chegue à frente com um contrato profissional. Como o Belenenses não o pode fazer, não há luta a dar nem se pode impedir o jogador de sair. Quando é preciso arranjar caras novas para as equipas de formação, o processo também se complica, com os jogadores a preferirem representar clubes que têm escalão sénior.

“Muitas vezes somos apontados por sermos um clube que se desfaz dos seus jogadores. Esta geração de 2000 foi uma geração que ficou órfã das suas referências de ataque. Saiu o Gonçalo Henriques para a Sampdoria, numa situação em que o clube não consegue reter o jogador. Na altura não estávamos elegíveis para termos contratos de formação, mas mesmo que pudéssemos, ao rubricarem um contrato profissional o de formação fica sem validade. Portanto, saiu o Gonçalo Henriques, saiu o Luís Lopes [conhecido como ‘Duk’] para o Benfica pelos mesmos motivos. Ainda assim, a direção fez um esforço e conseguiu ainda ficar com uma percentagem do passe do Duk para, posteriormente, termos algum recurso que possa ser injetado no clube pela transferência do jogador. A partir desse momento, quando nós ficámos órfãos destes dois jogadores, tentámos recrutar jogadores. Agora, há jogadores com contratos profissionais e oportunidades no futebol profissional da Académica, há jogadores com contratos profissionais rubricados com a UD Leiria, mesmo estando no Campeonato de Portugal. Portanto, há jogadores que nos interessavam, mas que não conseguimos porque não temos, efetivamente, este espaço proveta e a passagem para o futebol profissional”, contou João Raimundo.

Essa dificuldade no momento do recrutamento e na continuidade dos jogadores tem-se revelado influente na equipa de juniores. Depois do segundo lugar no campeonato do ano passado, o Belenenses vai lutar para não descer do primeiro escalão dos sub-19 na ponta final desta temporada. Ainda assim, e apesar de reconhecer essa influência, a equipa recusa que esse tenha sido o único motivo.

“É natural que [a dificuldade no recrutamento e na continuidade dos jogadores] tenha [efeito nos resultados da equipa]. Não é a única nem a principal razão, mas como é óbvio que dificulta até porque esses jogadores [que saíram] tinham rendimento potencial e estão do outro lado, não desapareceram do mercado. Se fossem jogadores que estariam no mercado internacional, eu não os defrontaria”, explicou ao Bancada o treinador João Santos, responsável pela equipa de juniores que admitiu ainda que o esperado por todos era algo mais que não foi conseguido. “A expetativa, depois da época há dois anos [quinto lugar] e da época passada [segundo lugar] era, naturalmente, muito alta. O próprio nome do clube assim o obriga e quem defende estas cores tem essa motivação e essa predisposição para, no meio de algumas dificuldades, não justificarmos e procurarmos cumprir os objetivos. E este ano, infelizmente, não conseguimos atingir a fase de apuramento do campeão por diversos fatores.”

O capitão dessa equipa é Tomás Ribeiro, defesa de 18 anos que se juntou à conversa com o Bancada. Tal como o seu treinador, reconhece que o objetivo não foi conseguido esta temporada, mas assegura que a motivação não baixou e continua a mesma desde o início. Recuperado de uma lesão, ‘Tommy’, como é conhecido no clube, considera que tem aproveitado as oportunidades “da melhor maneira”.

“Infelizmente não conseguimos chegar à fase que nos propusemos, mas isso em nada nos tira a motivação que sempre tivemos. Individualmente, tive agora uma lesão um pouco complicada, mas tenho tido as minhas oportunidades. Acho que as tenho conseguido aproveitar da melhor maneira e não tenho dúvidas que, trabalhando o mais sério possível, como faço sempre, conseguirei ficar cada vez melhor e mais forte”, referiu.

Um futuro sénior

Para combater todos os problemas que o futebol de formação atrai por não haver a ligação ideal ao futebol profissional, o clube já decidiu que vai ter uma equipa sénior a partir da próxima temporada. Patrick Morais de Carvalho já o havia anunciado antes e reforçou a ideia ao Bancada. O clube está confiante que pode crescer ainda mais com esta medida e que os jovens da formação vão beneficiar bastante assim que for implementada.

“Na próxima época vamos ter uma equipa de futebol sénior”, começou por confirmar Patrick Morais de Carvalho, explicando depois os moldes já pensados. “Não sei em que divisão [a equipa vai entrar]. Será na divisão que as instâncias desportivas permitirem e onde nos pudermos inscrever, de preferência o mais acima possível. A ideia é que essa equipa seja um patamar que seja interessante para os nossos jogadores da formação no trânsito que têm a fazer para o futebol profissional e sénior. (…) Nós queremos garantir aqui uma equipa que lhes dê esse estado de maturação para continuarem a representar o Belenenses para ser bom para eles e para nós também”, disse.

E qual é o principal objetivo? Permitir experiência sénior aos jovens jogadores ou subir com a equipa o mais possível? A meta é sempre ganhar e a prioridade na ida ao mercado vai ser dada a antigos jogadores do clube. “Nós não somos o INATEL nem o grupo recreativo. Em tudo o que entrarmos vai ser para ganhar. Agora, o recrutamento vai ter a ver com a divisão em que estivermos. Quase que diria que vai haver a necessidade de ir buscar atletas fora. A prioridade vai ser ir buscar atletas que já tenham sido nossos jogadores, principalmente nos últimos anos”, revelou o presidente dos azuis do Restelo.

O clube entende que tem atletas nos juniores que já mereciam, pelo menos, uma chamada aos treinos da equipa principal. Do presidente ao treinador, passando pelo diretor geral, a opinião é unânime e um dos jogadores referidos foi precisamente Tomás Ribeiro, o capitão dos juniores. Para ele, a criação de uma equipa de seniores só pode ser encarada da melhor forma. “Não deixa de ser uma ótima oportunidade para cada um de nós, uma motivação acrescida, mas só nos traz cada vez mais responsabilidade ao nosso trabalho e ao nosso rendimento dentro de campo. Esta é a minha quarta época neste clube e posso garantir-lhe que nunca me faltou nada. Agradeço a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, fizeram parte do nosso dia a dia porque sei que todos deram o máximo”, frisou.

João Santos, treinador de Tomás, também considera que mais do que um dos seus atletas já podia estar integrado no plantel profissional e relembrou que isso já aconteceu na temporada passada. “O que precisamos é de oportunidade e desse nível de motivação tremendo que ninguém no clube consegue dar. E depois é a experiência. Só a experiência é que dita se o atleta tem capacidade para integrar esse contexto ou não. Não tenho dúvidas de que temos variadíssimos atletas que faria todo o sentido integrar num processo de treino pontualmente, passo a passo, perceber que cada um deles é distinto. Obviamente, de acordo com as necessidades que uma equipa sénior tenha”, assegurou.

Uma das tarefas de João Santos é manter a equipa motivada mesmo quando o sentimento geral no balneário é de que o futebol profissional não está atento e o treinador não nega que, “sabendo que podiam ir lá treinar amanhã, é normalmente que a motivação pudesse ser um bocadinho maior hoje”. “Penso que os jogadores, tal como todos nós, têm uma capacidade de adaptação muito grande e sabem que, seja a curto, médio ou longo prazo a sua oportunidade irá surgir até porque há factos. Se não surgir aqui, infelizmente, irá surgir noutro contexto”, lamentou.

O clube diz que sempre demonstrou abertura para que o treinador da equipa profissional, fosse quem fosse, pudesse utilizar juniores sempre que assim o entendesse e vai mais longe ao dizer que até já chegou a ceder treinadores de guarda-redes. Até Silas já foi contactado de modo a saber que, se quiser, pode chamar juniores. “Há aqui uma coisa que eu registo: já disse, há dez dias, ao Silas que ‘quando quiseres, podes-me telefonar e vão treinar os juniores que precisares’ e, até hoje, o Silas ainda não me telefonou. Têm que perguntar ao Silas é quem é que o impede de telefonar”, disse Patrick Morais de Carvalho.

"Os sócios sabem que têm, na sua direção e nos seus profissionais, pessoas sérias, trabalhadoras, que respeitam os desígnios pelo qual o clube foi fundado", disse João Raimundo ao Bancada (foto: Twitter Belenenses)

O presidente do Belenenses contou ainda que é comum o clube enviar cartas à SAD com recomendações de jogadores que considera ter qualidade suficiente para rubricar contratos profissionais, mas que de pouco tem resultado. Exemplos disso são Pedro Marques, Heriberto Tavares ou Pedro Amador, três jogadores que representaram os juniores do Belenenses, não foram aproveitados pela SAD e hoje vestem as camisolas de Sporting, Benfica e SC Braga, respetivamente, com contratos profissionais. “Com esses que foram citados fizemos esse trabalho, mas foram atletas que passaram fora do departamento de recrutamento – se é que ele existe, que eu não faço ideia – do futebol profissional do Belenenses. Se existe, trabalha mal.”

Ainda assim, e apesar da falta de ligação entre clube e SAD, alguns jogadores rubricaram contrato com a equipa profissional. Benny, integrado a 100% no plantel, João Louro e Gonçalo Agrelos, ambos emprestados, são bons exemplos, pelo que, em certos casos, a SAD está disposta a aproveitar a formação. O problema, de acordo com Patrick Morais de Carvalho, é a forma como o faz, porque os jogadores “são inteligentes e sabem que o facto de as relações serem tensas e não serem positivas não impede que eles venham a ser jogadores profissionais do Belenenses”.

“O clube acaba por fechar os olhos a muitas coisas porque também compreende a posição dos miúdos e a nossa principal prioridade é não os prejudicar. Sabemos que temos atletas abordados por pessoas da SAD às escondidas, dentro de um carro, atrás de uma porta. Dizem para não falarem com o clube, mas nós temos conhecimento disso e nunca nenhum miúdo foi chamado à atenção por causa disso. É o futuro deles e eles não têm nada a ver com esta guerra.”

A última pergunta do Bancada foi dirigida a João Raimundo. Foi uma pergunta simples, mas que o próprio assumiu ser “difícil” de responder: que futuro para o futebol do Clube de Futebol “Os Belenenses”? O diretor geral para o futebol relembrou a vontade demonstrada pelos sócios na mais recente Assembleia Geral para responder.

“Os sócios já responderam a essa questão. Somos muito acarinhados por toda a gente. Os sócios do Belenenses podem ter todos os defeitos do mundo, mas quem estiver aqui com espírito de missão, respeitando os valores do clube e os valores pelo qual a instituição foi fundada só recebe carinho e é isso que temos recebido. Mesmo nos insucessos, porque também os temos, é normal. Não acertamos sempre e a verdade é que temos recebido carinho mesmo aí. Os sócios sabem que têm, na sua direção e nos seus profissionais, pessoas sérias, trabalhadoras, que respeitam os desígnios pelo qual o clube foi fundado e acreditam nisso e, por isso, veem um futuro brilhante. Eu só tenho de acompanhar essa ambição e nós estamos aqui como suporte para essa ambição enquanto nos quiserem cá. No dia em que não nos quiserem cá vamos ter de procurar outra casa para desenvolver o nosso trabalho. Os sócios fazem parte da história do clube e são parte integrante dos processos. Temos todas as condições para estar ao mais alto nível no futebol nacional, mas estamos muito limitados no nosso crescimento. Os sócios querem mudar isso e nós estamos com eles”, concluiu.