Prolongamento
Cair no abismo com os olhos em bico
2017-06-09 20:30:00
Atlético Clube de Portugal desceu aos campeonatos distritais

Um estádio triste e acabado, com um silêncio pesaroso. Um clube em queda-livre. Adeptos desligados. A chama do bairro apagada. Este é o retrato do Atlético Clube de Portugal, histórico emblema lisboeta, do bairro de Alcântara, que desceu, na passada semana, aos campeonatos distritais, já depois de ter descido da II Liga para o Campeonato de Portugal, no ano anterior.

7 de junho, Alcântara. Irrompemos, à confiança, pelo acesso restrito a atletas, árbitros e dirigentes, com a passagem para as bancadas de pedra a poucos metros de distância. Acesso aberto e desimpedido. À mercê, portanto. O Bancada é recebido pelo Sr. Guilherme, sócio n.º 47, funcionário do clube e ex-motorista dos alcantarenses. Os problemas na vista afastaram-no das funções que tinha, mas garante que continua a conseguir ver um Atlético a cair e uma Tapadinha... a ruir. “Mas ali o símbolo está novinho, pintei-o há pouco tempo”, adverte.

O Estádio da Tapadinha, outrora dos palcos mais vibrantes do futebol português, brinda-nos com um silêncio confrangedor e uma moldura desgastada. O velhinho estádio já foi um dos palcos mais intimidantes e castiços do país – “punha até pessoas a ver o jogo penduradas nos muros e nas árvores” –, alicerçado na força das gentes de Alcântara. “A jogar no nosso campo ganhávamos os jogos quase todos. O campo é grande, as equipas ficavam todas rebentadas quando cá vinham. Agora é que não vem cá ninguém, ninguém vem ver os jogos”, diz o Sr. Guilherme. 

Descemos a rua e, à porta da Junta de Freguesia de Alcântara, o Sr. Joaquim confirma a força da Tapadinha: “Antigamente, os adversários entravam no bairro para vir cá jogar e ficavam logo com o cu apertadinho”. Esse Atlético, vimos, ouvimos e sentimos durante essa manhã, já não está enraizado no bairro.

Quando falo deste Atlético vêm-me as lágrimas aos olhos. Deixei aqui ficar sangue, suor e lágrimas”. A declaração exclusiva é de Manuel Candeias, ou só Candeias, uma lenda do clube e jogador com mais partidas feitas pelo Atlético Clube de Portugal.

A cerca de três meses de comemorar o 75.º aniversário, o Atlético CP, com 24 participações, ainda é o 14.º clube com mais presenças na Primeira Liga.

40 anos. Fez, há poucas semanas, 40 anos desde que o Atlético disputou um jogo na Primeira Liga. Desceu em 1976/77, passando, desde aí, a alternar entre o segundo e terceiro escalões do futebol nacional. Mas nunca abaixo disso e nunca no abismo para o qual caiu agora. Para o ex-treinador do clube, António Pereira, o “Mourinho dos distritais”, “o Atlético acabou”. “Não tem sócios, ninguém vai à bola. Andaram a fazer figuras tristes, neste ano, a levar aos 6, aos 7, aos 8. Se um dia chegarem aos campeonatos profissionais, eu já cá não estou”.

Um clube com chama popular alcantarense. Com adeptos fervorosos. Com mística. Com um campo intimidante. Um histórico. O que leva, então, ao abismo de um emblema assim?

“Os chineses deram cabo de um clube histórico”

O Bancada entrou num café, em Alcântara, e, à pergunta “algum dos senhores é adepto do Atlético?”, recebeu um mordaz: “Deste Atlético, não sou. Do antigo, sim”. O sr. Carlos, à mesa com um seu homónimo, completou o diagnóstico: “Fui sócio, mas agora já não, por causa daquela seita que lá entrou”.

A entrada dos chineses foi péssima. Mais valia termos ficado como estávamos”, defende, em tom sereno, o dono de uma papelaria alcantarense, recordando ainda o estado das instalações do clube: “Os chineses disseram que iam mudar tudo, que iam colocar cadeiras novas… nada. As casas de banho são uma vergonha, uma pessoa ainda tem de urinar para a parede”.

A visão dos sócios – e ex-sócios, também – não é distinta da dos profissionais que têm passado pelo clube. Azevedo, ex-guarda-redes do clube (fez parte da última equipa do Atlético na primeira divisão), concorda que “os chineses estragaram aquilo tudo”.

Mais longe foi António Pereira, ex-treinador. “O investimento chinês na SAD foi benéfico ou prejudicial para o clube?”, pergunta o Bancada. “Investimento? Mas qual investimento? Eles deram cabo de um clube histórico. Jogadores e treinadores não têm culpa nenhuma disto. O grande culpado é a SAD”, respondeu.

As palavras são fortes, mas não tão fortes como a ligação inevitável entre a entrada de investidores chineses e a queda do clube. Em 2013, a Anping Football Club, empresa sediada em Hong Kong, comprou 70% da SAD do clube, ficando com a tutela do futebol profissional. O conhecido treinador Nelo Vingada (também jogava na última equipa primodivisionária do Atlético) chegou a passar fugazmente pela direção do clube, devido às boas relações com os investidores chineses. Vingada recusou falar ao Bancada, mas, em entrevista ao "Record", em 2013, explicou a base das intenções dos investidores chineses em Portugal: “Qualquer jogador chinês que passe por um clube estrangeiro passa a ter mais valor e terá uma recepção melhor no mercado”.

A partir de 2013, foi sempre a descer. Os insucessos desportivos foram uma pequena agulha no enorme palheiro que era a queda do clube de Alcântara.

O Atlético Clube de Portugal chegou a ser impedido de jogar na Tapadinha. Impedido pelo… Atlético Clube de Portugal. O diferendo entre o clube e a SAD – que deveriam, em prol do sucesso desportivo, ser uma e a mesma coisa – levou ao corte de relações entre os investidores chineses, da SAD, e as várias equipas diretivas, do clube. Como a SAD não pagava pela utilização das instalações do clube, a direção impediu a equipa de futebol de treinar e jogar na Tapadinha (Fófó e Real SC foram alguns dos clubes que deram a mão ao aflito Atlético). A SAD sempre se manteve discreta, de pulso firme e com uma estratégia de comunicação totalmente fechada.

Para Candeias, histórico do clube, “a morte do Atlético começou com o investimento chinês”. “O Atlético vai acabar”, prevê, tal como Mário, outro adepto abordado num café alcantarense: “O Atlético nunca mais lá chega. Eles fod.... isto tudo”.

O diagnóstico de Candeias é feito de forma simples, tão simples como as raízes do clube do bairro de Alcântara: “As dívidas que existem ficam para o clube, o lucro fica para os chineses”.

A visão das gentes de Alcântara e dos ex-atletas e treinadores não coloca os responsáveis da SAD num patamar de grande popularidade. A visão da nova direção do Atlético, no entanto, é mais compreensiva. Ricardo Delgado, eleito presidente do clube há três semanas, assume que ainda não consegue definir financeiramente a qualidade do investimento chinês. Em termos desportivos, no entanto, é claro: “Sei que em termos desportivos foi zero. Sei que o Atlético não foi feliz com a escolha deste parceiro e desportivamente perdeu imenso. Isso é o que posso dizer, por enquanto”.

Também tu, ponte? Também tu estás contra o Atlético?

Para além do descrédito que o clube ganhou junto dos simpatizantes, algo que contribuiu para o afastamento das pessoas do bairro, Ricardo Delgado aponta ainda outro fator responsável pela queda do Atlético: a ponte 25 de abril.

Recuemos meio século. Em 1966, Américo Tomás e António de Oliveira Salazar inauguraram a ponte que recebeu o nome do então presidente do Conselho de Ministros. A ponte Salazar, mais tarde rebatizada ponte 25 de abril, foi, segundo Ricardo Delgado, um momento de mudança para o Atlético Clube de Portugal.

A ponte penetra pela freguesia de Alcântara e, para o atual presidente da direção do clube, “levou muitas pessoas a saírem do bairro, para irem morar para a margem sul ou para outras zonas de Lisboa”. “Alcântara mudou, com a inauguração da ponte, e as pessoas desligaram-se do clube”, acrescenta. E mudou mesmo.

Em 50 anos, morreram pessoas, nasceu uma nova Alcântara e foi morrendo, aos poucos, o Atlético. “As pessoas mais antigas acabaram por falecer e Alcântara, agora, é uma freguesia muito jovem e pouco identificada com o clube”, justificou, tal como Candeias, que argumenta de forma semelhante: “O Atlético não soube puxar as pessoas e os mais jovens. O Atlético parou no tempo”, assume, com voz embargada.

Solução? Benfica e Sporting, deem uma mãozinha, por favor

Candeias acredita que o reerguer do Atlético pode estar dependente da ajuda proveniente dos gigantes de Lisboa.

A salvação do Atlético chama-se Sporting Clube de Portugal e Sport Lisboa e Benfica”, disparou, antes de explicar: “O Sporting e o Benfica têm equipas B, mas seria mais proveitoso espalharem esses jovens jogadores por equipas como Atlético, Oriental, Torreense, Sintrense ou Estrela da Amadora, dado que ajudariam a dar vida a esses clubes e valorizariam na mesma os seus atletas”. “Com esses miúdos, o Atlético começaria a subir lentamente”, concluiu.

Visão semelhante, embora não tão redutora, tem o presidente Ricardo Delgado, que assumiu o objetivo de encetar contactos com esses clubes. “Isso ajudaria. Traria jogadores com qualidade, que clubes desta dimensão não podem ter e traria também mais visibilidade”, defendeu. “Claramente pensamos nisso, mas primeiro temos de mostrar que temos condições para receber esses jogadores e esses apoios. Aí sim, os clubes olhariam para nós e pensariam que podemos ser um ponto de valorização dos seus jogadores”, explicou, indo ao encontro da já referida questão da urina, das bancadas de pedra e das casas de banho sem condições.

Candeias apela ainda a um movimento geral de apoio: “O Atlético pode lá chegar pedido apoio a nível nacional. E, claro, pedindo às gentes de Alcântara e Santo-Amaro que ajudem o clube. Caso contrário, o meu clube do coração será extinguido”.

Brindemos ao que os une

Fundação, “Tapadinha infernal”, finais, ponte Salazar, travessia no deserto, chineses, abismo. Esta sequência, em traços gerais, permite ilustrar a história do Atlético Clube de Portugal.

Depois das finais da Taça perdidas na década de 40 (frente ao Sporting, em 1946, e Benfica, em 49), o clube estabeleceu-se como um dos principais emblemas nacionais. O “inferno” da Tapadinha, o tal campo que amedrontava os adversários, acabou por arrefecer e deixar as pessoas fugirem dos ainda atuais e pouco confortáveis assentos de pedra.

Nos castiços cafés de Alcântara, contam os mais velhos, muitos brindes se fizeram às vitórias do Atlético. Sigamos o cartaz da Tapadinha e brindemos, então, ao que os une: Ainda há Tapadinha. Continuará a haver Alcântara. Resta saber se ficará por cá o Atlético.