Portugal
Ramires foi dos sacos de areia à lealdade ao Benfica, com uma gafe pelo meio
2018-08-23 22:00:00
Só com este jogador é que Jorge Jesus conseguiria montar aquela ideia aparentemente suicida.

A imprensa voltou a falar do interesse do Benfica em Ramires. A história já tem, pelo menos, duas semanas e, inicialmente, deixámo-la cair. Agora, os rumores parecem mais consistentes e, sobretudo, insistentes. Vamos lá, então, saber quem é este rapaz. O Bancada falou com Gladstone (lembra-se dele?) e Rafael Gatti, dois ex-colegas de Ramires, que nos contaram umas coisinhas sobre o brasileiro. Já lá vamos.

O jogador já chegou a dizer, ao jornal "A Bola", que “para voltar a Portugal seria, com certeza, para jogar no Benfica”. Antes disso, ia fazendo asneira. A história é simples: o médio brasileiro assumiu-se como uma das estrelas do Cruzeiro e despertou a atenção de vários clubes europeus. Aproveitando a desconfiança dos tubarões (nessa altura havia mais resistência a arriscar em brasileiros), o Benfica chegou-se à frente. Cerca de sete milhões de euros na mesa e Ramires na Luz.

Acontece que, pouco depois, o jogador cometeu um deslize. Falou do Benfica como uma montra para ser observado pelos grandes europeus e, de imediato, os adeptos torceram o nariz à forma como o brasileiro olhou para o Benfica: um trampolim para a Europa. Uma “malandrice” – ou gafe discursiva, se preferir –  que poderia ter custado caro ao jogador, mas não custou. Ramires encheu as medidas ao terceiro anel. Como? Usando o que a vida lhe ensinou.

Não teve uma vida fácil e passou fome, morou com 12 pessoas numa casa de dois quartos e dividia a roupa com o irmão. Com 15 anos, já trabalhava como assistente de pedreiro, a carregar sacos de areia e pedras. Trabalhava das 8h às 16h e, depois, pegava na bicicleta para ir treinar. Gladstone, central que passou pelo Sporting, em 2008, garante, ao Bancada, que todo este contexto ajudou a formar o futebolista que Ramires é. A história de vida dele é de motivar qualquer um (…) uma história de muitas reviravoltas e muito suor. Não desistiu perante as dificuldades e também demonstra isso dentro do campo, nunca desistindo dos lances”, explica-nos.

“Muitas das vezes nem participava nos treinos”

Para o central, este cariz esforçado foi parte do motivo pelo qual Ramires vingou na Luz. “É um jogador que nunca desiste dos lances, sempre com muita entrega e profissionalismo”, explica. De facto, como nos disse Gladstone, Ramires conquistou os adeptos com o grande pulmão que tinha. Agressivo, intenso e com uma resistência notável, acabou por ser uma pedra fundamental para Jorge Jesus. Já lá vamos.

Gladstone recorda a história da chegada de Ramires ao Cruzeiro, para ilustrar esta resiliência e comprometimento do médio brasileiro. “Lembro-me de que ele chegou ao Cruzeiro sem ninguém o conhecer e como moeda de troca, pois o Cruzeiro tinha cedido um jogador ao Joinville em troca de outro e, com esse atleta, veio também o Ramires. Chegou ao Cruzeiro sem jogar e, muitas das vezes, nem participava nos treinos. Mas com muito trabalho e comprometimento foi ocupando seu espaço”.

Ramires é um médio. Nunca foi o clássico volante brasileiro (vulgo número 6), nem um criativo. Era, sim, o médio de transição com o qual Jorge Jesus conseguiu montar um losango de tração à frente, por muitos considerada uma tática suicida. Lembra-se dessa equipa?

Num 4x4x2 losango em que um dos médios é do tipo Aimar – um criativo sem especial agressividade sem bola –, é imperativo que os interiores ajudem o médio defensivo. Caso contrário, é um desequilíbrio tremendo. O problema é que arranjando um médio interior que ajude bastante defensivamente, a equipa pode ficar coxa de criatividade exterior (mesmo com laterais ofensivos). Solução? Ramires.

O brasileiro fazia autênticas piscinas ataque-defesa e defesa-ataque, durante 90 minutos, e foi, possivelmente, a pedra mais fundamental para que aquele 4x4x2 de Jesus pudesse fazer sentido. Sem o pulmão e a disponibilidade de Ramires nos quatro momentos do jogo, aquilo dificilmente daria bom resultado. Havia Ramires a dar jogo exterior, havia Ramires a surgir em zonas de finalização, havia Ramires a morder calcanhares, havia Ramires a desarmar e havia Ramires a ajudar Maxi. Havia Ramires em todo o lado.

“Ele era pato novo e perdia sempre”

Mas voltemos à parte humana da questão. Rafael Gatti também se cruzou com Ramires no Cruzeiro e garante-nos que se trata de uma pessoa rara. “Era muito tímido, mas com o tempo foi-se soltando. É uma pessoa muito honesta, humilde e com um caráter ímpar”, define, ao Bancada.

Ramires, dizem-nos, sabe cair no goto dos adeptos. Antes de convencer a nação benfiquista, já tinha convencido a não menos exigente “torcida” do Cruzeiro. “Aos poucos foi ganhando o seu espaço na equipa do Cruzeiro, tornando-se titular absoluto. Caiu nas graças da torcida como um jogador de muita raça e com uma técnica muito boa”, recorda Gatti, tal como Gladstone: Ainda hoje, no Cruzeiro, é muito respeitado pelo trabalho que exerceu por lá. Sempre com muita entrega e profissionalismo”.

Depois do Benfica, o Chelsea. Seis anos em Inglaterra e, uma vez mais, adeptos conquistados. Adeptos e… dinheiro. Em Londres, Ramires teve um salário chorudo, sim, mas isso não o impediu de fazer mais uns trocos.

Foi o próprio quem o contou, ao Globoesporte, falando das apostas que fazia com o brasileiro Kenedy. "O Kenedy gostava de fazer apostas comigo, mas ele era pato novo e perdia sempre. Na última, a gente estava no centro de treinos e eu disse-lhe para colocar uma bola na cabeça, que eu ia acertar ela com um remate de longe. Quem acertasse primeiro levava um ‘trocado’. Dei um chuto certeiro e ele não acreditou. Fizemos até um vídeo que acabou viral. Estou com saudade dele, a aumentar a minha caixinha de final de ano (risos)”.

Apostas ganhas no Chelsea, dinheirinho na conta na China e, agora, o possível regresso ao futebol "a sério". 

A alcunha óbvia

A terminar, perguntámos a Gladstone se se lembrava de alguma alcunha de Ramires. O brasileiro falou do “queniano” e mal sabe ele que, por cá, isto pegou mesmo. “Às vezes brincávamos a chamar-lhe “queniano”. Ele parecia aqueles corredores da maratona, muito magro e com muita corrida. Mas a alcunha não pegou…, conta-nos.

Não pegou? O certo é que os adeptos do Cruzeiro passaram a chamar “queniano azul” a Ramires e, em Portugal, a alcunha continuou a ser falada. Agora já sabemos de onde vem.