Portugal
Fernando Valente: um idealista para devolver a elite à Póvoa com marca de autor
2018-12-05 21:00:00
F. Valente é um "herói de culto" do futebol português. Defensor fiel do futebol positivo, regressa agora a Portugal.

Depois de Miguel Leal, Dito, Carlos Pinto e Eurico Gomes, Nuno Capucho tornou-se esta semana no mais recente treinador a terminar a ligação que encerrava ao antigo clube na segunda liga portuguesa. O antigo extremo, antigo internacional português, foi agora substituído por Fernando Valente, técnico portuense de 59 anos, que depois de uma passagem pela China ao serviço do Shandong Luneng, volta a orientar um clube português depois de Paredes, Lousada, SC Espinho, Aves e Santa Clara. Um homem de convicções futebolísticas fortes que procura agora devolver a elite do futebol à Póvoa do Varzim sob o selo do futebol de autor.

Defensor do futebol positivo e do futebol ofensivo, Fernando Valente é, à imagem de Luís Castro, um dos fenómenos de culto da análise tática e futebolística em Portugal. Por onde passa, as equipas de Fernando Valente são invariavelmente dos conjuntos com maior personalidade e identidade fruto de uma abordagem muito pessoal do técnico de 59 anos que, apesar de não ser mais um técnico jovem, abraça a tecnologia numa metodologia altamente modernizada. Com um percurso futebolístico que se iniciou no FC Paços de Ferreira, desde cedo que Fernando Valente percebeu que era no treino que via o futuro. Aos 24 anos já tinha o nível I, e desde 1999 que tem o nível IV de treino.

Foi, aliás, devido a Luís Castro que Fernando Valente abraçou o projeto chinês que prefaciou o regresso a Portugal, um convite que muito o surpreendeu como recordou ao Mais Futebol: “Fui convidado pelo Luís Castro, que tinha sido abordado para orientar uma das maiores academias de formação chinesas. Foi uma surpresa e senti-me honrado. Perguntei se era mesmo eu quem queria contactar. Não faltavam treinadores. No entanto, foi à procura de alguém com um determinado perfil. Aliciou-me ajudar os jogadores a fazerem o salto para o futebol profissional. Ele, infelizmente, acabou por não seguir”.

Para Fernando Valente, no futebol, o importante é ter o jogador como o centro do jogo, valorizando-o. Defensor de um estilo de jogo ofensivo e associativo - naturalmente, vê em Guardiola o expoente máximo da filosofia -, afirma ter sido a experiência como futsalista que mais o influenciou na forma de entender como o futebol deve ser jogado. Ainda hoje assume que muitas das metodologias presentes nos seus treinos foram trazidas do futsal. Especialmente importantes na hora de “ultrapassar equipas em bloco baixo e a fugir da pressão que os adversários me colocam nos corredores”, como explicou em entrevista ao portal WiCoach quando ainda era treinador do Santa Clara.

É na organização ofensiva que Fernando Valente diz perder mais tempo e afirma ficar surpreendido por muitas vezes ser confrontado com jogadores de 30 anos que não sabem lidar com os princípios básicos do jogo, algo que, segundo o próprio, diz muito daquilo que é a formação do futebol em Portugal. “Entendo que o ter bola dá muito mais trabalho do que não ter, preparar e organizar os jogadores para assumirem essa vontade, é uma tarefa desgastante, porque é um processo que nunca está terminado… Trabalho as relações entre os jogadores em vários contextos de jogo, ao exemplo de qualquer organização ou estrutura coletiva (equipa) é necessário que os intervenientes se relacionem de uma maneira organizada e sintonizada na busca de um resultado coletivo e isso requer um aperfeiçoamento constante, de maneira que o processo ganhe dinâmica e inspire confiança e autonomia a quem participa…”, explica em entrevista ao mesmo portal.

Ao longo da carreira, porém, admite ter-se encontrado com dificuldades em implementar o seu modelo, muito por culpa da experiência anterior dos jogadores que encontra “e que impedem os jogadores de perceberem que o jogo, lhes pode dar um sem número de oportunidades de melhorarem o seu desempenho e poderem atingir níveis de rendimento superiores…os que descobrem essa nova realidade transformam-se, desfrutam e acrescentam valor ao seu desempenho, que em muitos casos lhes permitem melhorar a sua situação financeira, atuando em campeonatos mais competitivos”, culpa de uma abordagem muito cultural na forma como foram imprimidos estímulos aos jogadores até então.

“Já assumi publicamente noutras ocasiões que o nível do jogador português está muito acima do nível do Jogo praticado em Portugal e isso é culpa dos Diretores e Treinadores, porque a luta pelos pontos, a insegurança do posto de trabalho, a falta de condições de trabalho e essencialmente a falta de ideias na elaboração de projetos desportivos que não estejam dependentes, exclusivamente, dos resultados desportivos. Em todos os clubes por onde passei fui assobiado, no inicio do campeonato, porque todos querem a bola em cima da baliza, mas todos sabem que a maior parte das vezes é dar a bola ao adversário, por isso não me conformo com situações de jogo em que a maior parte do tempo passo o jogo a dar a bola ao adversário e a correr atrás dela. Uns dizem que deram a iniciativa ao adversário, outros dizem que foram pragmáticos… Gostava de saber como se treina isso, o pragmatismo…?”, desabafa.

“A maior parte dos Treinadores elogia a sua equipa porque, ‘tivemos atitude, soubemos sofrer…’ ‘corremos e lutamos até à exaustão’, ‘os jogadores deixaram a pele em campo’, ‘tivemos que lutar e correr mais que o adversário’... é só sofrimento. Os jogadores estão em campo para jogarem com uma bola, se não tiverem bola não se chama futebol… Por isso acredito que é uma questão cultural, que se devia desenvolver desde a formação, a vontade de ter a bola e dar prazer a quem joga e a quem vê. Será sempre a partir desta cultura de promoção do bom jogo que se devem construir os tais “modelos de Jogo“ que serão sempre um conjunto de princípios variados que nos fazem evidenciar essa cultura”, defende, ao bom estilo de Quique Setién.

Para Fernando Valente, não existem “esquemas táticos alternativos”, mas sim um conjunto de dinâmicas que permitem às suas equipas outro tipo de versatilidade. Já dizia Guardiola, plano B, é fazer o Plano A melhor e fazê-lo funcionar. “Não partilho dessa visão, que é preciso ter um esquema alternativo para mexer com o jogo ou em função das características de determinado adversário ou resultado…Trabalhamos relações e inter relações entre jogadores, sustentadas e orientadas dentro de uma estrutura posicional que permite aos jogadores desenvolverem vários tipos de dinâmicas que serão sempre influenciadas pelas características dos jogadores, mais ofensivas ou menos ofensivas, sem perderem o equilíbrio e a capacidade de construírem vários tipos de jogo, o mesmo se aplica quando a equipa está em superioridade ou inferioridade numérica, por expulsão de um jogador”, explica Fernando Valente.

Com formação na área do Coaching e da Programação Neurolinguística, Fernando Valente defende que sem ela é impossível influenciar o seu grupo de trabalho e perceber como funciona a mente em vários tipos de contextos. “O que muitos treinadores não sabem é que não importam os conhecimentos que têm, mas sim o que os jogadores percebem e retêm desses conhecimentos e isso marca toda a diferença. Porque é que na maior parte das vezes os treinadores treinam determinados comportamentos durante a semana e eles pouco se evidenciam nos jogos? Como podes esperar que os teus jogadores evidenciem o seu potencial se eles não confiam nas suas potencialidades e ao mínimo contratempo perdem confiança?”, questiona.

“Exaltar o que cada um tem de melhor e orienta-lo para o sucesso coletivo é realmente o grande desafio do meu trabalho, além de pensar que há um caminho a explorar que pode marcar toda a diferença na metodologia de treino do futuro: a Programação Neuro –Tática que te ajuda a desenvolver conceitos táticos que atuam no teu consciente e que terão como objetivo aumentar a tua capacidade de decisão, na resolução dos vários ‘problemas’ que o jogo e o treino te colocam constantemente”, defende.

Um estudo recente do CIES, Observatório do Futebol, revelou que a Liga Portuguesa é, de entre as principais ligas europeias, aquela com menor percentagem de tempo útil de jogo, algo que para Fernando Valente é uma questão cultural que urge ser resolvida pelos próprios treinadores portugueses, criticando o ambiente e partilha nula de conhecimento existente em Portugal entre os homens da classe, mas “muito mau mesmo é o contributo que os Treinadores portugueses têm dado para a melhoria do jogo e do espetáculo. O jogo praticado em Portugal é pouco atrativo, tirando raras exceções, o que não contribui para trazer pessoas ao estádio”

“Temos uma cultura de seguidismo ideológico, somos facilmente influenciados por ideias dos outros e procuramos pratica-las em contextos onde elas não fazem o menor sentido. Acredito na modelagem de modelos de sucesso, mas que sejam adaptáveis a várias realidades. Centenas de treinadores foram formados em Portugal, nos últimos 20 anos, a ouvir sempre os mesmos preletores e as mesmas ideias. Quando há gente a precisar de créditos são sempre os mesmos a darem formação e a falarem repetidamente das mesmas coisas, quando os que estão no ativo e a inovarem não aparecem, ou não os convidam… porque será?”, pergunta-se.

“Eu acredito na inteligência do jogador. Sofremos um golo? É mau, mas não vamos perder a organização nem as ideias, porque o jogador sabe o que o leva a resolver o problema. Eu aprendi que o mais importante é a forma como se olha para os problemas, fundamental é o estado emocional com que se olha para as coisas. Se sofrer um golo aos dois minutos e me entrego logo é mais difícil. Se acreditar que sofri o golo mas que ainda falta muito tempo e que ainda posso dar a volta, de certeza que as coisas vão ser diferentes. Muitas vezes sabemos que o adversário é mais forte, mas há sempre hipóteses de responder. Não aceito certas teorias que dizem: “Fomos pragmáticos”. Fechadinhos, cheios de medo, fomos lá a frente e lá conseguimos marcar um golo. Ganhámos 1-0 e fomos pragmáticos. Pergunto: O que é isso do pragmatismo? Como o treinamos? Isso para mim não existe. A minha equipa joga em contra-ataque e em ataque organizado. Joga em ataque rápido, também. Tudo depende daquilo que o jogo dá. Estamos fechadinhos à espera de ganhar a bola. E depois, quando a temos? Como é que ela anda a ser tratada em Portugal? Esta é a parte mais importante. Se não houver bola, não há jogo. Falamos da táctica, dos jogadores, dos adversários, disto e daquilo, mas a bola é que marca a diferença”, explica ao blog Marcas do Futebol.

“Parece-me que agora ninguém quer a bola. Mas se não a querem como vamos jogar? A maneira como tratamos a bola é o mais importante do jogo. No processo de formação são os que tratam melhor a bola que marcam a diferença. Os que tratam melhor a bola são aqueles que têm sempre mais mercado. O que andamos a fazer na formação? Cada vez aparecem menos jogadores destes. Ouve-se que já não há futebol de rua. Eu sei que não há, mas há futebol na mesma, só que nos clubes. No tempo em que os miúdos lá estão e no único momento que eles têm para jogar, anda lá um fulano de apito, que é o treinador, e não os deixa fazer isto e aquilo, retira-lhes o divertimento do jogo. Eu falo nisso e alguns olham para mim desconfiados. Mas o que é certo é que, mais tarde, andamos à procura destes jogadores. Às vezes os meus atletas dizem-me: ‘Ó mister, mas quando não temos a bola temos de ter mais cuidado!’. Eu sei que temos de ter mais cuidado, mas é com bola que as coisas se resolvem. Na indústria do futebol, que é um espetáculo, estamos a andar para trás”, acrescenta.

Fernando Valente tem agora a tarefa de tentar fazer subir o Varzim à primeira divisão, competição na qual o emblema poveiro não participa desde a temporada 2002/03. Sem perder ambição, Fernando Valente garante que não está obcecado com uma chegada à primeira divisão, recusando trair os seus valores e ideais para lá chegar: “Não é importante para mim treinar ou não na 1ª Liga, não é falta de ambição, mas reforçar o que já penso há muitos anos, se merecer vou lá chegar, sempre através das ideias que me fazem acordar apaixonado todos os dias e para um Clube que queira marcar a diferença, acredite em ideias que valorizem a Instituição e potenciem as pessoas que nele trabalhem”.

“Nunca ganhei muito dinheiro com o futebol, mas aquilo que ganhei não troco por nada. O reconhecimento dos meus jogadores, a amizade que criei com alguns, o facto de se lembrarem de mim quando nos encontramos. Lembramos-nos dos bons momentos que vivemos juntos. O futebol para mim é uma maneira de estar na vida. Os valores do futebol, da vivência em grupo, as trocas de experiências, criam relações fortes, de alguma loucura. É isso que marca a diferença, para o bem e para o mal. Há sempre alguém que confunde estas relações, pode até ficar chateado e não gostar. Mas no geral o saldo é muito positivo, porque até a esses eu perdoo (...) Os ressentimentos e as vinganças são coisas que não entram na minha maneira de ser. No final da minha carreira é isso que pretendo, quero deixar a minha marca. Muitos treinadores nunca vão ganhar nada. Não vão ganhar títulos, nunca lhes deram condições para isso. Mas não deixam de ser competentes, não deixam de ter um papel importante. Quando se fala em ganhar, eu pergunto: E aqueles que andam a formar? E aqueles que nunca tiveram uma grande oportunidade? É verdade que para ter oportunidades às vezes é preciso fazer com que as coisas aconteçam”, afirmou ainda em entrevista ao blog Marcas do Futebol.

“Há treinadores que ganharam, mas ninguém se lembra deles. Há treinadores que não ganharam tanto, mas as equipas deles jogavam de uma forma que marcava. Essa é a marca que eu quero. É pelas ideias, é pelo estilo. O tipo pode não ter vencido tanto, mas havia ali qualquer coisa que fazia a diferença”.