Portugal
De Varela a Nereu, as mudanças na baliza que podem “matar” carreiras
2017-10-06 20:00:00
Situação do guardião do Benfica não é exemplo único e há quem fale na necessidade de “poteção” para os mais jovens

A lesão de Júlio César na pré-temporada e a saída de Ederson para o Manchester City abriram as portas da titularidade na baliza do Benfica a Bruno Varela. Após oito jogos e um lance que ditou a derrota no Bessa, o jovem guarda-redes português acabou relegado para o banco, saindo mesmo dos convocados na última jornada. Ao contrário dos exemplos recentes de Oblak ou Ederson, Varela não se conseguiu impor, podendo mesmo levar as águias a olhar para o mercado, de acordo com os rumores que dão o grego Vlachodimos perto da Luz. Uma situação delicada, que, por vezes, pode condenar o futuro de um jovem guardião.

Varela não é um exemplo isolado nos encarnados, que em 2005/06, perante a indisponibilidade de Quim e Moreira, se viram obrigados a apostar no jovem Rui Nereu. Após algumas boas exibições, um erro também poderá ter ditado a saída do jovem ribatejano da baliza, o que se confirmou assim que Quim recuperou. Em janeiro as águias foram ao mercado, contratando Moretto. Nereu nunca mais jogou pelo Benfica, prosseguindo agora a carreira pelas divisões secundárias. Ainda assim, o guardião, de 31 anos, prefere olhar para o lado positivo da história. “Aquela oportunidade abriu-me outras portas, devido a ter grande visibilidade. Penso que me ajudou mais do que prejudicou. Não me prejudicou em nada, muito pelo contrário. Só tenho a agradecer ao Benfica”, admite-nos Rui Nereu.

São vários os exemplos de jovens que cedo tiveram de assumir a pressão de defender a baliza dos grandes. No caso de Vítor Baía, por exemplo, resultou a ascensão de um dos maiores guarda-redes da história do futebol português. Outros não conseguiram o mesmo sucesso, acabando por sair após alguns jogos. Rui Correia ou Luís Vasco, ambos no Sporting, passaram por essa situação. É somente a qualidade que, naturalmente, acaba por fazer este processo de seleção? “Às vezes não é só a qualidade… mas, sim, a continuidade só pode surgir se existir qualidade. Se não há qualidade não tem de estar no clube. Se assina é porque as pessoas pensam que tem qualidade. Sem qualidade é impossível manter-se a titularidade”, reitera Paulo Santos, que, embora numa fase mais adiantada da carreira, foi sacrificado por Octávio Machado após duas derrotas consecutivas do FC Porto em 2001/02, para dar lugar a Vítor Baía, que vinha de uma grave lesão.

Nuno Santos passou igualmente por algo idêntico no Vitória de Setúbal, em 2009/10. Mas na visão do antigo guardião formado no Sporting, a experiência teve um final pior. Foi retirado da equipa após o técnico Manuel Fernandes culpabilizá-lo publicamente por um golo sofrido frente ao Sporting. “A atitude desse treinador acabou praticamente com a minha carreira”, confessa ao Bancada. “Toda a gente viu que a bola tinha saído e o clube até protestou o jogo, mas o treinador, devido ao seu egocentrismo e por estar a jogar contra a equipa do coração, que também era a minha – estive lá 16 anos e quem deveria estar mais lixado com a situação era eu -, quis sacudir a água do capote e culpou-me à frente de toda a gente, dos meus colegas de equipa. Aquilo sentenciou-me, quando no início da época tinham-me ligado da Seleção, porque estavam atentos ao meu trabalho depois de ter começado bem a época”, recorda Nuno Santos. 

“Tive a infelicidade de o fiscal de linha levantar a bandeirola. A bola saiu quase um metro, com o pé meti-a para dentro, o árbitro mandou seguir e o Liedson fez o golo. Ficámos todos incrédulos. Após esse jogo saí da equipa. Na parte final, como as coisas estavam mal, o treinador precisou de mim novamente. Voltei frente ao SC Braga e fiz uma série de bons jogos. Contra o FC Porto estava lesionado e joguei limitado [derrota por 5-2] e voltou a tirar-me novamente quando a permanência estava praticamente garantida. Esse episódio acabou por me matar. No ano seguinte fui para o Portimonense. Estive lá dois meses e fui para a Segunda Liga para o Gil Vicente. Subi com o Gil, mas depois andei sempre a descer até acabar no GD Ribeirão. Quando estava muitíssimo bem, na minha melhor forma, um treinador teve uma atitude dessas, que pode acabar com a carreira de um jogador”, salienta o antigo guardião sadino.

Voltando a Nereu, o atual guarda-redes do SC Freamunde, acredita que não foi pelo golo sofrido frente ao Villarreal CF que Koeman o tirou da equipa, frisando que a mudança na baliza aconteceu de forma “natural”. “Era um miúdo que estava a vir da formação. Tive a minha oportunidade e penso que estive à altura. É verdade que tive a infelicidade de sofrer aquele golo, mas são coisas que acontecem. Penso que não foi por causa disso que saí. Sabia que, com a recuperação, o Quim poderia voltar facilmente para a baliza, pois era um guarda-redes mais experiente e batido”, lembra. Ainda assim, volvidas duas temporadas, Rui Nereu deixou a Luz, sem nunca mais ter vestido a camisola encarnada. “Como é óbvio gostava de ter continuado no Benfica, mas isso já são decisões dos treinadores e não posso fazer nada, apenas continuar a trabalhar e esperar por outras oportunidades”, salienta o guarda-redes.

Para Paulo Santos a solução nestas situações é exatamente a mesma. “Quando perdemos a titularidade nunca é fácil, mas temos de continuar a trabalhar. Não há volta a dar, temos um compromisso com o clube. Quando assinamos não é com a garantia que vamos jogar a titular, pelo menos, acho que não é assim”, refere, antes de lembrar a experiência no FC Porto: “O Vítor Baía é quem é, tem um peso enorme no FC Porto e não só. É um guarda-redes que dispensa qualquer comentário em relação ao valor que tinha. Penso que foi um pouco isso que se passou, mas temos de saber viver com isso. Não vale a pena meter a cabeça num buraco porque vai ser pior. No buraco já estamos… É tão simples como continuar a trabalhar. É a única maneira de ultrapassar um problema no futebol. Se o jogador não estiver feliz onde está, então pede para sair e sai”.

Conselhos sábios de Schmeichel

Para Nuno Santos é importante para os guarda-redes mais jovens terem o apoio dos mais experientes, sobretudo em momentos menos felizes. Foi isso que o lendário Peter Schmeichel fez com ele quando se cruzaram no Sporting. “Na altura aconteceu-me um lance infeliz na Seleção sub-21, que ditou o falhanço na qualificação para os Jogos Olímpicos. Quando regressei ao clube o Schmeichel veio ter comigo e disse que não me queria ver em baixo. Disse-me o seguinte: ‘Quando era mais novo sofri um golo de um lançamento lateral em que quando ia chutar a bola acabei por colocá-la dentro da baliza, num jogo em que perdemos e também fomos eliminados de uma competição. No entanto, o meu percurso é imaculável. A nossa vida é feita de altos e baixos, só temos de pensar que fizemos tudo para melhorar e em dar tudo em prol da equipa. Os erros vão acontecer sempre. Podes defender tudo e se no último minuto dás um frango no outro dia não vão falar do que defendeste’”, recorda Nuno Santos.

“Esta é uma profissão ingrata, mas é a que nós escolhemos. Por isso, acredito que os guarda-redes são os jogadores mais fortes do plantel em termos mentais. Não há guarda-redes que seja fraco mentalmente. Só nas camadas jovens, mas depois com a experiência vão ganhando isso. No entanto, se não existir um acompanhamento, até dos mais velhos, e deixarem um miúdo morrer ele vai sentir-se desamparado e as coisas vão correr mal”, alerta o antigo internacional jovem português.

Já Paulo Santos defende que pressão está sempre presente em clubes grandes, além de argumentar que no tempo dele “era mais difícil um jovem chegar a guarda-redes titular dos grandes”. “Penso que atualmente as coisas são bastante mais fáceis. Quanto à pressão está sempre presente. A partir do momento em que alguém assina por um dos grandes vai ter a pressão sempre presente. Um jogador tem de saber lidar com isso. Só trabalhando de maneira séria e honesta é que pode lidar com isso. Se tiver capacidade para fazê-lo, depois está lá o treinador para escolher o que é melhor para a equipa”, explica.

Também Nereu sente que atualmente existe mais aposta nos jogadores jovens. “No futebol moderno cada vez há mais oportunidades para os jovens. Temos o caso do Ederson que fez duas épocas estrondosas, mesmo tendo um monstro como o Júlio César pela frente”, aponta. Contudo, Varela não conseguiu, pelo menos para já, dar seguimento ao sucesso do brasileiro. “Penso que a saída dele da equipa foi um pouco precipitada. Antes do que se passou no Bessa fez jogos muito bons, não teve culpa nos golos que sofreu e evitou muitos golos, mas são decisões do treinador”, reforça Rui Nereu.

O antigo guardião encarnado acredita que a troca na baliza encarnada até aconteceu para proteger a carreira de Bruno Varela. “Não pode baixar os braços e tem de continuar a trabalhar para que surja outra oportunidade. Claro que os jovens são um alvo mais fácil, mas penso que a decisão do Rui Vitória até foi mais para protegê-lo, não para apontar o dedo”, analisa. Também Nuno Santos sai em defesa do jovem guardião português: “O Varela tem um histórico positivo na Seleção e estava a jogar no Benfica sem comprometer”.

“Existe muita pressão para um jovem num grande, mas não podem tirar um guarda-redes só porque compromete uma vez. É surreal. Vão matar um jovem promissor, que depois vai ter de se levantar mais vezes e ganhar mais estofo para voltar. E se voltar a fazer um jogo pelo Benfica vai estar tudo a olhar para ele a ver se erra novamente. Não é fácil. Poderia ter sido mais protegido. Como se pode ver, não é por causa dele que o Benfica está numa série má de resultados. Não foi por causa dele que perderam 5-0 em Basileia. Vai ser muito mais complicado para ele a partir de agora. Uns conseguem ultrapassar e outros não”, justifica Nuno Santos.

Por seu lado, Paulo Santos acredita que há margem para Varela regressar à baliza encarnada no futuro. “Enquanto estiver no Benfica há a possibilidade de voltar, desde que trabalhe. As coisas, realmente, não estão bem nem para o Varela nem para o Benfica e é natural que o treinador queira fazer alguma mudança. Mas ele não pode ir abaixo, para quando surgir uma oportunidade agarrá-la. Por vezes, temos tendência a dramatizar as coisas, mas a vida é isto mesmo, tanto no futebol como nas outras áreas”, diz o guardião que também passou pela formação do Benfica.