Opinião
Um Marco na Premier League
2017-11-27 14:00:00

Só Paulo Fonseca, no magnífico Shakhtar ao qual voltarei em breve, estará a conseguir algo idêntico ao que Marco Silva tem logrado na Premier League. Treinador jovem, com aquele ar de quem parece acabado de sair do seminário, Silva era um perfeito desconhecido quando chegou ao Hull na época passada, que os ingleses não se interessam grandemente pelo que acontece para cá da Mancha. Desceu de divisão mas mostrou serviço, ao ponto de ser desejado por vários emblemas da liga mais mediática do mundo. Era, ainda assim, no arranque da prova, tido como o primeiro candidato ao despedimento, para mais num Watford que tem contabilizado mais treinadores que temporadas. Curiosamente, quase todos os clubes que chegaram a pensar no português – West Ham, Leicester, Southampton – já despediram o treinador e Silva, o novo português de sobretudo, segue impante no oitavo lugar, cinco pontos acima do nono da tabela. E apesar de alguns jogos em que o resultado foi padrasto face ao futebol produzido - nas derrotas em casa com o Stoke ou no incrível jogo no terreno do Everton - tem só menos dois pontos que o milionário Liverpool de Klopp e menos três que uma das grandes equipas deste tempo, o Tottenham de Pochettino. Fora de casa marca sempre e se valessem apenas esses jogos em terreno adverso seria terceiro da tabela, apenas superado pelo imparável City e pelo campeão Chelsea. Não há maior prova de personalidade de uma equipa: numa Liga como a inglesa não pretende apenas ser forte em casa, antes assume o jogo, em qualquer estádio e qualquer que seja o rival.

Os números falam mas a qualidade de jogo não diz menos, e importa sempre perceber o que precede os resultados. Neste caso é um futebol feito de disponibilidade enorme, que o ritmo a que se joga em Inglaterra não permite hesitações, mas onde os sinais tácticos de qualidade são vários e evidentes. O Watford apresenta dois sistemas operacionalizados em poucos meses, tendo passado do 1.4.3.3 de origem para uma organização de base 1.3.4.2.1 que permite à equipa sentir-se mais segura atrás para, uma vez ganha a bola, desferir os ataques com indiscutível critério. É uma equipa que gosta de ter bola, de a trocar até surgirem os passes de rutura ou rápidas e letais variações de corredor (assim acabou com o Newcastle, numa grande tarde de Zeegelaar), ou seja, cultiva a posse com risco mas, percebendo as próprias limitações de construção e perante situações de pressão do opositor, também sabe jogar mais direto, com recurso prioritário ao grande achado do ano, monstrinho bom pescado no Brasil e que em breve estará numa das melhores equipas do continente. Chama-se Richarlison. É corajoso e potente, demolidor nas arrancadas e terrível nos dribles em progressão, forte nos duelos, competente no último passe e goleador também. É um dos indispensáveis da esquadra amarela, um daqueles por quem vale a pena acender velas para que nada lhe aconteça até à loucura do boxing day. A equipa está longe de ser perfeita – não raras vezes tem sido o maduro guarda-redes Gomes, numa fantástica segunda juventude, a manter em aberto os resultados positivos  – mas é um coletivo que impressiona pela competência do processo, seja no rigor com que domina o espaço e controla a profundidade no momento de defender, seja na mobilidade e na agressividade (boa) que apresenta , com soluções trabalhadas, de cada vez que ganha a bola. As melhores equipas não são defensivas nem ofensivas, são equilibradas e respondem bem em todos os momentos do jogo. Assim é, este Watford, apesar da qualidade discutível de alguns jogadores, agravada por ausências de tomo.

É que a carreira notável tem sido conseguida a despeito das lesões de jogadores fundamentais como Kaboul, o internacional francês que seria o mais valioso central, o austríaco Prodl, que só agora regressa (e que falta fizeram na defesa de bolas pelo ar) e sobretudo Chalobah, uma das grandes contratações e que, no momento da lesão, acabara de ser chamado à seleção inglesa. E falhou também, à última hora, o empréstimo de Slimani, o homem com quem Marco contava para completar o trabalho colectivo, num eixo de ataque reduzido a Andre Gray, um avançado que custou dinheiro mas manifesta alergia ao golo, e Troy Deeney, ídolo supremo das bancadas de Vicarage Road, camisola bem esticada por barriga proeminente, espécie de desenho animado rebelde que sabe colocar a bola mas parece habita um outro planeta, só dele.

Há dois sintomas que denunciam quando algo corre mesmo bem numa equipa. Um é os jogadores parecerem todos melhores. Além dos casos destacados de Gomes e Richarlison, os médios Cleverley e Doucuré – indispensáveis – estão a nível superlativo, Kabasele mostra-se agora um central de qualidade, Kiko Fermenía prova valor, Carrillo e Zeegelaar recuperam o tempo perdido e Pereyra mostra que pertence à elite, assim o físico autorize. E entretanto explode o talento de um esquerdino branquelas chamado Hughes, que o Watford em bom tempo resgatou do Derby County. Quando todos os jogadores parecem melhores, é a equipa que está melhor. E depois é ouvir o que eles dizem. Não há quem não valorize a equipa técnica (com mais três portugueses) e Tom Cleverley, internacional inglês que despontou no Manchester United, não teve pudor em comparar Marco Silva a Alex Ferguson. No estádio em que um outro Sir tem nome na bancada – Elton John, pois claro – serão lembrados durante muito tempo estes dias em que um português de apelido comum, um Silva, construiu uma das melhores equipas da história dos Hornets. A dúvida é se serão dias longos, que o Everton que levar para Liverpool o novo português especial e – dizem os jornais britânicos - até já colocou dez milhões de libras em cima da mesa. E amanhã há um Watford-Man United. A não perder.

PS: Já referi aqui por duas vezes o japonês que encanta em Portimão, Nakajima. Juntem lá mais um nome para seguir: Mabil, do Paços de Ferreira, australiano que nasceu no Quénia mas também tem nacionalidade do Sudão do Sul. E tem futebol. Muito.

Carlos Daniel é jornalista na RTP e escreve no Bancada às segundas-feiras.