Opinião
Sobre a "Neymardependência"
2017-09-09 14:00:00

Ederson saiu do Benfica para o Manchester City por generosos 40 milhões de euros. Paulinho, depois de exílio no futebol chinês, voltou ao futebol europeu, e logo via Barcelona, pelo mesmo valor. O ex-portista Danilo jogará com Ederson nos citizens em troca de 30 milhões na conta bancária do Real Madrid. Dalbert, que há dois anos jogava no Académico de Viseu, para rumar mais tarde ao Vitória de Guimarães, foi do Nice para o Inter por 20 milhões.

Somadas, estas transferências - a segunda, a terceira, a quarta e a quinta mais caras envolvendo brasileiros no mercado de Verão – chegam a 130 milhões de euros. Como Neymar aterrou em Paris por históricos 222 milhões, podemos arriscar, num exercício anatómico livre, que Ederson, Paulinho, Danilo e Dalbert valham, talvez, a perna direita do ex-craque do Barça.

Por outro lado, os clubes brasileiros da Série A do Brasileirão, todos juntos, faturaram na mesma janela, segundo dados do site Transfermarkt, 97 milhões de euros, à custa sobretudo de meia dúzia de negócios envolvendo promessas – Richarlison, do Fluminense para o Watford de Marco Silva, Pedro Rocha, do Grêmio para o Spartak, Douglas Silva, do Vasco para o Girona de Espanha, via City de Guardiola, e Thiago Mendes e Thiago Maia, dois caprichos de Marcelo Bielsa no Lille (Vinícius Junior, ainda mais promessa, conta como transferência de 2018 ou 2019). O Brasileirão inteiro equivale, pois, segundo o mesmo exercício livre de desmembramento anatómico, ao resto do corpo de Neymar.

Pode-se argumentar que o “negócio Neymar” foi um ponto fora da curva. Mas é a voz do mercado – e o mercado é a única voz que se ouve no mundo, no futebol e não só, para o bem e para o mal.

No Brasil, portanto, Neymar não tem par. E isso, seria natural, não fosse inédito. Nunca antes da história do futebol brasileiro, um rei reinou tão absoluto. Nem ele, o rei original, Pelé: em 1958, era apenas o mais novo (17 anos) dos génios que conquistariam o Mundial suiço, atrás do melhor jogador brasileiro da época, Didi, e, na melhor das hipóteses, lado a lado com Garrincha, que assumiria até o protagonismo em 1962. Nos anos 60 e 70, o santista reinou incontestado mas rodeado de príncipes reais como Rivellino, Tostão, Gerson, Jairzinho, Carlos Alberto e outros.

A Era Zico, teve o contaponto Sócrates. E Falcão. Romário, mesmo no auge, conviveu com o alter ego Bebeto. E depois com o início do consulado de Ronaldo Fenómeno, um rei que dividiu a coroa com aristocratas do calibre de Rivaldo, Kaká e, claro, Ronaldinho Gaúcho.

Desde que Neymar chegou ao topo, a pergunta, “quem é o segundo melhor jogador brasileiro?”, antes fácil de responder, tornou-se um enigma. Em 2014 respondia-se “Oscar”, entretanto desaparecido no expresso do Oriente. Havia quem arriscasse “Thiago Silva”, hoje suplente canarinho. “Marcelo? Daniel Alves?”. Laterais para a história, sem dúvida, mas ainda assim isso mesmo: laterais. Surge agora Coutinho, talentosíssimo, mas a aguardar selo definitivo de génio. Talvez Gabriel Jesus. Talvez.

É um problema? Em Portugal a seleção nacional convive historicamente melhor com absolutismos -  Eusébio, Futre, Figo ou Cristiano Ronaldo – do que com partilhas de poder. Mas no Brasil, repitamos, é raro. O peso da camisa amarela é, necessariamente, mais pesado do que a portuguesa – do que a de qualquer outra seleção, Alemanha, Itália e Argentina incluídas. Por isso, colocar todas essas toneladas nos ombros de um só é perigoso. O próprio Neymar já revelou um comportamento excitável, inquieto, esquizofrénico em períodos recentes na seleção. Um comportamento que poderia aumentar na mesma proporção em que se amplia o zoom sobre cada um dos movimentos do jogador de 222 milhões e em que cresce a marcação forte e às vezes desleal dos adversários.

E é aqui que chegamos a Tite. O selecionador, além de dividir com o seu craque o protagonismo no “Novo Brasil”, tem também ocupado a maior parte do seu tempo a contornar a “neymardependência”.  Segundo dados recolhidos pelo blogue do jornalista Paulo Vinícius Coelho no UOL, a assistência de Neymar para o golo de Willian, na Colômbia, foi a sexta da Era Tite. Se somarmos os seus seis golos no mesmo período chegamos à conclusão de que o jogador do Paris Saint-Germain participou, como autor do último ou do penúltimo toque, em 37% dos golos sob o atual selecionador. Com Luiz Felipe Scolari e Dunga, esse índice era de 42%.

Um detalhe? Sim, mas são esses detalhes que forjam um campeão mundial. Conta-se que Joachim Löw começou a festejar a conquista de Mundial-2014, muitos meses antes, quando constatou no seu cronómetro que os jogadores alemães retinham a bola uma média de 1,1 segundos, muito menos do que os 2,8 de quando iniciara a sua gestão.

Num país como o Brasil, tão atormentado pela chaga da desigualdade social, o trabalho de Tite no campo deve ser, afinal, o mesmo de qualquer governante que assuma o Palácio do Planalto: diminuí-la. Usar a importância de Neymar sem abusar: nos dois jogos que faltam para o fim das eliminatórias sul-americanas, cogita mesmo deixar o número 10 de fora para testar a equipa sem ele – porque, afinal, foi sem ele que o Brasil perdeu 7-1. 

João Almeida Moreira é um jornalista português radicado em São Paulo e escreve no Bancada ao segundo sábado de cada mês.