Opinião
Quem salva o Mundo?
2017-11-18 14:00:00
O patrão do AS Mónaco ganhou 232 milhões de euros ao vender uma pintura de Da Vinci como se transferisse um jogador

É um número incrível que, estranhamente, choca menos do que os 222 milhões de euros gastos pelo Paris-Saint Germain para contratar Neymar, no Verão. No entanto, na noite de quarta para quinta-feira, um amante de arte cuja identidade não foi revelada permitiu a Dmitri Rybolovlev realizar uma mais-valia inverosímil. O presidente do AS Mónaco vendeu em leilão o “Salvator Mundi”, um quadro do pintor italiano Leonardo da Vinci, por uma soma recorde de 400 milhões de dólares. Desde logo, os números causam vertigens. No total, com taxas, impostos e comissões, o total ascende a 450,3 milhões de dólares, ou seja, 382,4 milhões de euros, 340 milhões dos quais irão para os bolsos do russo. Uma bela maquia por um quadro de 65x45 centímetros...

E sobretudo um lucro incrível. O oligarca russo ganhou 232 milhões de euros só neste quadro, que comprara por 108 milhões de euros em 2013. Uma cambalhota fenomenal, mesmo no futebol.

A prova? Neste Verão, mesmo realizando o mercado mais prolífico da história do futebol francês, no rescaldo de uma época excecional (campeão de França, semi-finalista da Liga dos Campeões…), o AS Mónaco ganhou “apenas” 261,5 milhões de euros: 101 milhões em compras, 362,5 milhões em vendas, já incluída a de Mbappé.

Mas pronto, deixo-me de números. E no entanto eles têm um sentido. Talvez por ser pouco erudita no domínio das artes e ter plena consciência disso, a maioria da população não se capacita que estas somas nascem da pura especulação, escapam em grande parte aos impostos e nos conduzem a uma privatização da cultura. E porque não conhece assim tanta coisa acerca de futebol mas está convicta do contrário, a mesma maioria da população move-se quando se gastam milhões em jogadores que não fazem “nada a não ser dar chutos numa bola”.

A ideia não é, aqui, comparar Neymar ou Kylian Mbappé a Leonardo da Vinci. Nem mesmo fingir que o futebol é uma arte com a mesma elevação de outras atividades. A ideia é constatar que as despesas sumptuosas no futebol incomodam muito mais do que na arte. Mesmo quando nascem da mesma lógica. A veda do quadro de Da Vinci atingiu estes valores porque é a última obra atribuída ao pintor ainda no mercado. Um pouco como um Bola de Ouro em potência que, se chegasse em fim de contrato, teria propostas salariais demenciais. A raridade faz o valor.

E a especulação fornece a essência a este motor excessivamente potente. O PSG pagou muito por Neymar ou Mbappé porque os seus dirigentes estão convencidos de que tanto um como o outro lhe vão dar a ganhar muitos jogos e, em consequência, bastante dinheiro. O AS Mónaco, por seu lado, construiu um modelo de negócio muito “português”, baseado na pós-formação e na certez de que o mercado do futebol continuará a crescer em valor. Uma espécie de círculo virtuoso económico, que geraria sempre mais direitos televisivos, mais receitas comerciais, etc… Uma mecânica que leva a que um jogador do mesmo nível valha (muito) mais daqui a cinco anos do que aquilo que vale hoje.

É a mesma lógica que empurrou Dmitry Rybolovlev a investir fundos colossais em arte: os grandes artistas são cada vez mais procurados, as grandes fortunas cada vez mais afortunadas. Até quando? É esta impressão de “sempre mais” que magoa a população. As receitas dos campeões, não apenas dos grandes campeões, aumentaram em proporções exponenciais nos últimos 15 anos. E a maneira que eles têm de exibir este sucesso súbito, com compras “bling-bling”, contribui para um certo desgosto.

Dmitri Rybolovlev, o presidente do AS Mónaco, comprou 38 quadros em 2013 a um “marchant” de arte suíço, por um total de dois mil milhões de euros. Depois, apresentou queixa contra este intermediário, que acusa de sobrefaturação no valor de mil milhões. Ninguém, ou quase ninguém, fica encandeado com estes montantes exorbitantes. Ninguém pede que uma parte destas somas seja cobrada em imposto para financiar a arte entre os jovens ou até o apoio a diversos centros culturais. Pelo contrário, em França as obras de arte são excluídas do cálculo para o imposto sobre a fortuna, quase abolido pelo novo governo.

O futebol tornou-se uma máquina de fazer dinheiro plena de excessos. Mas ao menos os salários pagos a Neymar ou Mbappé produzem receitas fiscais não negligenciáveis e as federações aproveitam ainda receitas de patrocínios cada vez mais importantes, graças, entre outros, a marcas de equipamento desportivo sempre glutonas. A economia do futebol cria empregos, riqueza, que ainda que de forma pouco igualitária é repartida. E o topo da cadeia contribui, ainda que modestamente, para uma forma de ligação social, por todo o mundo, através do escoamento. É muito pouco e é necessário que encontremos mecanismos de redistribuição mais eficazes. Mas há também uma grande injustiça sempre que pegamos no futebol como símbolo das derivas da nossa época, quando muitos outros setores mereceriam que sobre eles nos detivéssemos. Em França, por exemplo, o andebol, o voleibol ou o basquetebol “profissional” vivem largamente de subvenções públicas. Será isso mais moral, sob o pretexto de que os jogadores ganham salários “normais”?

O futebol é criticado porque é visionário, universal e, a todos os títulos, uma ilustração cómoda das derivas do nosso Mundo.

Régis Dupont é jornalista do “L’Équipe” e escreve sempre ao terceiro sábado de cada mês no Bancada.

 

Tags: