Opinião
Os fundos e a decisão que pode mudar o futebol mundial
2017-12-12 14:00:00
Perto do que pode passar-se com o caso RFC Seraing versus FIFA e UEFA, o caso Bosman terá sido um simples aperitivo

O início de 2018 vai ser decisivo para o futebol como o conhecemos, um híbrido entre o desporto e o negócio. Não sou, nunca fui, de diabolizar o negócio no futebol: o Mundo é o que é e não volta para trás, por muito que resistam meia-dúzia de saudosistas que acham que podem lutar pelas melhores condições possíveis nas suas carreiras mas que os jogadores de futebol ainda deviam jogar por amor à camisola. O que temos neste momento, porém, é o tal híbrido, em que o futebol reclama condições especiais enquanto desporto, mas quer lucrar à grande como negócio. Em que ataca – e bem – o TPO e os fundos “donos” de jogadores, mas é conivente – e mal – com a falta de transparência no que toca a donos de clubes. É isso que o caso RFC Seraing versus FIFA/UEFA vai colocar em causa.

O caso explica-se rapidamente. O RFC Seraing, clube belga, foi proibido de partilhar passes de jogadores com a Doyen, um dos principais fundos de investimento com interesse no futebol. Como não acatou a proibição, foi castigado com a proibição de inscrever jogadores durante três janelas de transferências e uma multa de 130 mil euros. Durante esse período, o RFC Seraing não pôde sequer inscrever miúdos da formação, uma medida idiota que o clube aproveitou de imediato, até com um intuito um pouco demagógico, para dizer que a proibição estava a afetar o “tecido social” da zona em que está implantado, pois as crianças não podiam começar a jogar futebol.  O clube, representado por Jean-Louis Dupont e Martin Hissel, famosos pelo trabalho feito, por exemplo, no caso-Bosman, saberá a 18 de Janeiro se o Tribunal de Recurso de Bruxelas vai remeter o caso – como é pretendido pelos recorrentes – para o Tribunal de Justiça da União Europeia. E aí, todo o edifício do futebol pode desabar.

Vamos a ver se nos entendemos. A entrada dos fundos de investimento no futebol é uma coisa má. É uma opinião que defendo há muito tempo. A questão é que não a sustento nas mesmas premissas utilizadas pela UEFA e pela FIFA para proibir o TPO (third-party ownership). Os dois organismos que mandam no futebol mundial menciona a necessidade de preservar a “dignidade dos desportistas”, que seria posta em causa se alguém fosse “dono” de um jogador – e isso a mim parece-me um preciosismo. Sabe qual é a diferença entre um clube “comprar um jogador” ou “comprar os direitos económicos sobre o passe de um jogador”? É de caracteres. A primeira versão cabe um título, a segunda não. A mim, o que me preocupa, são a transparência e a fuga de capitais que devem ser do futebol e andam a ser desviados para outras áreas de atividade. Ou se calhar não.

Mas vejamos, ponto por ponto. Se chegou até este ponto do texto sabe certamente que cada um dos principais fundos de investimento que operam no futebol tem um séquito de clubes com os quais trabalha. Geram-se, assim, grupos de interesse. Ora se um fundo é dono do passe de metade dos jogadores de dois clubes em particular, se esses dois clubes vão defrontar-se, se a um deles o resultado é indiferente e o outro precisa desse resultado para não descer de divisão ou para assegurar uma vaga na Liga dos Campeões e dessa forma valorizar os jogadores (que, não se esqueça, são do fundo de investimento), o que impede o fundo de criar condições para que os melhores jogadores de um desses clubes tenham problemas físicos e se vejam impedidos de jogar? Têm razão, então, a FIFA e a UEFA ao proibir o TPO? Sem dúvida. Como teriam se proibissem a participação nas suas competições de clubes detidos por empresas cujos donos não se conhecem ou por empresas que são também donas de outros clubes que possam vir a ser seus adversários. E isso, vá lá saber-se por que razão, a FIFA e a UEFA nunca fizeram, abrindo caminho a fenómenos como os dos clubes de fachada, que já existem desde que Juan Figger os inventou nos anos 80 e não servem para mais nada a não ser para comprar e vender jogadores ao serviço dos principais grupos de empresários.

Depois, há a questão da fuga de capitais. Mas aqui é importante percebermos uma coisa. Qual é o dinheiro do futebol? Entra aí o dinheiro das bilheteiras e da quotização. Podem até entrar as verbas dos diretos televisivos e da publicidade nas camisolas. Mas entram a publicidade nos estádios? Os acordos de imagem? Os posts pagos no Instagram ou no Facebook? O que está aqui em causa é o facto de o futebol querer dois pesos e duas medidas. Quer ser um desporto, para puxar para si mesmo princípios fundamentais do desporto, mas depois quer abranger todo o dinheiro que circula à volta deste desporto, para ficar com a sua fatia. A FIFA e a UEFA querem um desporto puro e transparente? Querem regras específicas que as coloquem ao abrigo das leis que estipulam a livre circulação de pessoas, serviços e capitais no seio da União Europeia? Acho bem que exista uma exceção, mas para o futebol-desporto. O futebol-negócio é outra coisa e não pode ser dirigido com princípios legais de uma qualquer organização de ópera-bufa. Muito menos se a ideia é só poder esconder o dinheiro.