Opinião
O relançamento do Catar na luta pela hegemonia
2017-08-26 14:00:00

O Verão de 2017 fica assinalado por um terremoto nos equilíbrios político-económicos do futebol mundial. A transferência de Neymar do FC Barcelona para o Paris Saint-Germain, concluída por valores (222 milhões de euros, só para o pagamento da cláusula de rescisão) que mais do que duplicam os 105 milhões gastos há um ano para levar Pogba da Juventus para o Manchester United, marca a chegada ao ponto de não-retorno. E a cada vez mais provável transferência de Mbappé do AS Mónaco para o mesmo PSG transportará o clube conduzido por Nasser Al Khelaifi a um gasto conjunto pelas duas operações (entre aquisição dos direitos económicos, contratos dos jogadores em valores brutos, taxas de transferência e pagamento de comissões por intermediação) muito próximo dos mil milhões de euros. Tudo isto, reafirmo, para chegar a apenas dois futebolistas.

Seria já o suficiente para nos deixar preocupados, para termos a certeza de que a máquina já está completamente fora de controlo e que foi infligido um golpe definitivo nos já de si precários equilíbrios económico-financeiros do futebol mundial. Mas há muitos outros aspetos que devem ser analisados para que se entenda o que está verdadeiramente em jogo neste Verão em que a economia política do futebol descarrilou. E estes aspetos têm tudo a ver com o uso do futebol como instrumento de uma política de potência na arena global. Neste sentido, não é possível ignorar que o Paris Saint-Germain se tornou um instrumento político nas mãos do emir do Catar. Continuar a chamar-lhe um “clube francês”, como fazem com orgulho muitos componentes do “establishment” parisiense, a começar pelo Presidente da República, Emmanuel Macron, significa ter perdido completamente o sentido das coisas. O Paris Saint-Germain é um clube que, de francês, já só tem a filiação na Federação Francesa de Futebol. E como se isso não bastasse, age agora como se devesse travar uma guerra solitária contra todos os outros grandes clubes do futebol europeu.

O ataque ao FC Barcelona, feito através do pagamento da cláusula de rescisão para lhe levar um dos jogadores de maior impacto mediático à escala mundial, assinala a rutura de uma concórdia que até aqui os clubes mais ricos e potentes da Europa tinham querido manter. Na última década, estes clubes tinham sabido fazer lobby, constituindo-se como um poder autónomo capaz de influenciar de forma decisiva as políticas da UEFA. As repetidas mudanças de forma de se disputar a Liga dos Campeões foram feitas precisamente graças a estas ações de lobbying, cuja arma principal era a ameaça de uma SuperLiga europeia fora do âmbito da UEFA. O que o negócio Neymar faz é destruir esse lobby. E quanto à SuperLiga, parece que o Paris Saint-Germain pode querer lá chegar pelos seus próprios meios.

Como já disse, o Paris Saint Germain é, na verdade, instrumento de uma política de potência nas mãos do Catar. Quem o gere é um fundo soberano, que faz do clube parisiense a expressão mais visível de uma organização político-futebolística em funcionamento pleno com vista ao Mundial de futebol de 2022. Faltam cinco anos para a competição, um lapso temporal que tanto pode ser breve como muito longo, dependendo de como mudam os cenários da política internacional. Seguro é que neste momento o emirato do Catar atravessa uma fase de dificuldades, devido ao isolamento que lhe impuseram a Arábia Saudita, o Bahrain, o Egito e os Emiratos Árabes Unidos, que acusaram o governo de Doha de ser apoiante do ISIS. A demonstração de força do Paris Saint-Germain surge precisamente nesta fase e apanha o emirato do Catar nesta situação de isolamento. É difícil acreditar que seja uma casualidade. O futebol pode ser um formidável instrumento de propaganda.

Há ainda um último aspeto a sublinhar. Com o início do século XXI, o futebol da Europa Ocidental viu chegar capitais das mais variadas proveniências. Primeiro vieram os oligarcas russos. Depois apareceu a fase dos capitais árabes. Seguiu-se uma terceira etapa, marcada pelos capitais do sudeste asiático, sobretudo chineses, que pareciam poder monopolizar o sistema económico global do futebol. Sucede que essa fase foi repentinamente redimensionada. E finalmente estamos a assistir a um regresso em potência dos capitais árabes, conduzidos pelo Catar. Aquilo que se vê como dado comum a todas as fases é a debilidade política e económica do futebol europeu. Continua a crescer nas dimensões económico-financeiras até chegar a um gigantismo impressionante, mas não consegue garantir grupos proprietários capazes de suportar o esforço necessário. Este é um facto incontestável e diz muito da crescente fragilidade do futebol na Europa. Uma condição que talvez seja irremediável.

 

Pippo Russo é um sociólogo e jornalista free-lancer italiano que escreve no Bancada ao quarto sábado de cada mês