Opinião
O presidente do Sporting e o jornalismo
2018-02-20 14:00:00
Radiografia às intenções de Bruno de Carvalho e ao jornalismo que se faz. Não há vencedores.

Estive na semana passada na sessão de esclarecimento promovida por Bruno de Carvalho. Não por achar que precisava de ser esclarecido acerca dos pontos quer iam estar em discussão na Assembleia Geral, que esses pareciam-me claros e quem tinha de os aceitar ou não eram os sócios do clube, mas porque me interessava debater a filosofia por trás deles. Já aqui tinha escrito que, a meu ver, aquilo que o presidente do Sporting queria era seguir o trilho já encetado há muito tempo por Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira, um trilho que conduz a um clube onde é absolutamente claro quem manda e onde não são tolerados quaisquer indícios de dissensão. A intervenção radical contra os jornalistas, no final da retumbante e previsível vitória na AG, deu-me razão: num contexto totalitário por excelência, toda a comunicação tem de ser controlada, como são os canais dos clubes.

Fiz claramente essa pergunta a Bruno de Carvalho, na tal sessão de esclarecimento. Via ele na ausência de contestação visível a Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira um dos segredos do sucesso de FC Porto e Benfica nos últimos anos? Claro que o presidente do Sporting não poderia nunca assumir, em direto na Sporting TV, que o que quer é fazer o mesmo que já fizeram os líderes de FC Porto e Benfica. Isso seria negar o seu principal suporte ideológico. Disse-o de outra forma: que quer um clube “mais presidencialista”. E que ele o queira, já o disse aqui, é inteiramente legítimo: desde que, como fez, aprove essa intenção nos mecanismos legais. Sou um democrata por natureza, mas não tenho a mania que todas as instituições da sociedade tenham de se reger pela democracia: apesar de não ser crente, aceito que a igreja não seja democrática; apesar de não ser capitalista, aceito que as empresas não sejam democráticas. E os clubes, cada vez mais, são empresas. Se os seus sócios, sejam eles portistas, benfiquistas ou sportinguistas, ficam confortáveis com isso, não vou ser eu a ter algo contra.

No final da AG, porém, Bruno de Carvalho esticou-se em demasia, não sei se por entusiasmo natural, se por crença absoluta nos méritos do controlo totalitário da informação – que seguramente não seria aplaudido pelo seu tio-avô almirante, que tantas vezes cita – ou se por estratégia pura e simples. Quando aconselhou os milhares de sócios a não lerem jornais, a não verem TV, a não consultarem sites de internet, a, basicamente, limitarem toda a busca de informação ao jornal do Sporting, à Sporting TV e ao site do clube, estava a cruzar a linha da cidadania responsável. Porque é estranho que alguém que se queixa de falta de isenção do jornalismo em geral aconselhe a informação sectária por natureza. Porque ao fazê-lo perante milhares de sócios inflamados estava a acicatar a meia-dúzia de “trolls” – aqueles que, no Sporting, em 2001, impediram, por exemplo a entrada de Mourinho, porque fugiram ao controlo do “Master of puppets” – que há em todos os clubes a fazerem justiça pelas próprias mãos. E porque estava a cometer um erro crasso de generalização, como que a negar em absoluto a existência de jornalismo sério, livre e isento.

Ora isso, para mim, é inaceitável e levou-me a uma reação do mais profundo desagrado, em direto, na RTP3. Não lhe retiro uma palavra.

Completo em Outubro de 2018 30 anos de jornalismo, 30 anos desde que entrei pela primeira vez na redação de A Capital. Se há coisa que não sou nem nunca fui é corporativista: nunca subscreverei propostas de boicote à informação nem a favor, nem contra nem acerca de ninguém e, por outro lado, não é segredo para ninguém que não gosto da grande maioria do jornalismo que se tem feito sobre futebol em Portugal nos últimos anos. Mas não confundo as coisas. Nos meus 30 anos de profissão já vi líderes de todos os clubes aconselharem estes bicotes – e tenham cuidado os sportinguistas que virem nesta afirmação razão para rejubilar, porque o que estão a fazer é subscrever a imitação de comportamentos vistos a adversários que foram ensinados a ver como encarnação do mal. E passei os últimos anos a refletir acerca das razões que levaram a que o jornalismo tenha entrado em decadência na sua luta pela sobrevivência, uma sobrevivência em que as redes sociais podem muito bem ter dado recentemente o golpe de misericórdia.

Do que se queixam os adeptos? E atenção que todos o fazem, não são só os do Sporting, como se percebe se se olhar durante uns minutos para o Twitter ou para o Facebook. Queixam-se de falta de isenção e de falta de profundidade nas investigações. Falemos abertamente sobre isso, então.

Quando me falam em falta de isenção do jornalismo desportivo, costumo pedir aos meus interlocutores que desenhem um triângulo, que nos três vértices coloquem os emblemas dos três principais clubes nacionais e que, algures lá no meio, ponham os jornalistas, uns ligeiramente mais para um lado, outros ligeiramente mais para o outro, que nisto não há centro absoluto. É simples: para quem está num vértice, quem quer que esteja lá no meio está sempre demasiado perto dos outros vértices. É, por um lado, uma questão de perspetiva. Por outro, a questão é que a generalidade das pessoas não quer isenção: quer que um elemento neutro apregoe uma visão da realidade que seja concordante com a sua. É por isso que os jornais de clube nunca foram sucessos de vendas: aí, toda a gente reconhece que há um alinhamento forçado, que não valida coisa nenhuma. Ter o jornal ou a TV do meu clube a dizer que os árbitros nos roubam sempre, que os nossos jogadores são sempre maravilhosos, que os rivais são sempre desonestos é tão ridículo que quase ninguém o leva a sério.

Mas então os jornalistas não têm clube? Claro que têm. Têm é de ser capazes de desligar o “chip” no momento em que estão a trabalhar: e sei que a grande maioria deles o faz. Nesse caso, por que razão não o reconhecem? Nestes tempos de predomínio do ódio promovido pelas redes sociais, reconhecer publicamente a simpatia por uma cor não é ser mais honesto – é apenas ser mais parvo, porque diminui a legitimidade do jornalista aos olhos de quem o lê ou ouve. Aliás, se há coisa que tenho dito com frequência a todos os jornalistas do Bancada é que não admito manifestações públicas de clubismo, da mesma forma que condeno que os jornalistas de outras áreas (política, economia, sociedade, cultura…) apareçam nas tribunas VIP dos estádios de cachecol e bandeira ou exponham publicamente reações emocionais a resultados de futebol. Um pivot de telejornal aparecer num estádio de cachecol de um clube é como eu aparecer num congresso a agitar a bandeira de um partido. Aliás, é pior, porque é mais provável que esse pivot tenha de entrevistar o presidente desse clube do que eu tenha de entrevistar o presidente desse partido. E não me venham com tretas do tipo “É só futebol”. Não há aqui “sós”: o futebol é importante na medida em que mexe com as pessoas, em que é uma das principais áreas de exportação da economia portuguesa.

Mais complicada de resolver é a equação económica em que se movem neste momento as empresas de comunicação social. Os jornais desportivos começaram a cair de vendas em 2001 – vendem hoje um terço do que vendiam nessa altura. Quando a queda foi adivinhada, surgiram em Portugal vários consultores, na maioria espanhóis, a apregoar o segredo do sucesso: as boas notícias. Alegavam que o futebol é o domínio da emoção e que as vendas cresceriam se fossem servidas às pessoas várias notícias boas, acerca de quão maravilhosos são os seus clubes. Foi aí que nasceram, por um lado, a subserviência como forma de luta pela sobrevivência e, por outro, a tentação dos clubes (todos, não é só um, que tenho a trabalhar nos três grandes duas mãos-cheias de antigos colegas de redação…) criarem estruturas destinadas a alimentar esta forma de controlo. No limite, é aí que estão as bases de comportamentos lamentáveis que viram a luz do dia na divulgação dos e-mails do Benfica – alguém convenceu os responsáveis dos jornais de que os seus próprios interesses eram concordantes com os dos clubes, quando na maior parte das vezes eles são opostos.

É claro para mim que não podemos querer um jornalismo vigilante e ao mesmo tempo cooperante, que se deixa enredar em notícias avançadas por fontes anónimas muitas vezes com interesses claros na sua divulgação e anseia por sucessos dos clubes mais importantes para os seus leitores para ter boa-vontade entre os dirigentes e apetência de compra nos consumidores. A este respeito, recomendo a leitura do estatuto editorial do Bancada, um estatuto cujo cumprimento já nos provocou dissabores até em clubes mais pequenos, cujos diretores de comunicação, de tão habituados estarem ao anonimato, se queixaram por os termos citado quando estavam “só a querer ajudar-nos”. Obrigado, meus caros, mas percebam uma coisa: nós não somos amigos. Temos o dever de nos respeitar mutuamente, mas em muitas coisas somos adversários.

A diminuição das receitas nas empresas de comunicação social fez o resto da estrada que nos trouxe ao panorama atual. Partilho convosco um segredo. Os dois dias mais fortes em termos de cliques nos oito meses que leva o Bancada foram quando escrevemos, citando a fonte, uma notícia curta acerca da entrevista de Carlos Xavier à revista “4Men”, na qual o ex-capitão do Sporting e ex-treinador-adjunto do Estoril dizia que não tinha dúvidas de que o campeonato de 2005 tinha sido “comprado”, e depois, cumprindo o mais básico mandamento do jornalismo, fomos ouvir o outro lado e falámos com António Figueiredo, que era diretamente visado nas acusações. Foram cinco minutos de trabalho num caso, meia-hora no outro, sempre dentro dos limites do jornalismo honesto. E valeram dez vezes mais cliques do que qualquer trabalho de reportagem que não acenda as luzes do ódio clubista favorecido pelo algoritmo do Facebook, que sabe bem onde está o “engagement”, onde estão as partilhas, os gostos e os comentários. A receita que faríamos em publicidade da Google, nesses dois dias, se não tivéssemos deixado de ter addsense por ser um roubo, não chegaria para pagar a conta mensal do distribuidor de TV e internet que temos na redação.

Claro que as dificuldades financeiras não são, nunca, justificação para que se seja desonesto. Mas ajudam a explicar a depauperação das redações, onde faltam cada vez mais os jornalistas credenciados – mudaram de lado na trincheira e foram trabalhar para os clubes, para os bancos, para a comunicação empresarial… – e abundam os jovens estagiários, onde a receita nunca chega para pagar a despesa e por isso se aposta cada vez mais em conteúdos rápidos e virais em detrimento de conteúdos demorados, elaborados, trabalhosos e, nestes dias de ditadura do Facebook, necessariamente menos proveitosos. Porque você, leitor, partilha mais depressa um vídeo de um jogador a fazer um corte desastrado ou uma entrada assassina que nós vamos sacar ao YouTube do que uma grande investigação que não chegue às conclusões que deseja por serem de acordo com as suas convicções. E hoje em dia, sem partilhas nas redes sociais, não se é lido, porque ninguém vai à fonte: as pessoas leem o que o algoritmo do Facebook lhes mostra. Investigação jornalística? Gosto, sim senhores. Sempre que preciso de me reconciliar com a profissão que escolhi revejo o “Spotlight” ou “Os Homens do Presidente”, releio os livros de reportagem de Ryszard Kapuszinsky e fico ao mesmo tempo apaixonado e com a certeza de que nada daquilo seria possível num mercado pequeno como o português e em tempo de predomínio das redes sociais.

E é aqui que me dizem: ah, mas os blogues fazem essa investigação. Não. Os blogues são parciais por natureza, não fazem jornalismo: alimentam uma determinada clientela, são muitas vezes alimentados por ela sem pudor e não exercem o contraditório. Aceito que os blogues – pelo menos aqueles que concretizam e não se ficam por insinuações mal-intencionadas – fazem uma primeira parte do trabalho e por isso são importantes. Não quero silenciá-los por serem parciais. Não fosse a comunicação (parcial) do FC Porto e não teríamos cá fora o caso dos emails do Benfica, por exemplo. Lamento é que depois a tentação seja sempre a de levar longe demais essa parcialidade, de assumir que só porque alguém um dia pensou pedir dinheiro a um clube para pagar a jornalistas, esses jornalistas foram contactados, aceitaram a proposta e passaram a escrever o que lhes manda a voz do dono. O que falta é dar a essas “denúncias” a credibilidade que só os mais básicos princípios do jornalismo podem dar, nunca de forma cega nem a pedido das partes. Falta a intervenção do jornalismo, que vocês tanto reclamam mas se negam a procurar e, menos ainda, a pagar.

 

PS – Dentro da nossa pequenez, que somos um meio pequenino, o Bancada.pt subiu, de sábado para domingo, 20,52% em utilizadores. De domingo para segunda-feira subimos mais 18,28%. Das duas uma: ou o total de sportinguistas anda a baixar ou os “trolls” são menos do que Bruno de Carvalho achava. Da nossa parte, obrigado pela preferência.