Opinião
O prémio do bom futebol
2017-12-27 14:00:00

É uma das eternas questões do futebol: ganha mais vezes quem é mais eficaz, quem potencia a estratégia e melhor aproveita as fragilidades do adversário ou quem junta a isso as mais-valias estéticas do jogo, o “jogar bem”? Em Inglaterra e em Espanha, a mudança de trono está praticamente consumada e essa passagem de testemunho tem como protagonistas dois projetos que fazem por transformar cada jogo numa ode ao bom futebol: o Barcelona de Ernesto Valverde e o Manchester City de Pep Guardiola.

Em Inglaterra, o Chelsea ainda exibe o escudo de campeão, mas é apenas uma questão formal, porque o título passará, bem antes do ano futebolístico acabar, para os milionários do “citizens”. Nesta segunda temporada, Guardiola está a conseguir exibir todos os recursos futebolísticos que o tornam no melhor treinador do planeta. É redutor falar apenas na forma como tem conseguido potenciar todos os (vastos) recursos, porque a carreira do catalão sempre explicou, com eloquência, que com ele os jogadores parecem todos ainda melhores. Leroy Sané e Raheem Sterling estão a um nível raramente visto, Kun Agüero continua a ser um dos melhores jogadores de grande área do mundo e Kevin de Bruyne é hoje um craque de nível mundial (e candidato à conquista de prémios individuais), surgindo na primeira linha dos “terrestres”, imediatamente abaixo de Messi e Cristiano Ronaldo.

Tudo isto é verdade, mas a temporada impante do Manchester City baseia-se numa filosofia profundamente coletiva, que consegue colocar todos os adversários num patamar de inferioridade, por potenciar um impressionante controlo da posse de bola, enquanto remete o oponente para uma postura de tentativa de equilíbrio defensivo e exploração do contra-ataque. Foi desta forma que o Manchester United jogou e perdeu frente ao vizinho e rival.

Se isto não chegar para explicar a liderança absoluta do City, podemos passar aos números. A equipa de Pep Guardiola já soma 17 triunfos consecutivos na Primeira Liga Inglesa e cedeu apenas um empate, em agosto, frente ao Everton. Em 57 pontos possíveis, o Manchester City conquistou 55, marcando 60 golos e sofrendo apenas 12.

Perante tudo isto, Guardiola diz que a equipa pode atacar de forma mais fluente e criar mais situações de golo. Melhorar o que está perto da perfeição só está ao alcance dos predestinados, mas Pep sabe que as metas da temporada não se esgotam no título inglês, porque os responsáveis e os adeptos do Manchester City querem exportar este domínio para a Liga dos Campeões, onde a equipa inglesa integra o clube restrito dos favoritos, ao lado do Real Madrid, Paris Saint-Germain e Barcelona.

A equipa de Ernesto Valverde exibe uma recuperação sem recaídas e mostra ao mundo um futebol eficaz (e que também consegue ser enleante), que liberta os talentos e sufoca os adversários. No jogo com o Real Madrid, no Santiago Bernabéu, não foi só o resultado (0-3 para o Barça) que cavou a diferença. De um lado, Zinedine Zidane deixou de fora Isco e lançou Kovacic para tentar travar Messi e a construção ofensiva do Barça, mas cometeu o erro estratégico de pensar mais nesse condicionamento do adversário do que no próprio processo ofensivo. Modric era uma espécie de ilha num meio-campo combativo (com Casemiro e Kovacic), mas com défice de talento.

Os adeptos do Real Madrid assobiaram bastante Benzema, que continua com uma preocupante anemia goleadora, mas que não pode ser apontado como o culpado de todos os pecados da equipa de Zidane. O exagero nas referências individuais e a estratégia confrangedoramente conservadora ajudam a explicar este afastamento precoce da luta pelo título. Do outro lado esteve um adversário taticamente coeso e com um conjunto de jogadores que foi capaz de colocar em xeque a segurança defensiva do Real – quando não era Messi, surgiam Luis Suárez, Rakitic, Iniesta e também Paulinho na primeira linha atacante da equipa catalã.

O Barcelona fechou o ano de 2017 com nove pontos de vantagem sobre o Atlético de Madrid, 11 sobre o Valencia e com o Real Madrid a uns inultrapassáveis 14 pontos de distância. O clube catalão vai abraçar a segunda metade da temporada com autonomia alargada na gestão da luta pelo título.

P.S. – Está a ser doloroso o adeus do Boavista e do futebol português a Edu Ferreira, um jovem talento de 20 anos que perdeu a dura luta contra o cancro. Neste momento de profunda tristeza para a família e para os amigos, faz sentido elogiar a postura sem falhas do clube do Bessa em todo este penoso processo, pela forma como apoiou sempre, até ao último sopro de vida, a batalha de Edu.

Manuel Fernandes Silva é jornalista na RTP e escreve no Bancada às quartas-feiras