Opinião
O milagre da multiplicação futebolística
2017-11-23 14:00:00
Histórico do Uruguai no futebol é impressionante para um país tão pequeno e uma nova geração de ouro começa a despontar.

Enquanto todos os outros países têm a sua história para ostentar orgulhosamente, o Uruguai tem o seu futebol. Disse-o, Ondino Viera, um dia. Inglaterra pode tê-lo inventado. Os escoceses tê-lo domado. A Alemanha, tão boa que é a jogar ao mesmo, robotizá-lo. A Argentina ter dado ao mesmo o seu Deus. Ou, o Brasil, recolher para si o epíteto de país do futebol num exercício de auto proclamação perverso. Mas os uruguaios… como os uruguaios amam e veneram o futebol. O seu futebol. Orgulhosos. Vaidosos. Como é justificável que o sejam. A história é inapagável. Irrasurável. Os mesmos uruguaios que, como disse Galeano, ainda hoje fazem os fantasmas do Maracanã chorar. Como disse Galeano, sentemo-nos no Maracanã, vazio, despovoado e, ainda hoje, ouviremos os lamurios de uma nação despedaçada. Culpem Ghiggia. “El Héroe del Maracaná”. Só três pessoas calaram tal monumento futebolístico. O Papa, Sinatra e Ghiggia. Chamaram-lhe o Maracanazo. Perante quase duzentas mil pessoas, o Uruguai voltava a vencer um campeonato do Mundo. Uma nação orgulhosa do seu futebol. Como é bom que seja. Afinal, não há outro como ele. O mais bem-sucedido de todos. O Uruguai.

Três milhões de pessoas, mais coisa menos coisa. Em 1950, menos ainda. Pouco mais de dois milhões. Três milhões de pessoas tem o Uruguai, um número que só por si é batido pelo total de atletas federados do Brasil. O país do futebol, afinal. Deixemos absorver: o Brasil tem tantos jogadores de futebol quanto o Uruguai tem de população. Seja da água que bebem. Dos cereais que colhem. Da carne, da boa carne que criam e consomem. Seja por mero milagre e capricho dos Deuses. Talvez lhes esteja simplesmente nos genes, no sangue. Talvez tenham a fisionomia perfeita para o jogo. Talvez seja apenas milagre e o talento se multiplique. Talvez seja apenas um milagre futebolístico interminável. Uma coisa é certa: no que toca ao futebol, não há país como o Uruguai. Que fez, faz e fará, tanto, com tão poucos.

Se em 2014 o Uruguai surgiu no Campeonato do Mundo do Brasil a ameaçar fazer renascer todos os fantasmas que mais de meio século atormentam o país, fê-lo apresentando no torneio máximo uma equipa envelhecida. Fim ciclo, gritaram muitos. Para Tabárez, o maestro, para muitos dos que lá andavam. Durante o torneio dificilmente alguma seleção apresentou onze em campo tão envelhecidos, chamemos-lhes… experientes, quanto o Uruguai. Tabárez nunca poderia ter feito de outra forma. Grande parte daqueles jogadores eram os mesmos que em 2010 levaram o Uruguai à quarta posição do Mundial sul africano, a melhor classificação dos Charrúas desde 1970. Talvez não chegue a uma dezena, entre 23, o número de jogadores que em 2014 se conseguiu introduzir na convocatória histórica de 2010.

Em 2014, porém, a história não se repetiu. Nem o Uruguai voltou a ameaçar o pódio, ou muito menos, novo Maracanazo. Não. A derrota na primeira jornada perante a Costa Rica colocou o país em sentido. Não era ainda tempo do canto do cisne para Tabárez e seus rapazes. Inglaterra e Itália foram derrotadas e o Uruguai voltou à fase a eliminar da prova máxima. Como lá esteve, sempre, em dez das treze participações em Campeonatos do Mundo. Em 2014 não houve Maracanazo. Pelo menos, não como dantes. O Maracanã não deixou. Vingou-se. O Uruguai caiu. 2-0. Venceu a Colômbia. Tabárez, ao serviço do Uruguai desde 2006, Forlán, Pérez, Ríos, Lugano… Todos tinham de ter chegado a um fim, era tempo de revolução. Não para Tabárez, mas a revolução, essa, está aí à porta e quem ousar fazer-lhe frente, que a abra. Cautela.

O novo milagre futebolístico uruguaio

Se em 2014 Tabárez resistiu à ideia de revolucionar o plantel uruguaio para o Mundial 2014, oferecendo a uma geração especial a possibilidade de vingar o quarto lugar de 2010 e, quem sabe, protagonizar novo momento icónico na história do jogo, em 2018 o Uruguai surge rejuvenescido como há muito não se via. Novo milagre. O talento multiplicou-se. Mais uma vez, o Uruguai surge com uma geração de talento impressionante que só um país muito especial pode fazer florescer. Mesmo que não se encontrem explicações para tamanho milagre de multiplicação futebolística. Este sim, muito provavelmente, o último concerto do maestro Tabárez.

Os últimos meses de Tabárez ao comando do Uruguai não foram fáceis. Apesar da qualificação sul americana para o Rússia 2018 praticamente imaculada (e numa fase de qualificação tão arrebatadora, quatro empates e cinco derrotas em 18 jogos é sinónimo de quase perfeição), vencendo e marcando como nunca o fizera até aqui, as duas últimas prestações do Uruguai na Copa América ficaram aquém do historial daquele que é o país mais titulado da competição. O Uruguai não foi além da fase de grupos em 2016 e mais uma vez as dúvidas surgiram. Será Tabárez, aos 70 anos, o homem certo para liderar o país a novo campeonato do Mundo? O Uruguai respondeu em campo e, na qualificação sul americana, apenas fez pior que o Brasil.

Na Rússia, em 2018, o Uruguai será uma equipa rejuvenescida e leve o maestro as partituras certas para o torneio, a última digressão de Tabárez poderá vir a ser aplaudida de pé. Tal a promessa do que aí vem. Se em 2014 o Uruguai foi a equipa mais envelhecida do Mundial de futebol, perante a Polónia, há poucos dias, a média de idades uruguaia mal ultrapassou os 24 anos. Aos consagrados Maxi, Pato Sánchez, Cebolla Rodríguez, Godín e Cavani, juntar-se-ão nomes em pleno êxtase futebolístico como Muslera, Suárez, Rolán, Coates, Lodeiro ou Vecino, e o que joga Vecino, bem como uma geração cuja promessa é dourada. Gastón Silva. Giorgian de Arrascaeta. José Giménez. Gastón Pereiro. Maurício Lemos. Nahitan Nández. Maxi Gómez. Lucas Torreira. Rodrigo Betancur. Federico Valverde. Federico Ricca ou Gastón Guruceaga. Muitos deles, os mesmos que levaram o Uruguai à final do Mundial Sub-20 de 2013 ou mesmo ao quarto lugar em 2017.

Todos de uma assentada, no culminar de um projeto de Tabárez que foi muito além da orientação da equipa principal de futebol da seleção uruguaia. Como bom milagre, que encontra sempre uma explicação. Como milagre futebolístico que é o Uruguai, com as suas três milhões de pessoas, quinze Copa America, duas Olimpíadas, dois Mundiais e muitos dos mais bem-sucedidos clubes da América do Sul, como o Peñarol ou o Nacional, apenas superados pelos argentinos Independiente, Boca e Estudiantes no que à quantidade de títulos conquistados diz respeito. É que, se a seleção uruguaia faz milagres a nível continental e intercontinental, os clubes não lhe ficam atrás. Um país especial. O mais bem-sucedido de todos os que decidiram jogar ao futebol. O país do milagre da multiplicação futebolística. O Uruguai. Que venha o Mundial. Que é tempo de dar o palco ao maestro e ver o Uruguai jogar.