Opinião
O meu pé esquerdo
2018-02-12 14:00:00

Roubo, roubo no melhor sentido, como se rouba agora nas redes sociais, roubo o título do filme que me fez fã de Daniel Day-Lewis, fã para sempre, neste elogio do esquerdino, o jogador com pé dominante menos comum, espécie de transgressor natural, concretamente no ainda mais justo elogio o lateral esquerdo, parente pobre da genealogia dos canhotos, família alargada liderada por génios argentinos de palmo e meio, Maradona e Messi, Messi e Maradona, no futuro haveremos de citá-los sempre assim, aos dois a par, hoje contudo primazia aos deuses menores da casta, aos que andam abaixo e acima no campo, que sabem da prioridade que é anular o extremo contrário, por regra o mais rápido e criativo opositor, mas a quem se exige que não fique pelo cumprimento dessa missão, que também vá em frente, ataque e desequilibre, pois o metro quadrado está mais caro no jogo – a evolução no tempo mexeu com o espaço – e tem de ser quem vem de trás a desatar o nó, tantas vezes.

Coisas da modernidade, dirão, laterais modernos, mas são assim chamados há pelo menos quarenta anos, o Gordillo já era um lateral moderno, no Bétis e no Madrid, a percorrer vezes sem conta aquele eixo junto à cal da esquerda, peito em riste e meias em baixo, já não há laterais de meias em baixo, como o Briegel também, outro peitudo, mesmo se o Briegel não era bem um esquerdino, nem o Demianenko do melhor Dínamo de Kiev, como também não foram Camanho ou Lahm, e hoje o dia é para dedicar aos laterais mas esquerdinos, canhotos de verdade como Maldini e Roberto Carlos, os melhores que a minha geração viu: Maldini, belo como Cabrini antes dele (porque são sempre mais bonitos os italianos?), o melhor de todos a defender, e Roberto Carlos, explosivo como Marcelo depois dele (porque são sempre mais talentosos os brasileiros?), o melhor de todos a atacar, sempre as duas coisas, defender e atacar. E alinho de memória Stuart Pearce, dos penaltis de desempate, um falhado em lágrimas e outro convertido aos gritos, Lizarazu, sangue basco na melhor França de sempre, Henrik Andersen, sinal de ataque raro numa Dinamarca feita campeã da Europa a defender, mais Sergi Barjuán, quando a Espanha ainda era feita de fúria e não ganhava, e ainda Jarni, croata, que só não é o melhor nascido em décadas nos Balcãs porque houve Mihajlovic, lateral também mas mais que um lateral, o melhor pé esquerdo que o mundo já viu a bater livres diretos (não, nem Maradona).

Não é lugar de grande fartura de talentos, sequer no mundo, mas de repente três dos maiores craques da Liga cá do retângulo andam por ali, acima e abaixo, a dar corda ao pé esquerdo, cada um ao seu estilo: Coentrão como um Tom Sawyer, rebeldia e coragem apuradas no mar das Caxinas, regressou para novas aventuras numa sequência de correrias que cansam quem vê e infernizam quem se lhe opõe, todo coração, mais que razão, sorrisos recorrentes, de novo homem feliz mesmo se com lágrimas na hora da vitória frustrada; Alex Telles é Errol Flynn, arco e flecha, arco perfeito saído das botas com alvo definido e curta margem de erro, poucos são tão fortes naquele drible curto que precede a largada da seta rumo a área, adivinha-se o que vai fazer mas não dá para prever quando nem travar-lhe a marcha; Grimaldo como um músico de jazz, um Glenn Miller, desses que sabem tudo sobre notas e harmonias mas que só se realizam quando fogem à partitura, no caso dele quando não avança sempre por fora em apoio ao extremo, que é o mais comum na função, e improvisa por dentro, altera os compassos previstos e carrega com ele a orquestra. É certo que por cá houve Branco e Schwarz, Nuno Valente e Rui Jorge, Álvaro Pereira ou Siqueira, mas arrisco dizer que nunca os três grandes terão tido, ao mesmo tempo, gente de tanta qualidade na função. O campeonato deste ano pode bem ser decidido à esquerda.