É mais importante a verdade ou a forma como a ela se chega? Eis um dilema com que o futebol teve de se defrontar nos tempos mais recentes. A proliferação de sites de internet que colocam à disposição de todos documentos confidenciais e por vezes correspondência eletrónica coloca uma questão muito sensível na área da ética da comunicação. E leva-nos a refletir acerca de que exigência merece mais ser tutelada: o nosso direito a sermos informados acerca de factos que são de relevo público ou o direito de reserva das comunicações, um bem do qual nenhum de nós quererá abdicar? Trata-se de uma escolha muito difícil, até porque nunca se poderá ter uma solução perfeita. Todos queremos saber e, para saber o que julgamos ser indispensável estamos dispostos a justificar violações das quais nunca quereremos ser vítimas. Os segredos invioláveis são apenas os nossos, ao passo que os dos outros não passam de obstáculos a transpor.
Este tema eticamente sensível obtém especial relevância em Portugal, o país que se tornou o epicentro desta escorregadela em direção à exibição de informação reservada. E este aspeto, por si só, já mereceria uma reflexão. No Outono de 2015 nasceu a operação Football Leaks, que nos primeiros meses de vida foi sobretudo um blog aberto na plataforma Wordpress e, ainda nesse início, parecia sobretudo um Sporting Leaks, pois nos primeiros tempos publicava quase exclusivamente documentos relativos ao clube de Alvalade. Mas essa interpretação das coisas durou pouco, pois a base de dados dos documentos enriqueceu rapidamente, com material acerca de todos os outros clubes principais do futebol português e, depois, de clubes estrangeiros de todas as dimensões. E quando, finalmente, o Football Leaks se tornou outra coisa, graças à intervenção do consórcio European Investigative Collborations, ficou claro que a operação não tinha sido inspirada na intenção de prejudicar ninguém em especial, mas que era uma simples ação de delação. Tornar públicas as verdades escondidas do futebol, eis o único interesse do Football Leaks.
A questão voltou à ordem do dia com a abertura de sites análogos, tais como “O Arquivo Secreto da Liga” e sobretudo “Mercado do Benfica”. Mais uma vez, trata-se de espaços nascidos em Portugal, mas dedicados especificamente à realidade do futebol nacional. E, em particular. O “Mercado do Benfica” ocupa-se de forma específica (mais até do que minucioso) a revelar os segredos de um só clube. Este site volta a propor e reforça até as interrogações que tinhas nascido com a criação do Football Leaks. Porque, no caso deste site que torna públicos materiais do clube encarnado, estamos claramente face a uma operação “parcial”. Como devemos, portanto, receber as informações reveladas por este site?
Como jornalista de investigação, respondo que qualquer operação graças à qual se consigam saber mais coisas secretas (e inconfessáveis) do futebol é bem-vinda. E digo-o com consciência plena de que os meios usados para obter aquelas verdades podem não ter sido lícitos. Até porque a esta objeção é fácil responder que vivemos uma era em que a chegada à verdade passa muitas vezes por estes meios. Estamos na era do Wikileaks, na qual as tecnologias de controlo e de vigilância se converteram em instrumentos de sabotagem contra quem as havia construído. Foi também graças a esta reviravolta da situação que descobrimos como o futebol era um mundo opaco, governado por lógicas doentes. Todo o contrário daquilo que pediria a paixão das suas gentes.
É mau que as últimas fugas atinjam apenas o Benfica? Seguramente que seria melhor ter informações que dissessem respeito a mais de um clube. Mas tendo isso como ponto assente, devemos depois olhar para o conteúdo dessas informações. E se através delas descobrirmos situações de ilegalidade, é com elas que devemos preocupar-nos.
Uma última nota acerca da ação desencadeada pelo Benfica contra quem publica materiais retirados da sua base de dados. A SAD encarnada tem todo o direito de mover ações legais, se julga que foi vítima de uma intrusão nos seus sistemas informáticos e de um furto de informações. Mas ir contra dois bloggers é uma exibição excessiva de músculo. Faz-me recordar a ação do então Primeiro Ministro José Sócrates contra o gestor do blog Do Portugal Profundo. Não lhe correu bem. É que a arrogância nunca é uma escolha conveniente.
Pippo Russo é um jornalista e sociólogo italiano, que escreve duas vezes por mês no Bancada: ao terceiro domingo e ao quarto sábado de cada mês.