Opinião
O coração de Gelson, o cérebro de Jonas e o músculo do Dragão
2018-02-28 14:00:00

Todos gostaríamos de ter um amigo como Gelson Martins, um daqueles que despe a camisola por nós, sem medo das consequências. O coração indomável de Gelson deu ao Sporting a vitória sobre o Moreirense, mas também tirou a Jorge Jesus a mais imprevisível das armas para o ataque ao Dragão. Entre a crítica à atitude que valeu o segundo cartão amarelo e o elogio da amizade verdadeira e incondicional…o coração dos adeptos parece balançar.

Mesmo assim, não há como fugir à conclusão mais óbvia: Gelson Martins foi irresponsável e imprevidente na forma como se excluiu do clássico. Naquele momento deixou de ser o profissional do Sporting e passou apenas a ser o Gelson, o melhor amigo de Rúben Semedo. Na próxima sexta-feira, Jorge Jesus avaliará as consequências desta ausência, mas se se confirmar que Bas Dost não recupera da má gestão do treinador, então o leão irá defrontar o FC Porto decepado de dois dos jogadores mais influentes. E neste caso não há “inimigos externos” para arcar com as culpas.

Do trio que faz verdadeiramente a diferença no Sporting atual poderá sobrar apenas Bruno Fernandes. Cada vez mais influente, o médio que se preparou para ser grande no futebol italiano marcou três golos nos últimos quatro jogos e bate com cada vez mais força à porta da convocatória para o Campeonato do Mundo.

Não será exagerado dizer que Bruno Fernandes é o melhor jogador do campeonato, mas o mais decisivo joga de encarnado e surge mais à frente no relvado.

Na anatomia da luta pelo título, Jonas é o cérebro. O avançado brasileiro analisa bem o jogo, antecipa o movimento seguinte, percebe onde vai cair a bola que pretende atacar e demonstra uma capacidade de definição dos lances pouco vista. Para além disso, não se desequilibra emocionalmente quando não consegue acertar à primeira, à segunda ou à terceira (como aconteceu em Paços de Ferreira).

A caminho dos 34 anos, Jonas já reclama um lugar de destaque na galeria dos melhores estrangeiros do futebol português das últimas décadas. E só a idade impede que transfira tanto brilho e eficácia para um dos grandes do futebol europeu.

Nesta luta a três, o músculo está quase todo no Dragão e regenera-se sem sinais de fraqueza. Sérgio Conceição vai ficando privado à vez de referências, mas se olharmos só para os resultados até poderemos ser levados a pensar que o “onze” é o mesmo desde as primeiras jornadas.

Danilo Pereira lesionou-se, mas entrou Sérgio Oliveira e a substituição até parece dificultar a vida aos adversários. Com Herrera ao lado, o médio português permite que deixe de haver uma referência tão clara para a equipa contrária quanto ao papel de centro-campista mais defensivo (os dois médios incorporam-se alternadamente em zona ofensiva).

No ataque parece haver sempre um avançado que entra e marca golos por cada um que se lesiona e deixa de jogar. Foi assim no início da época, com Marega no lugar de Soares. Voltou a acontecer recentemente, com Soares a render Aboubakar e a regressar com eficácia à titularidade (mas com problemas físicos nesta semana de clássico). E há 103 golos que provam que o ataque do FC Porto não abana.

Diogo Dalot (um jovem lateral com imensa qualidade) está no lugar de Alex Telles e Maxi Pereira surge a substituir Ricardo. Com as devidas diferenças geracionais, ambos estão em excelente plano, mas o adversário que se segue no campeonato colocará uma vez mais à prova a exuberância destas e de outras segundas linhas do plantel portista.

É nos grandes jogos europeus e nos clássicos que o músculo azul e branco encontra desafios mais exigentes, que pedem maior imprevisibilidade e que obrigam a uma eficácia quase imaculada. É também nestes palcos que se percebe por vezes a falta de um médio como Óliver Torres – intenso q.b., mas transportador de bola numa equipa que privilegia o passe. 

P.S. – É inquestionável que a FIFA está muito melhor desde que Gianni Infantino acabou com a era Sepp Blatter. No entanto, o pernicioso legado do antigo líder do futebol mundial perdurará mais alguns anos, obrigando o atual presidente a assumir os compromissos do antecessor.

Em junho, o mundial de futebol vai colocar a Rússia no centro da atenção mediática e o Kremlin irá aproveitar o torneio para tentar limpar uma imagem que é muito negativa no mapa das democracias ocidentais. O regime de Vladimir Putin esmaga há vários anos a oposição interna, tem um conflito com a Ucrânia e é co-responsável pelo massacre de centenas de civis na Síria. As imagens que agora vemos, de um verdadeiro holocausto em Ghouta Oriental, devem ficar guardadas na memória de todos, incluindo na de Gianni Infantino. É fundamental que em junho, na Rússia, o futebol assuma o embaraço e não faça de conta que a tragédia que o mundo está a ver não existiu. E que as futuras escolhas da FIFA passem a ter em conta valores fundamentais, como a democracia e a procura da paz.

Manuel Fernandes Silva é jornalista na RTP e escreve no Bancada às quartas-feiras