Opinião
Leroy Sané e os monstros invisíveis
2018-01-08 13:00:00

De Bruyne já todos identificaram. O belga que dá uns ares de Roberto Leal quando era novo tornou-se a maior figura não só do City dos recordes mas de todo o campeonato inglês. E o que brilham David Silva, o agora goleador Sterling ou Aguero também é tão evidente que não carece de lustro. Guardiola antecipou-se-me ao falar do “Super Homem” Otamendi, o que lhe lidera a defesa e sem o qual – assumiu - a impressionante carreira desta época seria impossível. O argentino, obrigado pelo técnico a estudar inglês, aprendeu também com ele os últimos segredos da posição e principalmente da função que o catalão lhe reserva: "Pep dá-te todas as informações para que, quando chegue a hora do jogo, tudo corra na perfeição”.

Nico Otamendi foi sempre o central guerreiro, competidor invulgar que deixa perceber o sangue argentino em cada disputa de bola, igualmente com histórico de defesa goleador sem ser propriamente um homem alto. Nos últimos anos reforçou outras duas dimensões que fazem dele um dos (3 ou 4) melhores centrais da actualidade: a liderança, que assume claramente  perante os colegas e se tornou indispensável nas sucessivas ausências de Kompany, e mais ainda essa capacidade invulgar de construir jogo. Otamendi é o central que dispensa o médio. Com ele na equipa, os companheiros do meio campo e do ataque podem sempre estar uma linha à frente, que a primeira “queima” ele, seja a conduzir com segurança ou a passar com qualidade. Quando, por exemplo, Fernandinho baixa no terreno, não é obrigatoriamente para pegar na bola, como fazem tantos médios em repetitivas e inúteis saídas “a três”. Muitas vezes é apenas para deixar que Otamendi avance e seja ele a iniciar a desmontagem da estrutura adversária. O rival condiciona para impedir que a bola entre nos médios? Não há problema: o central faz o serviço.

No meio campo está outro monstro bom, tão silencioso como indispensável: Fernandinho. Questionado sobre se jogaria no actual Manchester City, Guardiola respondeu - com alguma falsa modéstia – que não, por considerar que “Fernandinho é muito melhor”. Guardiola tinha outro charme com a bola, o que será evidente para quem se lembra de o ver, mas Fernandinho é o maior simplificador do futebol actual. Descomplicar é a sua arte, feita rotina. A bola vem irregular? Nos pés dele acalma. O passe tem de ser mais longo por não haver linhas próximas? Ele fá-lo com igual competência. Não há sequer linhas de passe? Fernandinho é o médio defensivo que também dribla e avança. E até remata com qualidade. A equipa precisa de abdicar de um central? Fernandinho recua. A equipa não tem lateral esquerdo? Fernandinho cumpre. Guardiola diz que é capaz de fazer com qualidade 8 ou 9 posições e talvez tenha razão. Há outro jogador assim?

E depois há Sané, num crescimento futebolístico espantoso que o transformou na quinta dimensão do jogar do City. Ele é a prova mais eloquente de que o futebol de Guardiola é muito mais que o tiki-taka, o passa e repassa que adormece. Sané surge, mais ainda que Sterling, como o elemento acelerativo que altera os andamentos, o que rompe no drible e rasga para cruzar. Principalmente, no entanto, tornou-se peça-chave para que funcione tão bem o melhor segredo do catalão, o da qualidade com que concretiza os princípios do jogo posicional, base do seu ataque organizado (em que a equipa vive 70 a 80 por cento de cada jogo). Uma equipa assim sabe variar a procura de espaços para penetrar, procurando à vez linhas de passe “por dentro” (entenda-se no corredor central, onde por regra esse espaço rareia) ou “por fora”, que é onde sempre se garante a amplitude de jogo que aumenta a dificuldade de quem defende. Todas as vezes que um jogador do City conduz a bola, mesmo a partir da defesa, sabe que Sané lhe garante uma via de ligação segura “por fora”. Ele é o bypass permanentemente à disposição para que o jogo flua e o adversário tenha de alargar as suas linhas, concedendo o espaço – mesmo que pouco – de que Silva, De Bruyne ou Aguero precisam para criar a definir. Sané percebeu essa missão fundamental e habituou-se a viver, e a ser feliz, com a cal por vizinha. E depois tanto está pronto a assumir o desequilíbrio em posse e velocidade, como para se associar a esses outros atacantes que se aproximam, adiando o último (e melhor) passe até ao momento certo. Quando a bola está no corredor contrário também já aprendeu em que momentos a equipa o vai procurar junto do ponta de lança para finalizar ou ainda e sempre sobre a linha para permitir variações de corredor longas e o coloquem, pela enésima vez, nas situações que adora, de 1 para 1 sobre o lateral contrário.

Claro que Sané tem muito para crescer ainda, aos 21 anos, seja na tomada de decisão em momento ofensivo – que ainda se precipita umas quantas vezes e continua a sair do drible quase sempre para o pé esquerdo - seja na ajuda defensiva que tem de dar – ora na pressão alta, ora no apoio ao lateral, uma vez superada essa pressão. Ainda assim, está aí e perto do esplendor uma desses extremos que o futebol só raramente produz e que dá ao jogar de Guardiola o que poucos deram até hoje, por ser mais extremo que Henry ou Villa, mais poderoso que Pedro Rodriguez, esquerdino puro como nunca tivera em Ribéry ou Coman. “Ainda tem muito para aprender”, insiste o treinador catalão, para a seguir acrescentar que, aos 21 anos, só conheceu um que já sabia tudo. Chama-se Messi e anda por aí a encantar há uma dúzia de anos.

Carlos Daniel é jornalista na RTP e escreve no Bancada às segundas-feiras.