Opinião
Herrera e uma redenção à Spielberg
2018-04-20 13:40:00

O Porto até pode vir a escorregar nas quatro jornadas seguintes e não ser campeão nacional. Aliás, os tropeções anteriores de Porto e Benfica no Restelo são úteis para lembrar aos candidatos ao título que nada é garantido e que ainda muita água vai passar debaixo da ponte nos desafios contra clubes de gama inferior. No entanto, é garantido que não haverá muitos episódios nesta época que sejam mais poéticos que o balázio de Héctor Herrera na Luz. Se o golo está na origem do título portista já é algo que deve ser levado para o capítulo da futurologia, pois nada ficou definido. Em todo o caso, o centrocampista de Tijuana foi dono do seu destino e agiu para uma redenção ao nível de uma película de Spielberg.

A Conceição são reconhecidos méritos quase ilimitados na otimização da maioria dos jogadores do Porto. Exemplos instantâneos? Oliveira, que nem era considerado pelos adeptos na pré-época, apresenta-se num nível ótimo a coordenar, chutar, lançar, girar e defender, Alex Telles tem uma consistência jamais vista em todos os domínios do jogo, o ‘bulldozer’ Marega adquiriu uma dimensão superior, enquanto Aboubakar voltou melhor do estágio em Istambul e contribui na devastação da grande área.

Porém, é Herrera que interpreta o guião mais sensacional pela inversão e superação da carga negra que se gerou em cima dele desde a primeira volta da época passada. Reporto-me, claro, aos meses amargos que o mexicano viveu na Invicta como um condenado depois do lapso nos últimos instantes da receção ao Benfica, ainda na vigência de Nuno Espírito Santo. Todos se lembram do desfecho desse clássico: na sequência do tal pontapé de canto cedido descuidadamente por Herrera, o central Lisandro López fez o 1-1 para o Benfica nos descontos e meia cidade caiu em cima de HH.

O fardo tornou-se incrivelmente pesado e colocou-se a possibilidade de sair de Portugal. Só que, restringido ou não pelo fair-play financeiro para contratar mais jogadores, o Porto investiu na sua continuidade. O clube recuperou-o, não aceitou a sua desvalorização e lançou-lhe a escada para sair do fundo do abismo. Com isso, e percebendo que o empenho do internacional tricolor era total, Conceição limpou-lhe as lágrimas e devolveu-lhe a braçadeira que tinha perdido no meio da desoladora campanha 16/17. E chegou-se a este ponto, em que Herrera, Oliveira e Otávio vão operando com solidez um meio-campo que perdeu o seu gigante (Danilo).

O ataque coletivo à baliza de Varela na segunda parte do clássico de domingo demonstrou que o Porto testou mais soluções para procurar o golo e que esteve mais vivo na luta pelo primeiro lugar. E aproveitou, entre vários aspetos, a pobreza de ideias de um Benfica que, sem Krovinovic, não tem gente que pense e organize irrepreensivelmente na zona média, na preparação para a entrada na zona das ondas mais agitadas dos três quartos do campo. Em jogos com grande exigência, nota-se mais essa escassez para raciocinar e conseguir manter minimamente a bola em posse. Zivkovic distorce os adversários em ações perto da grande área, mas não elabora jogo atrás. E daí, também, a retração de Rui Vitória para não dar metros para Marega explodir. Opção de ataque mediante a incapacidade para trocar a bola de modo sustentado? Lançar diretamente para Raúl ou deixar Rafa fazer 'slaloms' a torto e a direito. Curto.

No Olival, torna-se imperativo gerir o físico de Marega e evitar sobrecarga nos outros que ainda não estão lesionados. Por algum motivo o conterrâneo de Thierry Henry (de Les Ulis, subúrbios de Paris) não jogou em Alvalade. Mas a verdade é que, chegados a esta fase, os dragões têm tudo para finalmente pôr termo à série triunfante de campeonatos ganhos pelas águias e conseguir o escudo que lhes escapa desde 2013, ano do golo de Kelvin. Era Vítor Pereira o treinador, ainda com Lucho, James e Jackson.

O dragão miram o título com mais nitidez, mas ainda há um caminho para percorrer que é mais longo e que tem mais cascas de banana do que parece. Se Herrera vier a levantar o troféu, então consagrar-se-á como um dos maiores heróis do título - por causa do golo e, sobretudo, por aquilo que ele ultrapassou, inclusive Seferovic...

Se o Porto, no final de tudo isto, vacilar e não for campeão, convenhamos que a desilusão na Invicta seria inimaginável. Mas já nada apaga a proeza mais irónica dos últimos anos, essa mesmo da autoria de HH, suportada por um ano e meio de inspiração e força de vontade.

P.S. - O Nápoles vai a Turim no próximo domingo e Sarri também procura o seu momento-Herrera. Para conquistar o 'scudetto' que lhes foge desde 1990, dos tempos de Maradona, está praticamente obrigado a ganhar este super desafio com a Juve. Se os 'azzurri' baterem a Juventus, ficarão apenas um ponto atrás dos 'bianconeri'. E a Juve, até final do campeonato, ainda tem jogos contra Inter, Milan e Roma. Se não for desta, quando será?

Luís Catarino é comentador da Sporttv e escreve no Bancada às sextas-feiras.