Opinião
Deixem falar os árbitros
2018-02-13 14:00:00

O comunicado do Conselho de Arbitragem, a reconhecer o erro evidente do VAR na anulação do golo de Doumbia, no Sporting-Feirense, é mais uma acha para a fogueira da total incompreensão em que a arbitragem pode cair se não entrar rapidamente no século XXI em termos de comunicação e continuar a deixar que sejam os inúmeros “comentadores” engajados das televisões a monopolizar o que se diz acerca do que se passa no mundo do apito. E por várias razões. Porque as pessoas se centram no facto de se conhecerem as posições do CA nuns jogos e não se conhecerem noutros. Porque se centram no que é assessório e quase nunca no que é fundamental. Mas sobretudo porque aos árbitros continua a ser negada a hipótese de se humanizarem.

Reparem como só este caso permite tantas intervenções. Há os que se indignam porque a falta de Bruno Fernandes – a existir – foi numa fase anterior do jogo, interrompida por uma posse de bola do Feirense que passou por dois jogadores, dando assim início a uma nova fase de jogo. Mas também há os que, por não estarem familiarizados com a linguagem que futebol e râguebi partilham em inglês, língua original do protocolo do VAR, nunca ouviram sequer falar de uma fase de jogo (no râguebi, por exemplo, os ataques são divididos em fases, terminadas a cada vez que se disputa um ruck) e por isso não percebem que aquela já era outra jogada, insuscetível de ser analisada pelo VAR. Entre os dois, claro, gera-se a confusão.

Depois, há os que não são devidamente complacentes com o facto de esta ser ainda uma fase experimental do VAR e que por isso não se conformam com erros como o que esteve na base da anulação de um golo ao FC Porto, contra o Benfica, porque o árbitro se precipitou e apitou antes do remate final, respondendo a uma indicação errada de fora de jogo, dada pelo seu auxiliar. E há os que, face a esta explicação, se questionam se deve agora haver uma nova forma de arbitrar, se os árbitros devem defender-se a tal ponto que não decidem sem esperar pelo VAR, precisamente para não correrem riscos de anular jogadas que depois venham a ser provadas como boas. E se o lance não desse golo, se o guarda-redes defendesse para canto (não havendo por isso lugar a análise do VAR) e o rematador estivesse mesmo fora-de-jogo, não assinalado por um árbitro que decidiu esperar? Não seria também uma injustiça?

Insanáveis são, naturalmente, os conflitos que se prendem com interpretação – e isso são-no até no râguebi, onde ainda no sábado a anulação de um ensaio a Gales no muito disputado jogo com a Inglaterra, em Twickenham, provocou intenso debate. Houve falta de Bruno Fernandes? Houve penálti de Maxi no GD Chaves-FC Porto? Lances como estes são às dezenas em cada jogo, sempre esmiuçados à lupa pelos vários programas de TV. Neste momento, os apreciadores do género sabem o que pensam de cada caso os comentadores de cada um dos três grandes que falam na RTP3, na SIC-Notícias, na TVI24, na CMTV, na Sport TV e, se quiserem, até no Porto Canal, na BTV e na Sporting TV. Mas não sabem o que pensam os árbitros, amarrados a um regulamento medieval que não lhes permite explicar sistematicamente aquilo que viram ou julgam ter visto, justificar as razões pelas quais há compensações sobre as compensações nuns jogos e não há noutros (e aqui o papel dos observadores não é nada inocente, segundo me garantem).

Tenho a firme convicção de que tudo seria muito mais compreensível se, como acontece no râguebi, as comunicações entre o árbitro e o VAR fossem públicas, audíveis nas transmissões televisivas. Não é possível? Então, que pelo menos aos árbitros seja dada a oportunidade de se explicarem no final dos jogos. Aqui há uns anos, quando era diretor de comunicação do Benfica, o João Malheiro lançou a campanha “Deixem jogar o Mantorras!” Neste momento, uma das coisas de que o futebol precisa é de outra campanha: “Deixem falar os árbitros!” Quanto mais não seja para que não estejamos limitados à verdade que é passada todas as semanas pelos “especialistas-leigos” que monopolizam o discurso acerca de arbitragem no nosso panorama mediático. E para que quem estiver disponível para tal possa ao menos tentar compreender a versão dos homens do apito.