Opinião
A nota artística
2018-01-15 14:00:00

Creio que foi Herbert Chapman, pioneiro do sistema WM no Arsenal de Londres, já lá vão quase cem anos, quem disse um dia que uma equipa não devia ser avaliada só pelos resultados, por golos e vitórias. Era a defesa de que fosse quantificada uma espécie de “nota artística”, ainda Jorge Jesus não tinha nascido para ir à patinagem buscar a expressão que trouxe para o vocabulário do futebol. Chapman queria que se valorizasse a produção de jogo e a intenção ofensiva, na eterna dicotomia da qualidade com o que é mensurável. A intenção nunca passou disso. A ideia poderia ser que houvesse uma espécie de júri em cada partida, por exemplo capaz de desempatar um jogo igualado em golos com base no melhor ou pior desempenho coletivo, no mais ou menos atraente. E na estética terá travado logo essa intenção: como avaliar se uma forma de jogar é mais conseguida que outra? Porque gostar mais do jogo com bola do City que do rock and roll do  Liverpool ? Quem determina se a absurda qualidade coletiva do Nápoles vale mais que o rasgo das individualidades infindas da Juventus? Cada cabeça, sua sentença.

Não impede isto que alguém que se dedica à análise avalie a qualidade do futebol, do processo defensivo ou ofensivo, antes o recomenda. Chegar primeiro aos indícios costuma permitir que se identifique mais depressa as consequências, como um médico que busca nos sintomas a razão de um mal-estar. No futebol é particularmente reconfortante perceber princípios de jogo que são autênticos indicadores de competência em algumas equipas – mesmo se invisíveis para muitos – e conferir entretanto que essa evolução garante pontos, que a quantidade acaba por variar na mesma razão da qualidade. Sabem os que me acompanham por aqui que valorizo particularmente, e desde o arranque da época, o futebol apresentado por Rio Ave e Chaves. Com identidades diferentes e jogadores distintos, são ambos modelos de iniciativa e risco, que valorizam o momento ofensivo e o processo com bola, permitindo o crescimento de verdadeiros talentos, como Ruben Ribeiro ou Matheus Pereira. E são essas ideias de jogo que permitem partidas incríveis, como o Rio Ave-Aves da Taça ou o Chaves-Vitória de Guimarães do campeonato. Sem o jogar das equipas da casa tais jogos não teriam acontecido, desde logo porque só há bom contra-ataque se alguém assumir que quer atacar. O Chaves festejou no fim com um penalti, o Rio Ave caiu no desempate por penaltis, uma equipa ganhou e a outra acabou. Conclusão: a qualidade de jogo não garante vitórias? É um facto, mas não é a regra. A regra é quem joga melhor estar mais perto de ganhar e no fim o que conta verdadeiramente é a tendência. O Rio Ave é hoje quinto do campeonato, à frente de vários candidatos à Europa, e o Chaves é sétimo, após uma recuperação sensacional. Bem vistas as coisas, talvez a nota artística valha pontos, afinal.

Foi à procura de arte, de ter mais bola e de a manter, mesmo nos espaços mais curtos entre a defesa e o meio campo do rival, que o Sporting foi buscar Ruben Ribeiro. À parte outras questões, o que o recente clássico na Luz terá mostrado foi que o Benfica, não tendo a qualidade de jogo coletiva do rival (podia dizer de ambos os rivais), apresenta um número superior de jogadores com verdadeiro talento criativo e que, no limite da motivação, podem sempre fazer a diferença. Identifico três deles acima dos demais: Grimaldo (pelo que garante na construção) Krovinovic (já magnífico na criação) e Jonas (fabuloso na finalização mas muito mais que isso). Com os três em campo e cada dia mais rotinados, o Benfica voltou a ser candidato. E ainda tem Cervi, Pizzi, Salvio, mais Zivkovic e Rafa, que embora com menor regularidade também podem sempre dar algo diferente ao jogo. O Sporting já tinha Bruno Fernandes e Gelson, os dois homens que se destacam na criação entre os leões, mas a preferência por jogadores atléticos nas primeiras escolhas da época (Piccini, Battaglia, Acuña, Doumbia) tinha tornado a equipa mais robusta, mas algumas vezes excessivamente burocrática. Ruben Ribeiro acrescenta a criatividade, permite o lance inesperado que inverte as regras anunciadas. O mágico do cabelo loiro oxigena o jogo dos leões e o primeiro golo diante do Aves provou bem do que ele é capaz. O FC Porto vive também muito do músculo e da aceleração, numa forma de jogar pensada (e bem treinada) para esse tipo de jogo. Vale a pena apreciar particularmente a sincronia dos movimentos, de apoio e rutura, de Marega e Aboubakar. Não se trata apenas de ter dois avançados poderosos, muito rápidos, capazes de fazer a diferença tanto no espaço como nos duelos. Trata-se igualmente de treinar bem para que sejam compatíveis, o que seria duvidoso à primeira vista. E depois nunca estão só os dois na área para finalizar, que os alas surgem por dentro e Herrera mostra-se sempre pronto a aparecer. Não raras vezes, o Porto tem sete unidades no momento ofensivo (com a subida regular dos laterais) e até oito (quando Danilo se junta). Mesmo assim, se o modelo parece reclamar menor criatividade, Brahimi surge sempre como o improvisador de excelência e o jogador que altera ritmos e rumos do jogo, que assiste e finaliza em momentos sucessivos -uma vez mais - de criação. No futebol, vencer não é tudo. Encantar conta. Poucos vão recordar no futuro uma equipa que apenas ganhou sem deixar marca ou o médio zeloso que é essencialmente um trabalhador indiferenciado. Outra é a casta dos artistas. E da nota que acrescentam, que também vale golos e pontos.

Carlos Daniel é jornalista na RTP e escreve no Bancada às segundas-feiras.