Opinião
A era dos extremos
2018-01-24 14:00:00

“2077” é o nome de uma série documental da RTP que pretende apresentar uma imagem do que poderá ser o mundo daqui a pouco mais de 60 anos. Nesse olhar de vários especialistas em direção ao futuro percebe-se que, em seis décadas, quase tudo poderá mudar em áreas como a tecnologia, a saúde ou o ambiente. E é provável que essa mudança aconteça de uma forma ainda mais vertiginosa do que aquilo que conseguimos agora antecipar.

Provavelmente irá suceder o mesmo com o lazer, com a forma como o ser humano irá escolher passar os tempos livres. No contexto atual, é difícil pensar que daqui a 60 anos o futebol consiga continuar a concitar tantas paixões em Portugal, quando todos os dias é maltratado, desprezado e transformado em campo fértil para o ódio e para a violência.

Há muitos dias em que o futebol nacional é um lugar pouco recomendável.

A apologia do ódio no desporto e no futebol (sob várias formas e com vários protagonistas) continua a prosperar, beneficiando da inação de sucessivos governos, que têm vindo a ignorar os claríssimos sinais de alarme. O aviso mais veemente foi transmitido através de um artigo de opinião do Presidente da FPF, Fernando Gomes (em setembro do ano passado), mas a nobre intenção do líder federativo esbarra quotidianamente numa guerra de tronos de curtíssimo prazo, em que o que parece contar é o “tweet” mais violento, a crítica mais feroz ou o remoque mais mordaz.

Os canais dos três principais clubes dão antena a alguns “comentadores” que fazem carreira e conquistam palco enquanto insultam e achincalham rivais, jornalistas ou outros comentadores, ultrapassando por vezes todos os limites da urbanidade, sem que se consiga perceber (nem sequer de forma remota) qualquer tipo de preocupação por parte da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

As redes sociais cavalgam esta onda, criam e fazem crescer outras vagas e amplificam a cultura do ódio aos adversários. É lá que se escondem os novos heróis dessas bancadas virtuais, vigilantes sem descanso, de teclado apontado às mais diversas direções, num desvario justiceiro diário. No entanto, as consequências desta cultura de rivalidade doentia e ódio não são virtuais, são tão trágicas quanto reais: cânticos a desejar a morte dos adversários, adeptos que interrompem jogos, invadem treinos de equipas de futebol e de árbitros, arrastões de "casuals", ameaças a jornalistas. Nos últimos anos já vimos tudo isto, repetidas vezes, nos mais variados palcos, sem que algum dos principais clubes portugueses (e não são apenas os três grandes) possa reclamar "pureza bacteriológica" em relação a este tema.

Os exageros campeiam porque os regulamentos existem, mas raramente são cumpridos com firmeza e sem rodeios ou ambiguidades, deixando margem para que alguém possa concluir que o futebol é afinal um Estado dentro do Estado ou um fenómeno à margem (ou acima) da lei.

Sem "alterações climáticas" profundas no discurso e nas práticas, um dia a paixão clubística poderá não chegar para evitar um afastamento dos estádios por parte de quem realmente gosta do jogo. O protagonismo reclamado por quem não pisa a relva pode acabar por atirar o futebol para uma espécie de "reality show" diário, em que os jogos, picos de intensidade e emoção, passem a ser os intervalos das trocas de acusações e dos insultos.

Já entramos nessa era de extremos. Resta saber se ainda há tempo para evitar a derrocada de toda a credibilidade.

Manuel Fernandes Silva é jornalista na RTP e escreve no Bancada às quartas-feiras