Grande Futebol
Zárate, o homem que apunhalou a família pelas costas e traiu décadas de história
2018-07-04 23:00:00
Transferência de Mauro Zárate para o Boca Juniors é apenas mais um capítulo de uma carreira atribulada.

No futebol, há transferências que nunca devem acontecer. Mauro Zárate que o diga. Internacional argentino, estrela do Mundial Sub-20 vencido pela equipa das Pampas em 2007 ao lado de nomes como Banega, Agüero ou Di María, passagens por alguns dos maiores clubes europeus. Uma história desportiva intimamente ligada ao Vélez Sarsfield. Em poucos dias Mauro Zárate destruiu a sua imagem e reputação. Uma transferência para o Boca Juniors motivou ira alheia, adeptos queimaram camisolas e até pela própria família foi apelidado de traidor. Nem os filhos escaparam. Que foste fazer, Mauro Zárate?

“O Mauro apunhalou-me pelas costas. Sinto-me destruído. Ele traiu toda a família e toda a história que temos com o Vélez desde há quarenta anos. Só me apetece chorar. Nascemos no Vélez, crescemos no Vélez e o nosso pai trabalhou aqui durante quarenta anos”. Rolando Zárate não perdoa o irmão Mauro e tudo porque Maurito assinou pelo Boca Juniors neste seu regresso definitivo à Argentina. Rolando, que nos anos noventa teve mesmo uma passagem pelo Real Madrid, figura do Vélez por quem venceu dois campeonatos argentinos, e até somou duas internacionalizações, não perdoa o irmão Mauro e apelidou-o mesmo de traidor. Mesmo que, ele próprio, em 2007, até tenha jogado pelo River Plate.

A carreira de Zárate nunca se pautou pela linearidade. Nascido em Buenos Aires, mas chileno por afinidade paternal (tanto o pai como o avô foram futebolistas chilenos e o pai passou mesmo pelo Independiente) e italiano do lado da mãe, os avanços e recuos em relação à sua promessa internacional foram constantes e apesar de ter vencido o Mundial Sub-20 ao serviço da Argentina, em 2014 declarou-se disponível para representar a seleção chilena para, no ano seguinte, voltar a dar o dito por não dito e afirmar-se exclusivamente argentino. Hoje, aos 31 anos, Mauro Zárate ainda não conseguiu o que conseguiram Rolando e Sergio, irmãos mais velhos: ser internacional pela Argentina.

A chegada ao Boca Juniors, principal candidato ao título argentino, talvez ainda o venha a permitir apesar das infinitas opções à disposição de qualquer que venha a ser o novo selecionador do país. Seja Gareca, como afirmam os rumores, e a verdade é que a porta de Zárate na seleção se pode abrir mais do que nunca. Caso aconteça, reencontrará o homem por quem foi campeão argentino pouco antes de surpreender o Mundo do futebol ao trocar a carreira pelos milhões cataris ainda em tenra idade. Em 2007, contra todas as expetativas, na primeira aventura internacional, Zárate rumou ao Al Saad. A seleção que foi, afinal, toda a razão da traição de Maurito: “Mauro disse-me que decidiu ir para o Boca porque lhe prometeram a seleção. Ainda que tívessemos tudo assegurado, há cerca de dez dias começaram as dúvidas devido a uma promessa verbal, e isso disse-me o próprio Mauro, vinda da seleção, algo que até me custa contar já que ele sonha com isso como um conto de fadas”, explicou o presidente do Vélez Sarsfield à imprensa argentina. “Foi uma traição das grandes”, avaliou.

Nenhuma movimentação na carreira, porém, suscitou tamanha violência emocional quanto a confirmação de Zárate no Boca Juniors há poucos dias. A família apelidou-o de traidor ao recuar no acordo que tinha com o Vélez para assinar de forma definitiva pelo clube de Buenos Aires e optar, afinal, pelo Boca; os adeptos queimaram camisolas e, hoje, o ponto mais baixo de toda esta história: a escola onde estudam os filhos de Zárate foi encerrada devido a uma ameaça de bomba. A mensagem para a polícia? “Há uma bomba e a culpa é de Zárate”. “O Vélez tem jogadores melhores do que Mauro. Mauro, você não ganhou nada. Vamos apoiar Heinze e os jogadores que amam o Vélez”, comentou até Chilavert, lendário guarda redes paraguaio do Vélez. “Pelo menos não vi as crianças do Instituto do Vélez chorar, mas recebi várias chamadas de familiares, amigo, netos e pequenas crianças e é muito feio que te digam que não páram de chorar porque Mauro não fica connosco. É doloroso e estou indignado com tudo isto”, acrescentou ainda o presidente do Vélez.

Zárate procura reabilitar-se no futebol e a transferência para o Boca Juniors chega como pau de dois bicos. Se, por um lado, é sinónimo do regresso à melhor forma do atacante argentino depois de uma lesão gravíssima que o retirou dos relvados quando havia acabado de chegar ao Watford, por outro, é capaz de destruir emocionalmente o mais forte dos seres humanos. Desde então, passou 2017/18 emprestado ao Al-Nasr onde recuperou o ritmo de jogo que lhe permitiu provar que ainda é um dos melhores jogadores do seu país. Na segunda metade da temporada regressou ao Vélez pela terceira vez, apontou sete golos em doze jogos e conquistou o Boca Juniors.

A justificação para tudo isto chegou entre lágrimas: “O Boca é puramente desportivo”, tentou Mauro Zárate. “Tomei esta decisão puramente devido a questões desportivas e pelo desafio de jogar num clube como o Boca, desfrutando os últimos anos de carreira que me restam. Nunca pensei que chegasse a tanto a insatisfação de tanta gente. Nunca pensei que chegasse ao ponto de ser ameaçado e insultado. Mas entendo-o. Agora é hora de me resguardar um pouco até que tudo passe e possa tranquilizar a minha família, mulher e filhos”, afirmou Zárate em comunicado, que não rejeita ter faltado à sua própria palavra.

“Os meus irmãos não têm nada a ver com isto. Aceito que se afastem e que não estejam de acordo com a decisão que tomei, mas este é um tema meu e uma decisão que tomei sozinho, falando com a minha mulher. Não sei porque o presidente do Vélez disse que me tinham prometido a seleção. Apenas disse que se lutar pelo campeonato e pela Taça, isso leva a que tenham mais em conta do que noutros clubes, mesmo que tenhas um bom rendimento neles. O que ele disse não é verdade. Doeu-me o que disse Chilavert, porque ele é o ídolo de todos os adeptos do Vélez”, afirmou Zárate.

“Deixar de ser o ídolo do clube do meu coração é muito duro. Sinto que defraudei os meus antigos companheiros. Juntá-los a todos e ver as suas caras não foi fácil. As lágrimas não me deixaram falar. Com Heinze, porém, ficou tudo bem. Quero sempre fazer as coisas bem e nunca tive tanta vontade. Sinto uma força especial por aquilo que tenho pela frente e por jogar. Acho que o nojo dos adeptos iria ser o mesmo caso tivesse ido antes para o Racing, mas é inútil falar do que não aconteceu. Não imagino enfrentar o Vélez, mas sou um profissional e deixarei tudo em campo para vencer tudo pelo Boca”, concluiu Mauro Zárate.

A vida de Zárate nunca foi fácil e, muitas vezes, como hoje, por culpa própria. O mesmo Zárate que em 2016 sofreu uma grave lesão enquanto a própria mulher lutou pela vida e perdeu um bebé que levava já três meses de gestação. Só em 2018 o pesadelo familiar terminou para agora viver sob escolta policial. Após dupla mastectomia, por fim a mulher ficou livre do cancro da mama que a afligia desde 2016. Hoje, vive a ira dos adeptos e da própria família. Afinal, apunhalou o irmão pelas costas e traiu uma história familiar de 40 anos de ligação ao Vélez Sarsfield. Há coisas que o dinheiro não compra.