Grande Futebol
Wembley não irá ser vendido e, isso, é uma má notícia para o Mundo do futebol
2018-10-19 21:00:00
O negócio da venda do Estádio do Wembley colapsou e isso é uma má notícia para o futebol Mundial, Portugal incluído.

Depois de muita especulação, o Estádio do Wembley, casa habitual das finais do futebol em Inglaterra, da seleção inglesa, e um dos palcos mais míticos do futebol mundial, não irá ser vendido. O processo fez correr muita tinta, mas quase sempre falhando o debate fulcral: mais do que questões relacionadas com a história, herança e legado futebolístico, a venda ou não venda de um património como Wembley, por mais de 600 milhões de Euros, terá um impacto brutal ao nível do futebol, não só inglês, mas acima de tudo internacional, Portugal incluído. A não venda de Wembley é uma má notícia para o futebol.

Roterdão, junho de 2000. Com Portugal já qualificado para os quartos de final do Europeu organizado por Holanda e Bélgica, depois de vitórias perante a Roménia e a Inglaterra, foi uma formação secundária portuguesa aquela que entrou em campo perante a Alemanha ainda a lutar por um lugar na fase seguinte da competição, apesar de apenas um ponto alcançado nos dois jogos anteriores. Três golos de Sérgio Conceição, porém, deixaram a Alemanha no último lugar do grupo A, ferida no seu orgulho, naquela que foi uma das páginas mais gloriosas do futebol português, mas também um ponto de viragem no futebol Mundial.

A humilhação sofrida pelos alemães nos Países Baixos levou a uma total reestruturação do futebol germânico. Pela mão de um conjunto de visionários, o futebol alemão modernizou-se e revolucionou-se por completo. O debacle de 2000 levou a uma reestruturação completa da forma de trabalhar em campo e na observação. Levou a uma revolução na formação de treinadores e jogadores, milhões foram gastos, uma extensiva rede de academias foi construída, mesmo nas zonas mais remotas do país, e todo o tecido infra-estrutural associado ao futebol foi modernizado. Catorze anos depois, a Alemanha sagrou-se campeã do Mundo.

Berti Vogts, em 1998, ainda apresentou um programa ligeiramente revolucionário, mas foi a humilhante derrota aos pés de uma equipa secundária de Portugal durante o Euro 2000 que promoveu uma profunda revolução no futebol alemão. Em 2002 a Alemanha já chegou à final do Mundial, mas foi a partir de 2006 que a revolução começou a dar os seus verdadeiros frutos. Desde então, nunca mais a Alemanha falhou uma semi final de um Mundial, Europeu ou Taça das Confederações e, em 2014, sagraram-se campeões mundiais título que ostentarão até ao final do Rússia 2018. Até ao desastre alemão no Mundial organizado pela Rússia este ano, era preciso recuar até 2004 para assistir a uma não presença alemã numa meia final de uma grande competição de seleções a nível sénior.

Em catorze anos, a Alemanha foi do fundo do poço futebolístico ao título Mundial e mais do que o muito dinheiro investido, foi a compreensão e visão a longo prazo dos pilares que definem o futebol moderno que recolocou os germânicos no topo do futebol mundial. Como Uli Hesse, conceituado jornalista alemão descreveu em 2016 à revista Four Four Two, o dinheiro é muito importante, mas não é tudo. Em catorze anos, a Alemanha aproximou o futebol profissional às raízes e construiu 52 centros de excelência desportiva, bem como 366 academias locais onde mais de 1600 treinadores com licenças UEFA B – requisito obrigatório - trabalham para formar os melhores atletas desde tenra idade. Atletas fora da esfera dos clubes alemães, algo que permite evitar situações como a de Miroslav Klose que, aos 21 anos, era ainda um futebolista amador a disputar a quinta divisão alemã. Segundo Uli Hesse, um investimento inicial que rondou os 50 milhões de euros distribuídos entre federação e clubes, cifra-se hoje no dobro. 

Várias foram as medidas tomadas pelos poderes de decisão do futebol alemão mas nenhuma foi tão importante quanto a tomada pela Federação e Liga em 2001. Aí, tornou-se obrigatório no futebol alemão qualquer equipa das duas divisões profissionais do país ter uma academia/centro de excelência ou não seria garantida uma licença de participação em qualquer uma das divisões profissionais a esse clube. Uma medida que surgiu ainda num período de dificuldade económica para os clubes alemães - motivado pela falência do parceiro televisivo que servia como fonte de receita importante para os clubes - que, de certa forma, viram também como fulcral a necessidade de se tornarem clubes formadores visto terem deixado de conseguir competir financeiramente com os clubes de países como Espanha, Inglaterra ou Itália. O caso do Borussia Dortmund é talvez o mais evidente, com o clube a necessitar de um empréstimo do rival Bayern Munique em 2004 de forma a evitar a falência. O Borussia Dortmund é mesmo um dos casos curiosos da modernização do futebol alemão. Hoje tido como uma das academias de excelência do futebol no país, em 2005 a situação era bem diferente. O Dortmund foi, na altura, o último clube profissional alemão a construir a sua academia e tal apenas aconteceu por um ultimato da Federação alemã: ou o Dortmund jogava sob as regras impostas a todos os outros clubes, ou a sua licença para competir profissionalmente seria revogada. 

A obrigatoriedade de todos os clubes das duas divisões superiores da Alemanha terem uma academia não foi a única medida tomada pela Federação e pela Liga relacionada com os clubes profissionais. As medidas chegaram mesmo ao ponto de definir uma quota mínima de possíveis internacionais pelos escalões alemães, quantos treinadores e preparadores físicos os clubes eram obrigados a empregar e até estabelecer a obrigatoriedade dos clubes profissionais em trabalhar em conjunto com os governos e escolas locais sob pena de serem relegados aos escalões amadores caso não cumprissem com as diretrizes da Federação e Liga. Medidas restritivas, é certo, mas que parecem ter funcionado em pleno e tornado o futebol alemão no mais rentável e organizado do Mundo. As licenças atribuídas pela federação alemã têm ainda uma forte componente económica como nos relata Uli Hesse, com a federação alemã a ter atenção detalhada aos relatórios de contas dos clubes, impedindo mesmo os emblemas de investir no mercado se isso significar que a estabilidade económica do clube possa estar em causa durante a temporada. Caso isso se verifique, o clube pode ser impedido de participar nas competições profissionais até encontrar um modelo de gestão sustentável que torne o clube rentável e viável economicamente. 

Se é certo que mais do que o dinheiro investido foram as ideias que fizeram a diferença, também é certo que sem ele, dificilmente as mesmas podiam ser postas em ação. Como disse há poucos dias Domingos Soares de Oliveira, “a diferença não se faz nas ideias, porque isso todos temos, mas sim na capacidade de implementar”. Para a Federação Inglesa, que muito tem investido na reestruturação do seu futebol, algo que tem levado a um sucesso sem precedentes dos escalões jovens ingleses, os mais de 600 milhões de Euros que a venda de Wembley desbloquearia iria permitir à Federação Inglesa dar um passo ainda maior rumo ao domínio futuro do futebol a nível internacional. Afinal, como a própria FA admitira, o dinheiro da venda de Wembley seria usado na bases do futebol inglês, muito à imagem daquilo que os alemães fizeram no início do século.

A venda de Wembley caiu e isso é uma má notícia para o futebol. As razões, só aqueles diretamente relacionados ao negócio saberão. Se Shahid Khan afirmou que se retirou devido à proposta não ter sido aceite de forma unânime e não querer contribuir para a divisão do futebol, alegações surgidas na imprensa relacionadas com a compra de votos e corrupção durante o processo, poderão estar na base da queda do negócio. Esse, porém, não é ponto. A não venda de Wembley é uma má notícia para o futebol pois invalida que tal como fizeram os alemães, os ingleses definam um plano de reestruturação do seu futebol e do investimento nas infraestruturas associadas ao desporto que sirvam de modelo para outros países e para federações de outros países, Portugal incluído, que terminem com a elevação da qualidade do futebol a nível global.

Inviabiliza que novos modelos de investimento, formativos e de correntes de pensamento no futebol se desenvolvam e dos quais Portugal podia beneficiar. Afinal, foi o modelo alemão que esteve na génese da revolução recente do futebol inglês, espanhol ou belga e que tão bons resultados desportivos permitiu a esses países nos últimos anos, particularmente em Espanha, que a certa altura passou a dominar o futebol a nível mundial. Em poucos anos a Alemanha revolucionou o seu futebol e os resultados estão à vista. A total revolução do sistema de observação e prospecção, modernização dos métodos de treino, maior profissionalização e formação dos técnicos do país e ainda a construção massiva de academias de formação permitiram à Alemanha sagrar-se campeã mundial catorze anos depois de cair na fase de grupos do campeonato europeu. Algo descrito por Karl-Heinz Rummenigge como uma tragédia nacional.

Todo e qualquer centímetro do território alemão está agora coberto e a possibilidade da federação alemã deixar escapar um jovem talentoso é praticamente nula e a profundidade do campo de recrutamento alemão é tão extenso que o país venceu o Europeu Sub-21 e chegou à final da Taça das Confederações, em ambos os casos, com equipas secundárias. Na Taça das Confederações de 2017, os quatro encontros da Alemanha estabeleceram as quatro médias de idades mais baixas das equipas em competição. Em 2013, 26 dos jogadores definidos por Bayern Munique e Borussia Dortmund - finalistas da Liga dos Campeões - para a principal competição de clubes da UEFA, eram elegíveis para representar a seleção alemã. Robin Dutt, antigo director técnico da Federação Alemã, ao Guardian, em 2013, resumiu na perfeição o atual futebol alemão: "até 2000 pouca gente identificava talento no país. Hoje, identificamos toda a gente". 

A Alemanha percebeu que o "estilo alemão" era um conceito obsoleto e modernizou os seus métodos de treino de forma a estabelecer um padrão de jogo mais assente na técnica e flexibilidade tática - esquecendo finalmente o modelo tático que incluía um líbero e que no final dos anos 90/início dos anos 2000 ainda imperava de forma massiva na Bundesliga, Bayern incluído, uma revolução tática liderada pelo hoje treinador do RB Leipzig: Ralf Rangnick -, e menos na imposição física dos seus atletas. Christian Guttler, por exemplo, criador do simulador "Footbonaut", era o homem mais feliz do Mundo em 2014 quando Mario Gotze fez o golo da vitória alemã no mundial brasileiro. O movimento do avançado alemão era, afinal, tirado diretamente do que o seu simulador potenciava. Aquele golo não simbolizava somente o regresso dos alemães ao topo do futebol mundial. Era a metáfora perfeita para o atual estado do futebol alemão: um futebol técnico, vanguardista, moderno e socialmente diversificado. Algo que, apesar das boas ideias, nunca teria sido possível sem dinheiro e que, por isso, faz crer que a quebra do negócio Wembley é uma má notícia para todo o Mundo do futebol.

Não há história, legado ou identidade que o salve. Afinal, ainda para mais, quando em 95 anos de Wembley, novo ou velho, apenas desde a existência do novo Wembley que este era da esfera pública e não privado.