Grande Futebol
No país onde não se jogava à bola, eles já sabem, afinal, jogar à bola
2018-08-25 15:00:00
Já despacharam o Legia Varsóvia, na Liga Europa, e estão prestes a dar um chuto no Cluj.

“Vamos jogar com o Luxemburgo: menos de 5 é derrota. Os gajos não jogam um bacalhau. Zero. Não pescam nada disto”. Esta frase, possivelmente tirada de uma conversa de café, poderia sair da boca do adepto de uma equipa que defrontava a seleção do Luxemburgo. O mesmo se aplicava a quem defrontava clubes deste pequeno país entalado entre salsichas alemãs, vinho francês e chocolate belga. Agora, isso mudou. Fomos ver os números da seleção e temos essa certeza. Mas não só.

O F91 Dudelange, campeão luxemburguês, já despachou o Legia Varsóvia (de Sá Pinto), na Liga Europa, e está prestes a dar um chuto no Cluj, vencendo a primeira mão do playoff, por 2-0. Fase de grupos da Liga Europa na mira e uma caminhada impressionante, que justificou a nossa atenção. Caro leitor, esteja de olho nestes luxemburgueses, que venceram quatro dos últimos cinco campeonatos locais.

O Bancada falou com Stélvio, médio do Dudelange, e Tino Barbosa, ex-avançado do clube, para perceber melhor como está a evoluir o futebol luxemburguês e, claro, sacar umas boas historinhas. E conseguimos. Uma delas pode vir já.

"Só havia um árbitro, jogadores todos barrigudos e pais de colegas meus”

Stélvio, médio internacional angolano – que chegou a jogar pelas camadas jovens de Portugal –, traz-nos uma história bizarra e que mostra que, de facto, ainda há muito por fazer no futebol luxemburguês.

“Sinceramente, são tantas histórias que nem sei qual escolher, começa por dizer, entre risos, antes de se atirar a esta: “Uma vez, fui jogar pela equipa de reservas, pois no primeiro ano em que cheguei ao Dudelange era considerado como transferência (jogador novo no clube) e só podem jogar quatro. Éramos oito, nesse ano, e lá fui eu jogar nas reservas. Nesse jogo, só havia um árbitro, jogadores todos barrigudos e, entretanto, reparei que estava a jogar contra alguns pais de colegas meus”.

Mas vamos lá ao Dudelange. Quisemos saber, muito diretamente, se esta campanha quase milagrosa na Liga Europa estava planeada ou foi um bónus caído do céu. Stélvio diz que não estava previsto irem tão longe, mas que o sonho já lá estava. “Para ser sincero, o objetivo do clube é sempre poder chegar o mais longe possível nas competições da Europa. Mas nós, jogadores e staff técnico, sempre acreditámos que poderia ser possível chegar, pelo menos, aos playoffs de uma competição europeia”, explica, acrescentando: Chegar à fase de grupos seria o concretizar de um sonho”.

Tino Barbosa, que esteve no clube na última temporada, deixa uma possível explicação para este desenvolvimento. Exigência competitiva leva à evolução, explica-nos. “Sempre tivemos esse pensamento de um dia chegar à fase de grupos, mas sabíamos que seria muito complicado, devido às equipas que apanhávamos pela frente. Com a experiência que o clube tem vindo a ganhar nos últimos anos, a defrontar equipas de topo, as exigências do nosso lado também começam a subir, analisa.

"Estávamos a ganhar 12-0 ao intervalo"

O futebol luxemburguês ainda é limitado, sim, mas Stélvio explica, ao Bancada, que as coisas mudaram desde que chegou ao clube, em 2013. “Quando cheguei a Dudelange, encontrei um clube amador em muitos aspetos, para não dizer em tudo. Hoje em dia, a maioria do plantel (80%) é profissional e isso faz toda a diferença”.

Tino Barbosa também nos falou da profissionalização dos jogadores. “No Dudelange, posso dizer que 90% dos que estão dedicam-se só ao futebol e tudo o que vemos numa equipa profissional também podemos ver lá. Nas outras equipas já não vemos da mesma maneira, porque, além do futebol, têm o trabalho deles”, explica-nos, antes de confirmar, ao Bancada, que a chegada de estrangeiros tem dado um empurrãozinho ao futebol do país. “Sim, a chegada dos estrangeiros está a ajudar. É assim que o futebol aqui está a evoluir e as outras equipas de fora começam a respeitar mais”.

É certo que as coisas estão a evoluir, mas também é certo que ainda há equipas muito fraquinhas. Não é assim, amigo Stélvio? “Uma vez, fui jogar pelas reservas, para ganhar ritmo – vinha de lesão –, e estávamos a ganhar 12-0 ao intervalo. Não jogámos a segunda parte, porque a outra equipa disse que não queria jogar mais. Disseram para porem o resultado em 15-0, que era melhor para todos”.

Com ou sem goleadas, o médio angolano garante que se sente bem no clube e que encontrou estabilidade familiar, mas assume: “Claro que ambiciono sempre mais e jogar num campeonato mais competitivo seria ótimo”.

A seleção melhorou a olhos vistos. Até empatou com os franceses

Prometendo não maçar com muitos dados chatos, vamos perceber, em números, a evolução da seleção luxemburguesa, desde o início deste milénio, em qualificações para as grandes competições.

Este quadro permite um par de conclusões evidentes. Desde 2010, a seleção do Luxemburgo tem vindo a melhorar significativamente os resultados – algumas vitórias e empates, depois de anos só de derrotas –, bem como os habitualmente drásticos registos defensivos. Conseguiram ainda fugir ao último lugar do grupo algumas vezes e, desde 2014, não só conseguir marcar mais golos, como “sacar” vitórias e empates frente a equipas fortes.

O pináculo foi o escândalo conseguido a 3 de setembro de 2017, ao empatarem, em Toulouse, frente à França. Luc Holtz, selecionador luxemburguês, assumiu que foi "um dia de glória do futebol do Luxemburgo".

Stélvio lembra-nos que “a cada ano que passa eles estão melhores e o resultado disso está nas prestações dos clubes e da seleção luxemburguesa nestes últimos anos”, enquanto Tino Barbosa deixa um aviso: há talento naquele pequeno país. “Daqui a uns anos, poderemos vir a ver o campeonato de Luxemburgo com outros olhos e também como uma fonte de jogadores, porque tem aqui bastantes jogadores que poderiam estar num campeonato mais competitivo e profissional”.

"Conseguimos não levar um castigo à grande"

A terminar, mais uma historinha. Passámos vários parágrafos a falar da evolução do futebol luxemburguês e, por isso, deixámos para o fim uma história que mostra que, por lá, também há exigência. Não são apenas amigos que se juntam para dar uns pontapés na bola. Ora veja lá.

“No meu primeiro ano aqui, pelo US Rumelange, houve um jogo que fomos fazer no norte, contra uma equipa que se chama Wiltz. Nessa altura, jogava na mesma equipa com mais dois irmãos, um que se chama José Inácio, defesa-central, e outro que se chama Ezequiel "Keu", que é ponta de lança. Nesse jogo não podíamos perder por nada deste Mundo, porque além de a equipa ser nossa concorrente direta, nós não tínhamos a manutenção garantida. Quando chegou o intervalo, estávamos a perder 3-0. Chegámos ao balneário e estava toda a gente com a cabeça baixa e com o treinador a reclamar e a dar sermões. Quando ele estava a dar sermões, virou-se para o grupo e disse que se nós perdêssemos esse jogo estaríamos feitos com ele. E disse ainda ‘Tino e Keu, têm de dar mais’. Ao entrar em campo, eu e o meu irmão falámos que não podíamos perder aquele jogo e que não podia ficar assim. Começou a segunda parte e em 25 minutos marquei três golos: um de cabeça, outro de pé esquerdo e outro pé direito. Depois o treinador fez uma substituição e o que entrou marcou logo o quarto golo. Eles lá conseguiram empatar o jogo 4-4. Conseguimos o objetivo, que era não perder o jogo, e conseguimos não levar um castigo à grande, no treino, caso tivéssemos perdido o jogo”.