Grande Futebol
Maurício Pochettino: a fina ironia de um argentino ao serviço de sua majestade
2017-11-04 16:55:00
Pochettino tem elevado o estatuto do Tottenham como clube, mas a sua influência no futebol inglês é bem mais complexa.

Se a vitória do Tottenham perante o Real Madrid parece ser prova de uma mudança de paradigma no futebol europeu, com a ascensão dos clubes ingleses sobre os espanhóis (o Chelsea já venceu o Atlético Madrid e o Liverpool empatou perante o Sevilha quando, nos últimos anos, raramente os clubes ingleses conseguiram suplantar-se perante os rivais espanhóis, sendo Inglaterra o país que mais pontos conquistou esta temporada nas competições europeias), a ideia cada vez mais generalizada por Inglaterra é a de que Pochettino, mais do que qualquer outro treinador no país, está a mudar a face do futebol inglês. A história de Pochettino por White Hart Lane, ou Wembley esta temporada, é irónica. Afinal, Pochettino parece ser um argentino ao serviço de sua majestade e o possível sucesso de Inglaterra no Mundial 2018 deverá estar intimamente ligada à capacidade de Gareth Southgate dar seguimento, na seleção britânica, ao trabalho efetuado por Pochettino no Tottenham. Certo, é que grande parte dos atuais internacionais ingleses, bem com grande parte das mais recentes estreias promovidas por Inglaterra, ora com Hodgson, ora com Southgate, tiveram uma influência direta do técnico argentino.

Adam Lallana, Jay Rodríguez, Nathaniel Clyne, Callum Chambers, Luke Shaw, Rickie Lambert, Eric Dier, Harry Kane, Ryan Mason, Dele Alli, Danny Rose, Kieran Trippier, Harry Winks… O que têm em comum todos estes nomes? Maurício Pochettino. Desde a chegada a Inglaterra em 2013, na altura como treinador do Southampton, Pochettino tem sido um dos grandes, senão mesmo o maior responsável pela revolução que a seleção inglesa vai vivendo atualmente. Todos os nomes anteriores chegaram à seleção inglesa depois de terem trabalhado com Maurício Pochettino. Da mais recente lista de convocados por Gareth Southgate, seis deles, são jogadores do Tottenham, algo que torna o clube londrino no emblema que mais jogadores cede à atual seleção inglesa. Margaret Thatcher certamente desaprovaria, é que, Maurício Pochettino, parece ser neste momento um homem em missão e um argentino ao serviço de sua majestade.

A vitória do Tottenham, em Wembley, perante o Real Madrid para a Liga dos Campeões tem já alguns dias, mas, por Inglaterra, a mesma continua na ordem do dia. O triunfo inglês perante o Real Madrid permitiu ao Tottenham assegurar a qualificação para a ronda seguinte da prova milionária e ultrapassar a fase de grupos sem qualquer derrota perante o atual campeão espanhol e europeu depois de, em Madrid, o conjunto inglês ter arrancado um empate a um golo. Uma vitória que deu seguimento à boa temporada dos conjuntos ingleses na europa este ano e, em especial, na Liga dos Campeões. Pela primeira vez na história da competição, cinco equipas do mesmo país deverão estar nos oitavos de final da mesma. O Tottenham será uma delas e, por Inglaterra, a ideia de que Maurício Pochettino está não só a mudar o estatuto do clube londrino, como todo o futebol inglês no geral, é cada vez mais forte. Pelo Guardian, Jonathan Wilson escreveu que “a vitória do Tottenham perante o Real Madrid é um sério aviso aos superclubes europeus”, com o conjunto inglês a “ter tornado o Real Madrid numa equipa limitada e desorganizada”, analisando que a “competitividade do topo da Premier League parece estar finalmente a beneficiar os clubes ingleses a nível internacional”.

Se durante muito tempo Inglaterra e Argentina se debateram pela soberania do território das Falklands, no futebol, os dois países parecem ter uma relação mais estreita que o habitual. Principalmente, entre duas nações que não são propriamente vizinhas e muito menos o são, próximas, geográfica, territorial e, acima de tudo, sentimentalmente. Ao longo dos anos, porém, os episódios futebolísticos que envolvem argentinos e ingleses tornaram ambas as nações inseparáveis. Foram os ingleses que deram ao futebol argentino clubes históricos como o Rosario Central, o Newell’s Old Boys ou Quilmes. Foi um argentino, Antonio Rattin que, em 1966 durante um Argentina-Alemanha em Villa Park a contar para os quartos de final do Campeonato do Mundo desse ano que obrigou a FIFA a instituir os cartões/sanções disciplinares no futebol. Foi frente a Inglaterra que Diego Maradona fez história no México com dois golos icónicos naquele que é, porventura, o jogo mais memorável da história do futebol de seleções. Foi num Inglaterra-Argentina, em 1998, que David Beckham foi expulso e considerado culpado da eliminação inglesa do campeonato do Mundo gaulês… Não faltam episódios ao longo da história do futebol que ligam Inglaterra e Argentina e, até à chegada de Maurício Pochettino a White Hart Lane, era também um argentino que recolhia o título de herói de culto nos Spurs: Osvaldo Ardiles, que entre 1978 e 1988 representou o Tottenham em 221 partidas para as quais contribuiu com 16 golos, sendo considerado ainda hoje como um dos melhores jogadores estrangeiros da história do clube londrino. Clube onde pontuou ainda Ricardo Villa entre 1978 e 1983, dois argentinos que ajudaram o Tottenham a vencer a Taça de Inglaterra de 1981.

Hoje, é Maurício Pochettino quem lidera a equipa do Tottenham e parece ser mais um argentino que poderá ser decisivo na conquista de um título por parte do emblema de Londres. Em Inglaterra, muitos acreditam que nunca, nos últimos anos, o Tottenham esteve tão perto de voltar a erguer um título como no período atual sob a liderança de Pochettino – num recente episódio do programa The Debate da Sky Sports, tanto Guillem Balagué como Craig Bellamy afirmaram-no, tal como o fez regularmente o Guardian ou o Telegraph em diversos artigos de opinião escritos ao longo dos últimos meses e semanas. Tottenham, que apesar da luta pelo título que vem encetando de há duas épocas a esta parte, continua a perseguir um feito que não alcança desde 1961, com a imprensa inglesa a considerar que não só Pochettino mudou a face do clube para um emblema que é finalmente competitivo ao mais alto nível, como o argentino se tem definido como o técnico em Inglaterra mais importante para o desenvolvimento do futebol no país. E, mais do que aproveitar os jogadores ingleses que Pochettino tem potenciado, Inglaterra deve aproveitar para emular o sistema de jogo do Tottenham de forma a alcançar o sucesso durante o Mundial 2018 a ser disputado no próximo verão na Rússia.

“Dier, Winks e Alli fizeram o Real Madrid parecer uma equipa envelhecida, portanto porque não importá-los diretamente para o onze da mais desinspirada Inglaterra dos tempos modernos?” escreveu hoje no The Guardian Barney Ronay. “Porque não escolher um meio campo e um ataque composto totalmente por jogadores sub-25 a jogar regularmente na Liga dos Campeões e que parecem ser bons o suficiente para três dos melhores treinadores do Mundo”, interroga-se ainda Ronay que, no seu artigo, recorda a passagem de Valeriy Lobanovskiy pelo comando técnico da seleção da URSS, aludindo ao facto de em 1988 a seleção soviética ter terminado o Europeu 88 na segunda posição e com um plantel composto por 11 jogadores do Dinamo Kiev de Lobanovskiy. A ideia de Ronay é simples: transportar para o futebol de seleções o espírito de equipa e química da mesma adquirida ao longo de meses de convívio e competição a nível de clubes, ainda para mais, numa competição que os selecionadores têm pouco tempo para preparar ou instituir modelos táticos.

Desde 2009 que o Real Madrid não era batido por uma equipa inglesa na Liga dos Campeões e, com isso, Pochettino parece ter ganho definitivamente um crédito que a ausência de títulos ia impedindo o argentino de recolher. Num grupo que engloba Real Madrid e Borussia Dortmund, foi o conjunto o inglês que garantiu o apuramento para a próxima fase da Liga dos Campeões em primeiro lugar. O triunfo do Tottenham não só colocou um ponto final na sequência de 30 jogos do Real Madrid sem perder na fase de grupos da Liga dos Campeões, como permitiu ao mundo do futebol olhar para os conjuntos ingleses com outros olhos, recolhendo os emblemas de Premier League um prestígio que há muito havia perdido. Mais do que resultado, porém, foi a exibição do Tottenham em Wembley que impressionou, particularmente pela pressão exercida pelo trio de meio campo da equipa inglesa que obrigou Marcelo, por exemplo, a perder a bola 29 vezes, o seu máximo de carreira. “Dier, Winks e Alli começaram no meio campo frente ao Real Madrid e jogaram um futebol altamente enérgico e de pressão alta intensa, fazendo o Real Madrid parecer uma equipa envelhecida. Que outra prova mais convincente é precisa ou é possível encontrar do que a banalização do atual campeão europeu?” interrogou-se Barney Ronay, uma interrogação que é cada vez mais comum e transversal na imprensa e adeptos do futebol inglês.

Instalado na terceira posição da Premier League e a oito pontos da liderança do Manchester City, o Tottenham está mais uma vez na luta pelo título inglês. Feito de Pochettino que vai elevando o estatuto do clube londrino e, mais do que isso, vai ajudando o próprio futebol inglês a alterar a sua face, potenciando jogadores locais e dando espaço a jovens talentos formados no próprio Tottenham – uma recorrência ao longo da carreira de Pochettino, quer no Espanyol, quer no Southampton. Margaret Thatcher certamente não aprovaria, tal como muitos dos compatriotas do técnico, mas Pochettino parece ser por esta altura um dos homens mais importantes para o desenvolvimento do futebol inglês e mais um exemplo da estreita ligação futebolística entre Argentina e Inglaterra. Mais do que nunca, acredita-se por Inglaterra, o sucesso da seleção dos Três Leões está intimamente ligado à capacidade de Southgate aproveitar o trabalho de Pochettino ao longo da temporada. Não só utilizando os jogadores do argentino, mas principalmente emulando o sistema de jogo da equipa londrina – e mais recente convocatória inglesa até parece ir nesse sentido. Pelo menos, por agora, enquanto Pochettino não cumprir um dos seus desejos de carreira: treinar a seleção inglesa.