Grande Futebol
Kanu esteve às portas da morte e agora salva a vida a crianças
2018-09-17 11:00:00
Um problema cardíaco detetado em Milão salvou-lhe a vida. Desde então dedica-se a salvar a vida a centenas de crianças.

Milão, novembro de 1996. Poucas semanas depois de ter levado a Nigéria à conquista do Ouro olímpico envergando orgulhosamente a braçadeira de capitão da seleção do seu país, e que lhe permitiu uma mudança de Amesterdão do Ajax para o Inter, bem como a distinção de jogador africano do ano, Nwankwo Kanu teve logo ali um desafio que mesmo em idade jovem se tornaria num dos maiores e mais importantes da sua vida. Kanu não marcou um golo importante em campo, mas fê-lo na vida. Sobreviveu a uma operação delicada ao coração para substituir a válvula aórtica e desde então tudo mudou na sua vida.

Kanu só voltou a jogar futebol em abril de 1997, tendo acabado a carreira em 2012 ao serviço do Portsmouth, 624 jogos e 137 golos depois com passagens por Ajax, Inter, Arsenal, WBA e Portsmouth, numa carreira recheada de títulos e que nem uma experiência de quase morte eclipsou e muito menos impossibilitou. Uma experiência que lhe mudou a vida, o fez repensar prioridades e serviu de inspiração principal para a criação da sua fundação em 2000, a Kanu Heart Foundation, que desde então se dedica a ajudar crianças em África com problemas cardíacos a ter o melhor acompanhamento médico possível, bem como tem tirado das ruas muitas outras desde que se passou a dedicar, também, a encontrar um lar a sem abrigos desde 2008. Quase vinte anos depois, diz Kanu, já salvou mais de meio milhar de crianças.

A história de Kanu não seria, igualmente, a mesma, não tivesse sido uma outra experiência de “quase morte” que se lhe deparou pela frente quando em 2000 uma mulher lhe levou a filha gravemente doente em desespero - conhecera a história de Kanu pelos meios de comunicação e descobriu o hotel em que a equipa nigeriana preparava um encontro da Taça das Nações Africanas - e suplicou a Kanu que lhe salvasse a vida. Desmaiada, Kanu apenas teve tempo de lhe pegar, correr para o hospital, e suplicar a Deus que passou a idolatrar poucos anos antes, para que tudo corresse pelo melhor. “Graças a Deus não faleceu”, recorda Kanu ao The Guardian. Kanu disse basta. Estava na hora de agir e colocar as suas possibilidades ao serviço da Humanidade.

“A mão queria mostrar-me apenas a criança e pedir por ajuda. Quando me viu no hotel gritou por mim e de repente a menina desmaiou. Mais tarde no hospital prometi à mãe que a primeira criança que iríamos operar seria a sua filha”, recorda o antigo avançado. Eniton acabou por ser uma das primeira crianças a ser levada da Nigéria para Londres ao abrigo da Kanu Heart Foundation para ser operada. “Uma criança daquela idade que não brinca, não tem pinga de energia, que mal se mexe, não sorri e cujos olhos estão azuis... A sofrer, num estado de grande debilidade... Dás por ti a pensar ‘se ninguém fizer algo para ajudar, morre’. Depois das operações porém... Visitei todas as crianças e todas estavam cheias de sorrisos, a saltar e a brincar comigo, rebolando. Olhas para os pais e só vez sorrisos e felicidade. Depois desse dia pensei: ‘isto é algo que temos de fazer. Mais e mais’.

Desde então, muitas outras crianças foram salvas pela fundação de Kanu. 542, para ser preciso, conta Kanu com orgulho. Eniton? É hoje uma licenciada pela Universidade de Lagos e cujos estudos foram também comparticipados por Kanu. “Continuamos a fazê-lo. Esta semanas quatro pacientes chegaram do Sudão e já soubemos que as operações foram bem sucedidas. Há outros seis prontos a chegar. Associámo-nos a vários hospitais. Fazemos check-ups, falamos com os pais, educamo-los e ao mesmo tempo levamos as crianças para outros países para poderem ser operadas. O objetivo da fundação é construir o nosso próprio hospital cardíaco em África, começando pela Nigéria. Faria tudo muito mais fácil. Como futebolista, vencer troféus e marcar golos é ótimo, mas isto não tem comparação”.

Kanu pendurou as botas em 2012, mas nem por isso o antigo avançado internacional pela Nigéria tem tido descanso. Desde então que trabalha como embaixador pela FIFA, bem como pela Federação de Futebol da Nigéria, claro está, paredes meias com o trabalho incansável que realiza na sua fundação. “Sou chamado de lenda e as pessoas vêem-me como uma, mas não é por isso que acho que deva refugiar-me em casa, ir de férias, beber champanhe e ver TV. Eu quero ter um impacto significativo na vida das pessoas” e ao longo dos anos, Kanu tem trabalhado incessantemente na recolha de dinheiro que lhe permita ajudar a ter esse mesmo impacto, promovendo constantemente ações de solidariedade como o jogo solidário que organizará nos próximo dia 30 de setembro a envolver antigos jogadores africanos e da Premier League onde fez grande parte da carreira.

O trabalho filantrópico de Kanu é melhor compreendido quando o próprio entra em detalhes acerca da sua própria experiência e do mês infernal que passou em Milão quando acabou por lhe ser diagnosticado o problema cardíaco que lhe mudou a vida e a perspetiva com que a encarava. Kanu até já tinha feito dois jogos de pré temporada pelo Inter quando finalmente fez os exames médicos e o Mundo quase desabou sobre si. Os médicos mantiveram-no na escuridão, e foi através dos meios de comunicação que entendeu a gravidade do seu problema.

“A comunicação social começou a noticiar que eu tinha um problema cardíaco e que não iria poder jogar futebol nunca mais. Estava em todos os jornais italianos. Foi aí que descobri, pelas notícias. Só mais tarde o Inter falou comigo e finalmente me explicou a situação. Eu disse ‘pois, já soube’. Foi muito duro. Ainda para mais, tendo sabido da maneira como aconteceu. Não devia ter sido assim. Naquele momento tinha o Mundo de pernas para o ar”, confessou Kanu em entrevista à publicação inglesa, que se diz sortudo pelo problema ter surgido nos exames. Apesar de inicialmente ter sido desaconselhado por médicos ingleses e holandeses a voltar a jogar futebol, um especialista norte americano acabou por corrigir o problema de Kanu através de cirurgia e permitir ao antigo avançado ter-se tornado num dos melhores jogadores africanos da história do futebol.

“O que eu passei após a minha transferência para o Inter fez de mim uma pessoa mais forte. Não há nenhum teste maior da vida do que ficar perto de morrer. Se consegues ter a sorte de ultrapassar isso, consegues superar qualquer outra coisa. Deu-me uma força interior especial para fazer o que tivesse de fazer. Também mudou a forma como via o Mundo. Por exemplo, quem nunca esteve num hospital nunca entendeu muito bem o que se passa por lá. Eu percebi que há coisas mais importantes na vida do que estar confortável na minha individualidade. Podes abrir-te ao Mundo e ajudar outros. Eu conheço a dor que passei e era já adulto, não consigo imaginar o que é para pequenas crianças. É muito complicado para eles passar por tudo isso”.

Apesar da operação em 1996 lhe ter permitido ter uma carreira incomparável no futebol ao longo de quase vinte anos, Kanu teve de voltar a ser operado para corrigir problema idêntico em 2014 voltando a ficar altamente debilitado fisicamente durante alguns meses. Nada o demove, porém. “Tivemos casos como o de Marc Vivien-Foé que faleceu enquanto jogava, bem como outros como o de Cheick Tioté. Os clubes e as federações têm de pensar seriamente em monitorizar mais de perto os seus jogadores. O que é que os proíbe de fazer exames de três em três meses? Isto é algo que tenho vindo a defender e a tentar sensibilizar toda a gente pois, quem sabe, podia ter sido um dos casos em que morria a jogar futebol se o meu problema não tivesse sido diagnosticado nos exames feitos pelo Inter”.