Grande Futebol
Futebol e política de braço dado? No Brasil é desde os anos 80
2018-10-26 17:45:00
Tal como nos anos 80, o futebol brasileiro volta a ter um papel preponderante na política do país.

Se futebol e política não se misturam, desde os anos oitenta do século vinte que o Corinthians anda a fazer as coisas erradas. Ou certas, claro, dependendo do ponto de vista. Se nos anos 80 foram os próprios jogadores do clube, liderados por Sócrates, a dar os primeiros passos democráticos num país altamente marcado pelo seu contexto político ditatorial, quase quarenta anos depois a mensagem é dada pela claque do clube. Uma coisa, porém, é certa: dissociar o Corinthians da política brasileira é algo impossível. Sim, futebol e política misturam-se.

"Ganhar ou perder, mas sempre com democracia". No início dos anos oitenta, com o Brasil embrenhado em plena ditadura militar, o Corinthians foi um dos principais impulsionadores da democracia que se voltou a instituir no país com as eleições de 1985. Num país marcado pela ditadura e a ausência das liberdades individuais, o Corinthians foi um bastião da democracia e durante dois anos fez história e ajudou a alterar o contexto social e político do país até aos dias de hoje. Numa altura em que o Brasil se prepara para ir a votos naquele que é um dos concursos eleitorais mais importantes desde então, o futebol volta a envolver-se diretamente na política do país.

Entre 1982 e 1984, o Corinthians marcou para sempre o futebol mundial e o próprio contexto cultural e político no Brasil. Com o país em plena ditadura militar, instituiu-se no clube uma democracia em que todos os jogadores participavam ativamente nas decisões económicas e desportivas do mesmo. O movimento, ainda hoje conhecido como o maior movimento ideológico da história do futebol brasileiro ficou conhecido como “Democracia Corinthiana” e teve em Sócrates, Wladimir, Zenon e Casagrande, avançado que chegou a passar pelo FC Porto, os principais impulsionadores.

Durante dois anos, todas as decisões tomadas no clube de São Paulo foram tomadas em conjunto, estabelecendo-se uma estrutura horizontal no clube ao invés da tradicional hierarquização piramidal com o presidente bem lá no topo e como elemento central das decisões tomadas na organização. Entre 1982 e 1984, o voto dentro do clube foi igualitário, valendo o mesmo fosse um jogador internacional pelo Brasil, o jovem acabado de sair da academia, o presidente, um técnico ou um qualquer outro funcionário do Corinthians. Decisões relativas a contratações, estágios, nutrição, regras comportamentais, entre outras, foram sempre tomadas em conjunto, algo revolucionário no contexto vivido no país dada a situação política do Brasil da altura.

Tudo isto permitiu que o Corinthians deixasse a mediocridade desportiva em que estava envolvido e se elevasse novamente a potência futebolística do país. Se por altura do início do movimento, o Corinthians vinha de uma campanha desastrosa no campeonato brasileiro e no estadual de São Paulo, em poucos meses o Corinthians sagrou-se bicampeão paulista (1982 e 1983), chegando ainda às meias finais do campeonato brasileiro de 1982. Se desportivamente os resultados da Democracia Corinthiana foram prósperos, fora dele, a nível financeiro, a situação também melhorou significativamente com o clube a saldar todas as dividas e passivo do mesmo.

A inovação e revolução imposta no clube não foi apenas interna. Entre 1982 e 1984, também sobre o relvado o Corinthians fez história ao ser o primeiro clube brasileiro a entrar em campo com mensagens publicitárias nas camisolas, muitas delas, altamente politizadas. Fotos de Sócrates a exibir a mensagem “Diretas já” ou “Eu quero votar para presidente” tornaram-se eternas. Mensagens altamente polémicas, afinal, o Brasil vivia na altura uma ditadura.

O movimento não durou muito tempo mas mudou para sempre a paisagem social e desportiva do país. Com a não aprovação da lei que faria das presidenciais de 1985 eleições diretas como defendia Sócrates, aliado à quebra dos resultados desportivos do clube e à cada vez maior influência da estrutura organizacional moderna nos clubes de futebol, o icónico jogador brasileiro acabou por deixar o país, deixar cair a sua luta e rumar a Itália e à Fiorentina.

Os passos dados pela Democracia Corinthiana não podem, porém, ser ignorados na mudança de paradigma político no Brasil dos anos 80 e na queda da ditadura militar em vigência e, hoje, numa altura em que estão perto as eleições que irão fazer de Fernando Haddad ou Jair Bolsonaro o novo presidente do Brasil, o futebol volta a ser palco e centro de influência para as intenções de voto dos brasileiros. “Gavião não vota Bolsonaro”.

“Gavião não vota Bolsonaro”. Depois de "Ganhar ou perder, mas sempre com democracia", o slogan da Democracia Corinthiana, há uma nova mensagem altamente politizada associada ao Corinthians. Desta feita, não propagada pelos jogadores do clube, mas pela principal torcida do mesmo, a Gaviões da Fiel. “Somos uma torcida que defende os direitos do nosso povo e não podemos deixar que o nosso maior representante seja contra nós e contra tudo aquilo que lutamos", afirmou o presidente da mesma. Uma posição surgida depois de vários nomes do futebol brasileiro, como Felipe Melo que lhe dedicou um golo pelo Palmeiras, terem assumido o seu apoio a Jair Bolsonaro.

“Você que é associado dos Gaviões, sabe da história da sua Torcida? Você sabe que na nossa fundação, em 1969, vivíamos em plena Ditadura Militar? Você sabe que no período da nossa fundação tínhamos como principal objetivo derrubar um ditador dentro do nosso clube? Você sabe que os nossos fundadores sofreram muita opressão por levantar a bandeira em favor da democracia e dos direitos do povo? Sei que hoje nos Gaviões da Fiel, uma torcida com mais de 112 mil sócios, tem sócios de diversas classes sociais, da hora, cada um fez por onde pra chegar onde está… só que é o seguinte rapaziada, vocês que apoiam um cara que vai contra todas as nossas ideias e joga no lixo o nosso passado de muitas lutas, por favor, se forem seguir apoiando esse cara, repense sobre sua caminhada dentro da Torcida.

Ou seja, se está no Gaviões por interesses pessoais, status, para ostentar apenas uma camisa ou se beneficiar atrás de ingresso e pagar nas redes sociais que faz parte da maior torcida do Brasil, por favor, se retirem. Pode passar lá no Vip e assinar a carta de saída. Somos uma torcida que defende os direitos do nosso povo e não podemos deixar que o nosso maior representante seja contra nós e contra tudo aquilo que lutamos", atirou o presidente da principal claque do Corinthians.

A Gaviões da Fiél, porém, não estão sozinhas na luta pela influência nas eleições deste domingo. Várias foram as claques de clubes brasileiros, e até rivais do Corinthians, como claques do Palmeiras e do Santos, mas também claques do Flamengo e do Internacional de Porto Alegra aquelas que se manifestaram publicamente contra o voto em Bolsonaro por parte dos seus integrantes, mas também estendendo a manifestação de intenções a todos os adeptos dos clubes que apoiam.

“Respeitamos a coexistência democrática de opiniões e posicionamentos políticos variados; mas não podemos tolerar a ameaça às instituições democráticas e os posicionamentos de teor racista, xenofóbico, machista e homofóbico. Não podemos tolerar discursos de ódio dirigidos a grupos historicamente oprimidos. A trajetória da Sociedade Esportiva Palmeiras é uma trajetória de acolhimento à diversidade destes grupos”

“O Internacional se destacou desde cedo na sua história pela participação de jogadores negros em campo e entre seus torcedores. Também, o clube foi fundado e jogou os primeiros anos num bairro de maioria negra e próximo a comunidades quilombolas. A alcunha de Clube do Povo não veio por acaso. Desde essa época, insultos racistas são dirigidos ao Inter e a sua torcida pelos seus rivais. É uma incoerência que um colorado, que conhece e admira a história de seu clube, apoie um candidato que coleciona episódios de racismo”

“A torcida do Flamengo é a mais popular do país. Ela abrange todos os segmentos sociais, desde homens e mulheres, brancos e negros, jovens e idosos, pobres e ricos. Representamos o povo brasileiro na sua essência. Nesse sentido, é inaceitável qualquer declaração preconceituosa manifestada por Bolsonaro e seu vice, Mourão, sobretudo ao que tange a população mais pobre, negra e as mulheres, mães e avós”

Todos estes foram excertos saídos de comunicados publicados pelas principais claques do futebol brasileiro, mais uma vez provando que o futebol do país irmão não está cego perante as questões políticas do país, tal como não esteve o Corinthians nos anos 80. E não são só as claques a exercer a sua influência pública. Juninho Pernambucano, antigo internacional brasileiro, histórico do Olympique Lyon e um dos melhores marcadores de sempre de livres diretos da história do futebol foi talvez aquele que uma maior posição pública tomou.

“Eu me revolto quando vejo jogador e ex-jogador de direita. Nós viemos de baixo, fomos criados com a massa. Como vamos ficar do lado de lá? Vai apoiar [Jair] Bolsonaro, meu irmão?”, afirmou em entrevista à imprensa brasileira, depois de vários nomes como Felipe Melo, Lucas Moura, Ronaldinho ou Rivaldo terem assumido o seu apoio público a Bolsonaro, algo que levou, aliás, segundo o catalão Sport, a que o FC Barcelona no caso dos dois últimos esteja a estudar a hipótese de se distanciar dos antigos jogadores.

PAULO ANDRÉ, O HOMEM QUE DESAFIOU UM BALNEÁRIO

Um dos maiores opositores de Bolsonaro no atual futebol brasileiro é Paulo André, antigo defesa central do Corinthians por quem ganhou um campeonato do Mundo de clubes e que hoje, aos 35 anos, alinha ao serviço do Atlético Paranaense e é um dos fundadores do movimento Bom Senso FC, uma espécie de sindicato dos jogadores profissionais de futebol, cujo objetivo é o de lutar pela melhoria das condições de trabalho dos jogadores de futebol.

Paulo André tem sido ao longo dos últimos meses uma das vozes mais ativas dentro do futebol brasileiro contra a eleição de Jair Bolsonaro, e acabou por contrariar a decisão institucional do clube no apoio ao candidato de extrema direita ao não envergar uma camisola de apoio à candidatura de Bolsonaro durante a entrada em campo de um jogo recente do Atlético a contar para o campeonato brasileiro. Enquanto todos os colegas entraram em campo com a camisola amarela onde se podia ler a inscrição “Vamos todos juntos por amor ao Brasil”, Paulo André entrou em campo com o casaco de treino do clube.

“A camisa estava lá, quem pegou, pegou. Eu acho que, vale mais um ato do que mil palavras. Então, prefiro deixar da forma como foi”, afirmou. Ele, que já antes havia afirmado ser uma pessoa extremamente democrática e que quando é confrontado com uma argumentação melhor, é o primeiro a concordar com ela. Princípios morais e éticos, porém, não negoceia e é por isso que se mostra contra Jair Bolsonaro.

A posição de Paulo André não pode ser ignorada. O defesa brasileiro é hoje um pouco daquilo que era Sócrates nos anos 80, porventura, a figura mais politizada do atual futebol brasileiro. Paulo André não é, aliás, somente um jogador no Atlético, é um dos líderes do clube e trabalha de perto com as camadas jovens do mesmo, treinando uma das equipas jovem do emblema do Paraná. Não, é por isso, um tipo qualquer dentro do clube, pelo que a sua posição pública é altamente relevante em toda esta história.

O Brasil vai a votos esta domingo e entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro estará o novo presidente do país. Mais uma vez, tal como vem acontecendo desde 1980, o futebol brasileiro está intimamente ligado à política do país. Afinal, futebol e política, sim, misturam-se.