Grande Futebol
Fernando Santos: "O nosso espírito é chegar à Rússia e vencer, vencer, vencer"
2017-10-15 09:30:00
Em entrevista ao Bancada, o selecionador nacional falou de tática, de gestão de balneário e de renovação

Fernando Santos raramente é um homem radiante e talvez por isso digam no meio do futebol que ele tem “mau feitio”. Apercebi-me disso em Andorra, quando vi o jogo de Portugal numa plataforma uns três metros acima do banco português e pude perceber os gritos que o selecionador dava para dentro do campo. Mas é um homem correto e respeitador. Além disso, fora da pressão da competição – e ainda por cima ainda a saborear o sucesso na qualificação para o Mundial – solta-se e até se ri. A conversa que combinámos, a primeira entrevista após a certeza da ida ao Mundial da Rússia, tinha limite horário, mas não de assuntos. Deu para ver um treinador satisfeito, mas também exigente e confiante. Diz que não vai em tretas de falar em passar a fase de grupos e que depois logo se verá. “O nosso espírito é chegar lá e procurar vencer, vencer, vencer”, enfatiza, reforçando a seguir: “Não somos os favoritos, mas somos candidatos”.

Bancada – Três anos de selecionador, um título europeu, um terceiro lugar na Taça das Confederações, duas qualificações para fases finais e apenas uma derrota em jogos de competição.  O que é que trouxe à seleção? O que é que é seu neste percurso?

Fernando Santos – A maior parte é dos jogadores. Enfim… Não diria a maior parte, nunca se pode dizer isso. É difícil quantificar o que é meu e o que é dos jogadores. O que a minha experiência me diz é que quando não tens bons jogadores, podes fazer muito bons trabalhos, mas dificilmente ganhas. E isso já me aconteceu ao longo da minha carreira, ter trabalhos muito bons que depois não resultaram em títulos, porque isso tem muito a ver com a qualidade dos jogadores. Isso é indiscutível. Sem jogadores de grande qualidade não se ganham títulos. Mas quando cheguei, e mesmo antes disso, quando tive a primeira experiência como selecionador, ainda na Grécia, observando as participações no Campeonato da Europa e no Campeonato do Mundo, sempre admirei a qualidade dos jogadores portugueses, principalmente a qualidade ofensiva, a sua capacidade de improvisação… E sempre pensei que se um dia eu fosse selecionador nacional português, se conseguisse juntar à qualidade ofensiva da equipa, à capacidade de improvisação e ao valor individual dos jogadores, aquilo que é fundamental em futebol e que os meus treinadores sempre valorizaram, que é ter uma equipa compacta, coesa e muito forte em todos os capítulos do jogo, uma equipa que saiba que para vencer, além da sua qualidade e criatividade, tem de ter também rigor tático – e não é rigor tático no sentido de criar autómatos, que isso não funciona –, que tem de criar dinâmicas nos momentos fundamentais do jogo… Se eu conseguisse ter uma equipa com a confiança absoluta de que pode vencer o adversário, porque tem capacidade para marcar golos – porque para vencer é preciso marcar golos – mas que ao mesmo tempo aceitasse como bom e forte argumento que uma das formas de vencer também é defender bem, com isso Portugal poderia bater-se com qualquer equipa do Mundo sem receio.

Bancada – E foi isso que trouxe à equipa?

Fernando Santos – Foi isso que desde o primeiro dia disse aos jogadores.

Bancada – É curioso que não tenha falado numa questão que a mim me parece fundamental, que é o trabalho de gestor de egos. Não é aí que está a chave do sucesso? Não é aí que está a grande mudança?

Fernando Santos – Está subjacente. Para conseguires que a equipa tenha esse comportamento, os jogadores devem entrosar-se, acreditar e pensar de uma forma coletiva. Que deixe de ser o “eu” para ser o “nós”. As minhas duas grandes mensagens quando cheguei à seleção foram essas. Lembro-me perfeitamente do que escrevi na altura, usando até uma palavra grega, que quer dizer eu, que é “ego”. No quadro, expliquei o que queria dizer “ego”, uma palavra que está muito ligada ao egocentrismo. Usei essa palavra para explicar aos jogadores que o “eu” tinha de ser erradicado. Iríamos usar um único termo, que era “nós”. Esse era o objetivo fundamental. Era criar um “nós” para deixarmos de ter um “eu”. Ou muitos “eus”, se quiseres. Em que o pensamento fosse sempre: nós vamos conseguir, nós somos capazes, nós vamos alcançar. Sem perder aquilo que é o eu em termos de jogo. E depois, no aspeto técnico, levá-los a perceber e a acreditar que, sendo uma equipa muito forte, que jogava muito bem, podia perfeitamente ganhar o campeonato da Europa. Defini logo isso como meta.

Bancada – E qual foi o segredo para ter passado essa mensagem? Não me lembro de termos um espírito de grupo tão forte na seleção desde o tempo de Scolari. E o segredo de Scolari seria, se calhar, o facto de ter sido campeão do Mundo, de ser estrangeiro... No seu caso, pode ser o facto de estar um pouco acima das tricas, de ser um treinador experiente, de ter trabalhado nos três grandes e por isso poder passar uma mensagem de independência…

Fernando Santos – Independente sempre fui. Perfeita e totalmente independente. Sou tão independente a ponto de, na minha carreira, nunca ter tido um agente. Nunca tive empresário. E não é por estar contra…

Bancada – Acha isso importante? O facto de estar acima disso e de não ser vulnerável ao diz-se, diz-se do “só joga este porque o empresário precisa de o vender”.

Fernando Santos – Não é seguramente fundamental. Mas comigo nunca podem ir por aí. Podia até ter tido agente. Há muita gente que tem, não acho mal, porque isso hoje em dia faz parte do que é o futebol, do que são as carreiras dos jogadores. É profundamente aceitável. Mas eu nunca tive. Por isso nunca podem dizer-me que vou buscar um jogador por ele ser do Joaquim ou do Manuel.

Bancada – É mais um pilar do sucesso?

Fernando Santos – Nunca podes ter só um único pilar em que assentas tudo isto. Alguns jogadores que aqui estavam já tinham sido meus jogadores, conheciam-me muito bem e podiam passar aos outros a mensagem de quem eu sou. Conheceram-me como treinador de clube, pelo rigor, pela disciplina, por todas essas questões pelas quais sempre fui conhecido. Tudo isso foi importante, mas o mais importante foi o trabalho realizado. E tudo se cimenta com vitórias. O primeiro jogo oficial, com a Dinamarca, marcou muito toda esta carreira. Porque era um jogo decisivo para a seleção portuguesa, que estava num momento difícil, não pela derrota com a Albânia, que a essa podia-se sempre dar a volta, mas por todo aquele aspeto da envolvência das questões técnicas e táticas, que é a capacidade mental das equipas. Aquele jogo na Dinamarca marcou porque consolidou uma coisa muito importante: os jogadores acreditaram naquilo que lhes tinha sido dito naquelas duas semanas. Foi um jogo muito bem conseguido da seleção portuguesa, que jogou muito, muito bem em todos os aspetos, com a convicção de que queria e podia ganhar. E deu sempre esse sinal até ao último minuto. Acabámos por ser felizes, é sempre uma felicidade quando se ganha no último minuto, mas lutámos para ganhar.

Bancada – A confiança fez a diferença naquela altura em que Portugal ganhava sempre por um?

Fernando Santos – Portugal venceu todos os jogos pela margem mínima, mas tivemos jogos muito bem conseguidos. O jogo aqui com a Sérvia, por exemplo, foi muito bom. Os dois jogos com a Dinamarca… E os jogadores foram começando a acreditar que juntando estas duas valências podiam ganhar a quem quer que fosse. E ao mesmo tempo sabiam que era muito difícil alguém ganhar a Portugal. Eu acredito que neste momento poucas equipas querem defrontar Portugal. Não estão muito interessadas nisso, porque sabem que é muito difícil e que correm riscos. Por isso é que costumo dizer que não temos a pretensão de ser os melhores, mas temos a pretensão, e essa clara, de sermos capazes de jogar contra toda a gente. E esse foi o espírito que se foi enraizando. Na primeira vez que eu disse aos jogadores, e isso foi logo no primeiro estágio, que o objetivo era sermos campeões da Europa, alguns deles terão respondido com um “sim” um bocadinho acanhado. A pensar assim: “tá bem, deixa lá dizer que sim, porque senão ele ainda fica chateado e dizem que ele tem muito mau feitio e ainda nos dá aqui uma bronca”. Quem tem experiência, como eu tenho, percebe quem estava a acreditar e quem estava nesse espírito. Depois, com o tempo, vais percebendo no rosto dos jogadores que eles começam a pensar: “espera lá, que isto afinal é mesmo assim”. Então, deixas de pensar individualmente, para começares a pensar no coletivo.

Bancada – Teve ajudas dentro do balneário nesse processo?

Fernando Santos – Houve jogadores que fizeram uma construção fantástica. Não sei se mudaram os comportamentos, porque a muitos deles ainda não os tinha treinado, mas o que é verdade é que foram grandes surpresas em relação àquilo que eu, estando tantos anos na Grécia, ia ouvindo falar. Desde logo o Cristiano Ronaldo, que tem sido um grande capitão, um capitão na verdadeira aceção da palavra. Mas houve outros jogadores muito importantes num primeiro momento. Foi o caso do Tiago, que depois acabou por não estar no Campeonato da Europa, do próprio Ricardo Carvalho... Eles trouxeram este equilíbrio entre aquilo que era a confiança em alguns momentos exagerada – entre aspas, porque a confiança faz sempre bem – e o pragmatismo de saber ganhar e querer ganhar. E depois isto é uma bola de neve.

Bancada – Nos casamentos fala-se da crise dos sete anos. Com os selecionadores costuma ser mais rápido, a fase de idílio dura uns três anos: uma boa qualificação, a fase final, as coisas não correm bem e já se começa de pé atrás, já há um desgaste natural. Acha que a vitória no Europeu o deixou acima desta questão? Continua a sentir, eu nem diria sequer a mesma, mas mais aceitação por parte do grupo do que sentiu no primeiro dia?

Fernando Santos – É muito difícil sentir mais. Não tenho receio em afirmá-lo: há uma clara simbiose e comunhão de ideias entre mim e o grupo. E quando digo eu falo em toda a equipa técnica, porque nunca trabalhei sozinho. Há uma grande relação, não é só de confiança. É que tu acreditas no que os outros fazem. O João Mário ainda agora dizia isso. Eu acredito muito naquilo que os jogadores fazem, acredito muito na qualidade deles e eles sabem isso. Mas também sei que eles acreditam muito no trabalho que é feito por nós aqui na Federação. E a todos os níveis. Por isso, se num primeiro momento até podia haver alguma preocupação nos jogadores, porque há sempre preocupação quando eles chegam dos clubes, porque têm jogos importantes a seguir, neste momento essa é uma questão que não existe. Eles sabem que vão estar bem aqui e que vão estar bem nos clubes quando regressarem. E isso é muito importante. Essa confiança que eles têm no trabalho que se realiza e também naquilo que é o plano estratégico que é definido pela equipa técnica para cada jogo, no qual todos se sentem importantes. Isso é trabalho da equipa técnica. E acho que isso conseguimos. Todos os jogadores que têm vindo à seleção sentem-se verdadeiramente importantes, independentemente de jogarem mais ou menos tempo, de serem titulares ou não. Ainda agora se viu. Em dois jogos decisivos, houve jogadores que jogaram um, outros que jogaram outro, mas a alegria, o prazer, o estarem todos ali para ganhar sente-se muito nesta equipa.

Bancada – Sentiu-se muito na fase final do Europeu. Em Portugal havia muito ódio. Ódio ao Renato, ódio ao William, ódio ao Moutinho, ódio ao André Gomes… E no entanto quem estava lá via os jogadores unidos. Víamos, por exemplo, o Adrien e o Renato muito próximos um do outro nos treinos, nos aquecimentos, quando os adeptos de um e do outro os insultavam a eles e se insultavam uns aos outros. Isso é trabalho? É a tal gestão de egos?

Fernando Santos – Obviamente. Mas eu gosto mais de lhe chamar gestão de pessoas. Acho que isso aqui foi muito imediato. Nesta seleção não entra essa coisa da clubite.

Bancada – Mas preocupa-o que haja tanta clubite hoje no futebol português? Isso pode afetar o seu trabalho enquanto selecionador?

Fernando Santos – Acredito que não vai afetar. Mas podia afetar. Afetaria se afetasse diretamente os jogadores, porque aí iria interferir no meu trabalho e eu teria de agir de outra forma, tomar outras medidas. E isso seria seguramente mau para o trabalho da equipa nacional.

Bancada – Tempos houve em que a clubite andava dentro da seleção. Lembro-me dos problemas de 1984, por exemplo. Isso está erradicado da seleção?

Fernando Santos – Completamente. Existe no país… Em 1984, e não só, lembro-me bem que havia ruído do lado de fora, mas também havia clubite dentro. Não tanta como se dizia, mas existia. Hoje em dia só existe fora. E isso é uma mudança muito importante, porque se a clubite entrasse na seleção estaria dado o primeiro passo para não podermos vencer. Quando os jogadores deixassem de se sentir importantes e passassem a funcionar apenas como extensões dos clubes, da clubite… Porque é que joga aquele, que é do do clube A ou do clube B, e não jogo eu, que sou do clube C? Claro que isso seria sempre notório. No Europeu, a maioria dos jogadores da equipa nacional era do Sporting, mas nos outros clubes também jogavam menos portugueses. E eu tenho é de me gerir pela qualidade. Mas esta geração ultrapassou esse problema.

Bancada – Falou há pouco do papel do Cristiano, que é aqui muito mais jogador de equipa do que, por exemplo, no Real Madrid. Mas nem por isso deixou de contribuir com golos e com brilho individual. Há alguma questão a justificar que o rendimento dele na seleção tenha subido? O facto de Portugal ter rompido com uma tradição de 4x3x3 e ter passado a jogar em 4x4x2 ajudou?

Fernando Santos – Quando o tive comigo no Sporting [ndr: em 2003], algumas vezes falei com ele sobre a possibilidade de ele vir a ser mais ponta-de-lança do que extremo. Não um ponta-de-lança fixo, mas mais um avançado móvel. O Sporting também passou nessa altura a jogar em 4x4x2, em losango, com o João Pinto atrás dos avançados. E antes de ele sair para o Manchester United, sempre achei que essa seria a posição dele. O Cristiano não foi nunca um verdadeiro extremo, nem será um ponta-de-lança do tipo do Jardel ou do Rui Águas, porque é um jogador que, precisando de espaço para jogar e para tirar proveito de todas as suas capacidades, também deve estar perto da zona de golo. Não quer dizer que não saia de lá. Mas é um jogador móvel. Depois há a evolução natural do jogador. Não quer dizer que ele tenha agora menos qualidade física do que no passado, até porque é um jogador que se cuida muito, mas nesta fase da carreira ele já não é um jogador de 60 ou de 80 metros. Ora se a sua principal qualidade é a capacidade que tem para fazer golos, quanto mais perto ele estiver da baliza, mais próximo está de poder fazê-los. Nesta fase da carreira dele, pareceu-me claro que jogar com ele na esquerda não nos trazia o mesmo valor acrescentado que na posição em que começamos a utilizá-lo…

Bancada – Além de que trazia também problemas defensivos…

Fernando Santos – Certo. Em transição defensiva e na própria organização defensiva, porque obrigava a deslocar alguém para ali.

Bancada – E falou com ele sobre isso?

Fernando Santos – Eu falo sempre com os meus jogadores. E falo com todos.

Bancada – E quando chegou à seleção já vinha com essa ideia?

Fernando Santos – Já. Sempre pensei que se um dia voltasse a ser treinador dele esse seria o lugar a que acho que ele estaria cada vez mais apontado.

Bancada – Ainda assim é diferente colocá-lo ali com o Nani, como fez no Europeu, ou a fazer dupla com o André Silva, como está a fazer agora…

Fernando Santos – Sim. É muito diferente. Claramente. Há muita gente que talvez não valorize isso, mas o Nani é um jogador taticamente muito importante no fecho do meio-campo, sobretudo no corredor central. Permite-nos nunca perder a superioridade em termos de meio-campo, principalmente nos jogos em que os adversários jogam com três ao meio, o que é sempre mais difícil para uma equipa que joga em 4x4x2. Para anular aquele jogador-extra é sempre preciso que um dos avançados saiba fazer aquele fecho ao meio, para que a equipa fique bem a defender e depois possa atacar bem. O Nani e o André Silva não são a mesma coisa, apesar de o André ser um jogador de muito trabalho. Mas é mais jovem, não tem ainda bem a noção. Corre muito mas nem sempre corre bem em termos do fecho da equipa. O Nani é mais experiente. Por outro lado, sendo um jogador mais avançado, mais de área, também liberta mais o Cristiano Ronaldo. A fixação anterior era sempre mais feita pelo Cristiano e agora, tendo um jogador de área, a fixação deixa de ser só o Cristiano a fazê-la. O adversário tem de ter atenção também ao André. E isso ficou desde logo marcado porque o André fez golos, quer aqui com Andorra, mas principalmente depois nas Ilhas Faroé. E isso marca muito. Os adversários começam logo a pensar de uma forma diferente. Agora, isso também me levou a pensar em termos de organização de meio-campo, a procurar um meio-campo que seja verdadeiramente um meio-campo. Uma das poucas experiências que fiz e que não resultaram tão bem quanto eu esperava foi usar mais extremos do que médios no quarteto de meio-campo. E isso levou a que a equipa jogasse em 4x2x4, que é uma coisa que não existe no futebol de hoje. É impossível ganhar em 4x2x4. Podes ganhar contra meia-dúzia de equipas, mas de resto quase de certeza que vais perder, porque nunca vais impor-te na batalha que é mais importante.

Bancada – Daí a chegada ao equilíbrio atual, com um extremo à direita e um médio que fecha mais por dentro e abre mais caminho ao lateral na esquerda?

Fernando Santos – Sim. Isso leva a que possamos ter a equipa sempre bem compacta. Para se atacar bem, é preciso qualidade, criatividade, dinâmica ofensiva, mas também que a equipa esteja bem posicionada para ganhar a segunda bola, para que possa ter mais bola. Já vi muitas pessoas discutir isto em relação ao FC Barcelona do Guardiola. Sempre achei que a grande arma daquela equipa, além da qualidade técnica dos jogadores, era a capacidade para recuperar a bola. Quando a perdia, era muito forte a recuperá-la e isso é que lhe permitia depois massacrar.

Bancada – Embora esse FC Barcelona fosse asfixiar à frente e a seleção portuguesa baixe para reagrupar.

Fernando Santos – Nós também gostávamos que fosse assim. Mas uma coisa é aquilo de que nós gostamos e outra é aquilo que nós podemos fazer.

Bancada – Chateia-o que o acusem de ser demasiado conservador em termos táticos?

Fernando Santos – Não. Uma equipa que faz 32 golos em 9 jogos… Podemos dividir por 10, que mesmo assim dá 3,2, uma média acima dos três golos por jogo. Mas uma equipa que faz 32 golos em nove jogos tem de ser uma equipa que joga muito bem.

Bancada – E que lhe digam que a sua seleção tem muita gente atrás?

Fernando Santos – Mas eu acho que não tenhamos muita gente atrás. Ainda agora… Uma equipa que joga com dois laterais que são praticamente mais avançados do que laterais – e isso nota-se mais quando jogamos com o Raphaël Guerreiro... Não me chateia porque na minha perspetiva isso não corresponde à verdade. Porque quando se analisa uma equipa, deve-se olhar para as caraterísticas dos jogadores que a compõem. Portugal tem uma linha defensiva que neste apuramento foi fantástica, que não sofreu sequer meio golo por jogo, que foi a terceira ou quarta equipa com menos golos sofridos. Fez-se ali um trabalho fantástico, quando sabes que naquela linha, tirando o Pepe, não tens jogadores de grande velocidade. E quando não tens jogadores de grande velocidade, naturalmente a equipa acaba por recolher um pouco mais. É perfeitamente normal, ficas com menos exposição atrás das costas. Só com treino é que se consolidam essas coisas. E nós não temos treino. Em alguns momentos do jogo, e não é porque eu quero ou porque os jogadores querem, acabamos por baixar no campo. Há uma história que se passou comigo e que, a este propósito, é muito interessante. Ainda eu era treinador do FC Porto e tivemos uma final da Taça de Portugal com o Sporting. E atenção que não quero aqui pôr em causa o Hilário, que é um rapaz de quem eu gosto muito, mas que era completamente distinto do Vítor Baía. Um jogava mais na baliza, outro mais longe dos postes. E eu lembro-me que essa final, no Estádio Nacional, foi muito difícil para nós. Estivemos sempre muito atrasados no campo, com mais dificuldade. Empatámos, houve finalíssima, e no segundo jogo já tive o Vítor. Nessa altura, parece que houve uma luz que apareceu e a minha equipa jogou 30 metros mais à frente. Mas a estratégia que montei para o primeiro jogo foi exatamente a mesma que montei para o segundo. Passámos foi a ter um jogador atrás que jogava no limite da área, que cobria 20 ou 30 metros mais à frente. E isto muitas vezes é o suficiente para mudar uma equipa.

Bancada – Elogiou o comportamento da linha defensiva, mas a falta de renovação ali é ou não a sua maior preocupação neste momento?

Fernando Santos – É. Temos essa noção. Por isso é que disse muito aos jogadores que era tão importante sermos primeiros do grupo, para não termos de jogar play-off e termos estas datas que aí vêm para observar novos jogadores, como fizemos antes do Europeu, nos particulares que fomos fazer à Rússia e ao Luxemburgo. Eles não são eternos. Eu sabia que depois do Europeu o Ricardo Carvalho dificilmente poderia continuar. E também sei que depois do Mundial alguns dos que cá estão agora dificilmente poderão continuar. E veremos mesmo se podem chegar à Rússia… Acho que a renovação tem sido praticamente total. Se olharmos para a equipa de hoje e para a de há três anos – e não é um passado assim tão distante – vemos que as coisas estão cada vez mais diferentes. Mas esse é um plano em que temos cada vez mais dificuldades. Apesar das muitas observações que fazemos, não conseguimos encontrar soluções. Todas as semanas a minha equipa técnica vê seis ou sete jogos ao vivo.

Bancada – E não há muitos centrais portugueses a jogar…

Fernando Santos – Pois não. Há vários jogadores que aparecem, mas que estão num plano muito intermitente. Temos agora o Edgar Ié, que está a jogar com mais alguma regularidade. O Pedro Mendes também está a aparecer mais. O Ruben Semedo começou a jogar e agora não joga, o Carriço jogou e lesionou-se. Infelizmente até nos aconteceu chegarmos muitas vezes para fazer observações e batermos na trave: chegámos e os jogadores nem jogaram. E isso condiciona-nos muito. Eu alicerço as minhas decisões em relação aos mais jovens naquilo que é a minha relação com o Rui Jorge [ndr: selecionador nacional de sub21], de quem trago muita informação. O Ilídio Vale [ndr: adjunto de Fernando Santos] também esteve muitos anos nesta casa e conhece muitos desses jogadores, muitos deles passaram já pelas mãos dele. E depois há a nossa observação direta.

Bancada – Acha que o seu papel enquanto selecionador nacional pode ser o de ser um pouco um gestor de carreira desses miúdos, de fazer alguma coisa para os levar a boas escolhas, a jogar?

Fernando Santos – É isso que procuramos fazer. Ainda agora o fizemos, no caso do Renato Sanches. Antes de ir para a Taça das Confederações e até no primeiro jogo aqui, tive uma conversa com ele, no estágio da seleção de sub21, em que lhe disse: “Tens de jogar. Estás em idade de jogar. Isso é muito importante para poderes fazer carreira”. O nosso papel é esse mesmo. Por isso é que quando vamos a essas observações também procuramos falar com os jogadores, saber como as coisas estão… Saber até como é que eles jogam nos clubes. Porque esse é outro risco que corremos: vamos observar um jogador, pensamos que possa ser um lateral com capacidade ofensiva, mas chegamos lá e ele só defende, porque são essas as instruções que tem do treinador no clube. Ou pode acontecer o contrário: queremos um defesa e ele só ataca. E então procuramos saber o que as equipas fazem, o que é que o treinador pretende. Nos clubes portugueses tenho a facilidade de falar com os treinadores. Nos outros, não tenho, mas tento saber. E é importante para nós, porque há dois ou três lugares em que precisamos de preparar o futuro o mais rapidamente possível.

Bancada – Defesas centrais e…?

Fernando Santos – E defesas-esquerdos. Temos o Raphaël Guerreiro, que ainda tem idade para durar muitos anos e que se não tiver lesões será com certeza um dos pilares fundamentais da seleção portuguesa – o que não quer dizer que tenha de ser sempre titular – mas depois temos uns miúdos a aparecer. Há o Mário Rui, que não está a jogar com a regularidade desejável, apesar de andar sempre em grandes equipas, primeiro a AS Roma e agora o SSC Nápoles. Temos o Rodrigues, da Real Sociedad, que tem feito um percurso interessante na fase inicial da época, mesmo alternando num jogo ou noutro. Depois temos o Eliseu, que é uma peça que me dá sempre garantias. É como um Rolex, ou um Timex. É sempre certinho e isso para mim é muito importante.

Bancada – E é outro dos patinhos feios para alguns adeptos…

Fernando Santos – Verdade. Mas isso a mim faz-me pouca diferença. Temos o Fábio Coentrão, que é um jogador muito intermitente, que neste momento não sabemos se pode lá chegar ou não. Nem a própria equipa dele saberá. Claro que se tivéssemos um Fábio de há quatro ou cinco anos seria um pouco diferente. É um jogador que já vai fazer 30 anos, mas que ainda assim nos daria alguma margem de manobra. E temos o Antunes, que na minha opinião está agora melhor em Espanha do que estava na Ucrânia. Tem estado muito bem nesta Liga espanhola. Mas já estamos com jogadores na faixa dos 30 anos para cima. E isso tem-nos motivado a procurar. E depois vamos ter sempre a eterna questão dos avançados, pelo menos enquanto mantivermos este sistema. Mas isso depois se verá.

Bancada – Sem Ronaldo poderá ser diferente…

Fernando Santos – Pois, não se sabe. Mas o Ronaldo ainda vai durar uns anos.

Bancada – Acha que com a profundidade do grupo tem neste momento a terceira melhor equipa do Mundo, como diz o ranking da FIFA?

Fernando Santos – Não sei. Sei que temos um leque de opções muito forte em algumas posições. Se tivéssemos em todas as posições esse mesmo leque de opções… A nível de plantel acho que Portugal se bate com qualquer adversário. Agora, o campo de recrutamento não é o mesmo. Não é o mesmo de uma Argentina, de um Brasil, de uma Alemanha, da própria Espanha, da França... Essas são equipas com um campo de recrutamento muito grande e que podem sobreviver com muita naturalidade à perda de vários jogadores. Em Portugal não é bem assim. Mas globalmente, se não tivermos grande problemas físicos nos jogadores, podemos bater-nos com qualquer equipa.

Bancada – Então à partida para o Mundial vai dizer aos jogadores o mesmo que lhes disse antes do Europeu? Que é para ganhar?

Fernando Santos – Vou dizer o que sempre lhes disse. Que a minha confiança neles é sempre ilimitada. Dificilmente alguém ganha a Portugal. E se isso acontece, a nossa probabilidade de ganhar os campeonatos é grande. Vamos lá com o mesmo espírito do Europeu. E não é o espírito de ir lá a dizer: vamos passar a primeira fase e depois logo se vê o que acontece. Não! O nosso espírito é ir lá e procurar vencer, vencer, vencer. Procurar ganhar os jogos e seguir sempre em frente. Foi o que fizemos em França e vamos voltar a fazer no Mundial. Vamos lá com esta convicção: não somos os favoritos, mas somos candidatos. Temos claramente esse direito, o direito de lá ir com esse foco.