Grande Futebol
Escócia: revolução à vista para combater a tirania do insucesso constante
2017-10-13 09:30:00
Demissão de Gordon Strachan fechou um ciclo no futebol escocês que se encontra em pleno período de revolução.

Com o final da fase de qualificação europeia rumo ao campeonato do Mundo Rússia 2018, chegou também o fim de mais uma Era no futebol escocês. Invariavelmente, como vem sendo hábito nos últimos anos (e mesmo décadas), uma fase de qualificação para um grande torneio de seleções terminou em agonia para a seleção da Escócia. A precisar de uma vitória na Eslovénia de forma a alcançar o segundo lugar no Grupo F e consequente presença no play-off, a Escócia não foi além de um empate a dois golos depois de ter estado a vencer por 1-0, ter permitido a reviravolta e só aos 88 minutos, através de Robert Snodgrass, ter reentrado no marcador e voltado a sonhar com a presença no play-off de apuramento para o Rússia 2018. O resultado final inviabilizou-o e a Escócia acabou por terminar o Grupo F na terceira posição. Curiosamente, a Eslováquia, apesar do segundo lugar alcançado - em igualdade pontual com a Escócia -, terminou a fase de qualificação como o pior dos segundos classificados e, por isso, fora das contas do play-off. Para a Escócia foi o final de mais uma qualificação inglória, mas, mais do que isso, encerrou mais um capítulo da sua história: o falhanço na qualificação para o Rússia 2018 foi o ponto final na ligação do selecionador Gordon Strachan à federação escocesa.  

O campeonato do Mundo do próximo ano a ser disputado na Rússia coincidirá com o vigésimo aniversário da última presença escocesa em grandes competições de seleções. Foi precisamente num campeonato do Mundo que a Escócia fez a sua última aparição junto das melhores seleções mundiais, quando a federação escocesa se estabeleceu como uma das participantes do França 1998. Em França, tal como em edições anteriores, os resultados escoceses dececionaram com a Escócia a sair de cena sem qualquer vitória alcançada e apenas um empate nos três jogos disputados. Escócia, essa, que nunca venceu mais do que um jogo em cada uma das grandes provas de seleções que já disputou. A razão? Uns diriam que está relacionado com a falta de talento dos futebolistas do país, outros dirão que os treinadores recentes da seleção nunca souberam exponenciá-lo. Strachan, porém, tem outras ideias. Minutos após o empate na Eslovénia que ditou a eliminação escocesa, Strachan justificou os recentes falhanços da federação com questões... genéticas. 

O próximo treinador escocês (as casas de apostas colocam David Moyes e Paul Lambert como os principais candidatos ao lugar) irá, assim, segundo Gordon Strachan, não só enfrentar a pressão dos resultados recentes da seleção escocesa, como a inevitável morfologia e genética do país que para o selecionador demissionário, é uma âncora ao sucesso desportivo da Escócia. "A Escócia tem um problema. Geneticamente, estamos muito atrasados", resumiu Strachan após o empate em Ljubliana. "Na qualificação passada só a Espanha tinha jogadores mais baixos que nós", referiu ainda. A solução? Simples. "Talvez devêssemos juntar mulheres e homens altos e ver o que sai dali", afirmou Strachan.  

Ao seu bom velho estilo, quase metafórico, Strachan tentou encontrar respostas para um vício futebolístico que a Escócia não parece conseguir abandonar: o do falhanço consecutivo. Mais uma vez, a Escócia está fora de uma grande competição de seleções e a verdade é que observando a média de alturas da seleção eslovaca face aos escoceses se encontra uma superioridade média de 3cm na equipa eslovena que enfrentou a Escócia em Ljubliana. Para Strachan, esse fator foi determinante. "Ninguém pode dizer que tecnicamente os nossos jogadores são menos evoluídos que os eslovenos. Mas fisicamente, é toda uma outra história" algo que para o antigo selecionador escocês dificultou a vida à Escócia durante lances de bola parada. A verdade, é que foi através de um livre direto cruzado para a área, bem como no seguimento de um pontapé de canto que a Eslovénia chegou aos golos frente à Escócia. Eslovénia essa que, segundo dados recentes e publicados, por exemplo, no Telegraph, é uma das dez nações com maior média de altura entre os seus habitantes. 

Se a altura até pode explicar o empate escocês na Eslovénia, torna-se mais difícil justificar décadas de insucesso com questões genéticas e morfológicas. Talvez por isso a federação escocesa não tenha ficado convencida com as justificações de Strachan e já ontem acabou por ser anunciada a demissão do antigo médio internacional pelo país. Afinal, segundo palavras do técnico do Hearts, Craig Levein, "o futuro do futebol escocês é brilhante". O técnico que sucedeu a Ian Cathro no comando técnico da equipa de Edimburgo defendeu mesmo que Escócia apenas precisa de "paciência e de acreditar em si mesma" para conseguir inverter a tendência recente. "Tem existido uma grande mudança de mentalidades nos últimos quatro ou cinco anos por parte de todos os clubes com o objetivo de melhorar a forma de trabalhar as camadas jovens. O "Project Brave” ajudará, mas estas coisas não acontecem de um dia para o outro. Tenho passado imenso tempo a observar o futebol jovem, os jogadores estão cada vez melhores", referiu à BBC o técnico britânico.  

“Project Brave”, o “Plano Marshall” do futebol escocês

Apontado em dezembro de 2016 como o novo diretor técnico da federação escocesa de futebol, a Maky Mackay, cabe a responsabilidade de reestruturar todo o futebol escocês com especial incidência no desenvolvimento da qualidade da formação dos clubes escoceses. Mackay é uma figura controversa. Depois de liderar o Cardiff City à Premier League e a uma final da Taça da Liga Inglesa, desentendimentos com a direção do clube galês condicionariam para sempre o futuro de Mackay por Inglaterra. Mackay desentendeu-se com Vincent Tan, dono do Cardiff City de forma bastante pública em dezembro de 2013, altura que acabou despedido do clube galês, e desde então a situação apenas piorou. Em agosto de 2014, quando se preparava para tomar conta do Crystal Palace, um dossier entregue pela direção do Cardiff City à federação inglesa, referente à conduta do antigo treinador, abriu a Caixa de Pandora e praticamente destruiu a carreira de Malky Mackay por Inglaterra. Tudo devido a trocas de sms entre Mackay e o antigo diretor desportivo do Cardiff City, Iain Moody, mensagens essas de teor racista, homofóbico e sexista. Mackay admitiu o conteúdo racista das mesmas ainda que tenha negado qualquer troca de correspondência de teor homofóbico ou sexista. Mackay e Moody não chegaram a ser suspensos pelas referidas mensagens mas as reputações de ambos ficaram bastante abaladas em Inglaterra.

Mackay ainda chegou a ser contratado pelo Wigan, do Championship, meses mais tarde mas a pressão sob a qual sempre esteve sujeito – por parte de adeptos do clube e entidades anti racismo inglesas - ditou que a sua estadia pelo clube durasse apenas cinco meses. Se a reputação de Mackay estava abalada por Inglaterra, o falhanço em Wigan e a repercussão que teve a sua contratação por parte do clube praticamente impossibilitou que Mackay consiga algum dia voltar a trabalhar num clube inglês. Porém, depois de quase ano e meio de fora do futebol, Mackay foi contratado pela federação escocesa como o homem forte para revitalizar o futebol do país.

Perante os constantes maus resultados das seleções escocesas, a Escócia precisava de uma revolução futebolística urgente e Malky Mackay apresentou então o seu “Project Brave”. Um projecto que, define, está mais relacionado com os técnicos que com qualquer outro pormenor. Melhorar a qualidade dos treinadores escoceses, desde as camadas jovens, é assim o grande objetivo de Malky Mackay que contou ainda com a aprovação quase unânime dos clubes escoceses no que às ideias de implementar uma liga de reservas, bem como uma competição sub-18, dizem respeito. Tudo com o objetivo de conceder mais minutos de jogo aos jovens saídos da formação dos clubes, preparando-os de forma mais gradual para o futebol sénior. Mackay quer ainda sensibilizar os clubes escoceses a rodar mais jogadores com poucos minutos entre si, bem como recalendarizar o futebol de formação para o período de verão, desenvolvendo competições indoor durante o Inverno. Nada disto, porém, é mais importante para Malky Mackay que o desenvolvimento técnico dos treinadores do país, dotando-os de um melhor programa de ensino. Para Malky Mackay, treinadores mais competentes irão ajudar mais ao desenvolvimento do futebol escocês que qualquer outra medida que possa ser implementada. “Irei pedir aos clubes que me forneçam os seus melhores treinadores jovens e irei submetê-los a programas de ensino da federação. Iremos atribuir-lhes determinadas tarefas, fazê-los debater determinadas problemáticas durante um ano, tornando os nossos bons treinadores jovens em muito bons treinadores jovens”, assumiu Mackay à BBC em janeiro. “Os clubes querem que isso aconteça. Precisamos tornar os nossos treinadores melhores para conseguirmos formar jogadores cada vez melhores”, acrescentou.

Os planos de Malky Mackay, como se vê, não se ficam pelo desenvolvimento técnico ainda que esse, nas palavras do próprio, seja um elemento fulcral. Mackay quer centrar-se na especialização, mesmo que isso signifique um menor socialismo futebolístico. Se até agora a federação escocesa financiava 29 academias de futebol no país, Mackay quer limitar esse financiamento a apenas 16. Obrigando, assim, os clubes a ser mais rigorosos no seu trabalho de formação de forma a garantirem o tal financiamento da federação. O desenvolvimento das academias, porém, terá de ser sustentado com a federação escocesa a exigir um plano financeiro a três anos, com os clubes a justificar a viabilidade financeira das suas academias. Assim, os clubes que garantirem o estatuto de “academias de elite” irão integrar uma competição onde enfrentarão as restantes academias do país.

“Precisamos formar melhores atletas. Desenvolver a ciência desportiva, ter aconselhamento nutricional, obrigar o jovens a ter um nível de massa gorda inferior a 10% e precisamos desenvolver a psicologia desportiva para tornar os nossos atletas física e mentalmente mais fortes. Precisamos construir melhores futebolistas”, concluiu Malky Mackay que pede ainda maior rigor aos clubes na identificação de talentos. Também nesse aspeto Mackay assegurou que a federação escocesa irá desenvolver um manual de identificação de talento para entregar aos clubes de forma a que os mesmos identifiquem de forma mais concreta quais os jogadores que terão verdadeiramente capacidade para ser atletas de elite.

Uma demissão recebida com pouca ou nenhuma oposição

No comando técnico da seleção da Escócia desde 2013, Gordon Strachan saiu de cena sem cumprir os objetivos a que se propôs: retornar a seleção escocesa a uma grande competição de seleções. Para muitos, o afastamento de Strachan foi até tardio depois do antigo médio não ter sido capaz de liderar a seleção da Escócia ao Europeu 2016, competição cuja fase de qualificação foi considerada a mais acessível da história da competição devido ao seu alargamento a 24 equipas.

A demissão de Strachan chegou, porém, num timing curioso, depois do antigo treinador de clubes como o Celtic, o Southampton ou Middlesbrough ter liderado a Escócia a uma luta até ao último segundo pela chegada ao play-off de qualificação para o Mundial 2018 num grupo bastante competitivo que englobou seleções como Inglaterra, Eslováquia e Eslovénia. Os media escoceses, porém, não perdoam a teimosia de Strachan que terá demorado a integrar, por exemplo, Leigh Griffths no onze tipo da seleção, um jogador que a imprensa escocesa entendeu ter sido chave na revitalização recente do futebol escocês, bem como nomes como Stuart Armstrong, Callum McGregor ou John McGinn, jogadores considerados em grande forma no campeonato escocês, em detrimento de jogadores pouco utilizados ou fora do seu melhor momento desportivo. Jogadores que imprensa e adeptos escoceses entendem apenas serem opção para Gordon Strachan devido ao facto de jogarem em Inglaterra. Ao longo da sua estadia pelo comando técnico da Escócia, as acusações de adeptos e media de que Strachan negligenciava o futebol local foram constantes.

A Escócia vive assim um momento que poderá mudar o futuro do futebol no país para sempre. Caso, claro está, os planos de Malky Mackay dêem certo e caso a Federação escocesa encontre o sucessor certo para Gordon Strachan: um treinador vanguardista que, ao contrário de Strachan, saiba incorporar os jogadores em melhor forma no país com a sempre necessária base de atletas da confiança do treinador. Só assim adeptos e imprensa escocesa entendem ser possível retornar a seleção da Escócia às grandes competições internacionais. Só assim, entendem adeptos e imprensa, a Escócia conseguirá honrar a fama e legado dos seus antigos atletas e técnicos que tanto deram à história do jogo e que definiram a forma como o futebol é hoje jogado.