Grande Futebol
De zero a herói: Como Southgate mudou a face da seleção inglesa
2018-07-13 17:50:00
Inglaterra voltou a não vencer uma grande competição, mas desta vez foi diferente. Culpa de Gareth Southgate.

Inglaterra caiu, mas não como habitualmente. Em 2018 foi diferente. Não só porque a equipa dos Três Leões chegou a uma meia final de um Campeonato do Mundo 28 anos depois, mas por tê-lo feito quando nada o fazia prever. Muitos afirmam que tal só foi possível porque tiveram sorte com o sorteio e emparelhamento, porém, nada apaga o resultado final: há quase trinta anos que a seleção inglesa não regressava a casa debaixo de euforia e esperança. Não foi com taça, mas o futebol regressou realmente a casa e sobre Gareth Southgate caem todas as responsabilidades. Ao contrário de 1996, desta vez, no bom sentido.

Wembley, 1996. Shearer, Platt, Pearce, Gascoigne, Sheringham. Stuart Pierce, até, imaginem. O mesmo que seis anos antes tinha permitido a defesa a Ilgner. Todos eles assumiram a marcação de uma grande penalidade durante a meia final do Euro 1996. Seguiu-se Southgate. Bola para o seu lado esquerdo e, a papel químico do que havia acontecido seis anos antes, Kopke atirou-se e defendeu a grande penalidade do defesa central inglês. Seguiu-se Möller e... fim do sonho. Möller terminou o que Kopke iniciou segundos antes. Inglaterra estava fora do Euro 96, jogado em casa, e durante 22 anos nunca mais a seleção dos Três Leões ficou perto de voltar a vencer uma grande competição de seleções. Nunca mais, até este ano.

A justiça divina futebolística, porém, concedeu a Gareth Southgate uma segunda oportunidade. Ele que até nem era suposto estar ali, liderou Inglaterra à melhor prestação num campeonato do Mundo em 28 anos e mais do que aquilo que conseguiu transportar para dentro de campo, os grandes feitos de Southgate à frente da seleção inglesa parecem ter sido alcançados fora dele. De zero a herói, Gareth Southgate mudou por completo a imagem interna e externa da seleção inglesa. Os bons tipos nunca vencem? Aí está Gareth Southgate para o desmentir. Porque, como disse Roy Keane em tempos, ninguém sobrevive 20 anos na elite do futebol inglês e chega a este patamar se não tiver uma certa badassness em si.

Inglaterra caiu, como quase sempre, mas nunca debaixo de tamanho positivismo e, isso, é mérito de Gareth Southgate. Eles próprios o admitem. Pela primeira vez em décadas, porventura pela primeira vez desde sempre, Inglaterra, adeptos, equipa e, acima de tudo, comunicação social foram um só. Southgate, como nenhum outro, teve a imprensa do seu lado e com isso retirou pressão de cima dos seus jogadores. Raheem Sterling, por exemplo, não raras vezes admitiu sentir uma pressão monumental a jogar pela seleção inglesa devido ao medo que sentia perante a possibilidade de acabar enxovalhado pela imprensa na manhã seguinte. Carrick, Dyer... É só escolher. Todos sempre culparam a impiedosa imprensa inglesa pela pressão que a equipa sentia e pela incapacidade dos jogadores conseguirem transportar para o futebol internacional a boa forma a nível nacional. Capello, por exemplo, no documentário “Managing England: The Impossible Job” emitido pela BBC admitiu que a pressão colocada pela imprensa, sempre sob o fantasma “1966”, impossibilitava que os jogadores pudessem jogar livre de amarras sempre que vestiam a camisola inglesa.

Durante anos a imprensa inglesa arrasou as prestações da seleção dos Três Leões. Não este ano. Southgate, também ele vítima em tempos, percebeu-o e chamou a comunicação social para seu lado. Não quis vingança. Quis, sim, mostrar o outro lado. Ainda antes do Campeonato do Mundo disputado na Rússia começar, Southgate fez questão de abrir o estágio da seleção inglesa à imprensa. Aproximou jornalistas dos atletas, libertou amarras, deu a conhecer a equipa e, com isso, aproximou-a dos adeptos. Os jogadores puderam dar-se a conhecer, mostrar quem são, sem barreiras, contaram a sua história e todos nelas se reviram. Afinal, não estavam ali tipos inalcançáveis, sobrevalorizados, pagos demasiado bem para se importarem com o país. Não. Ali, estavam homens como qualquer outro. Finalmente os ingleses puderam rever-se numa seleção nacional e é por isso que, apesar do falhanço, irão regressar a casa como heróis nacionais.

Southgate percebeu a importância da comunicação e o que ter a imprensa do seu lado possibilita. Aliviou a tensão, retirou pressão, usou o patriotismo inglês a seu favor. Durante as conferências de imprensa, por exemplo, permitiu que um jornalista e um jogador disputassem competições de dardos. O mesmo Southgate que sempre se pautou por um discurso equilibrado, elegante e até divertido. Southgate fez-se amigável e só teve a ganhar com isso.

Por Inglaterra não faltam exemplos e razões que justifiquem a premissa de que Southgate revolucionou por completo a imagem da seleção inglesa. Se em tempos Rio Ferdinand, Lampard ou Gerrard admitiram que nunca conseguiram esquecer o ambiente de rivalidade na seleção, Southgate trabalhou a união de grupo como nenhum outro selecionador até aqui. Já na Rússia, não faltaram relatos de corridas de insufláveis na piscina do centro de estágio, sessões de videojogos, competições de ciclismo e dardos entre os jogadores. Southgate tornou o ambiente da seleção informal e divertido e, como o próprio Quique Setién também já explicou em tempos, um jogador joga e sente-se melhor quando está feliz.

Southgate libertou os seus jogadores das amarras e a resposta surgiu dentro de campo. Há poucos dias, Rio Ferdinand afirmou que sob o comando de Sven Goran Eriksson os jogadores eram desencorajados a jogar a partir da defesa e o setor defensivo deveria libertar-se o mais rapidamente possível da bola. Afirmou que, sob o comando técnico de Capello, a expressão individual era praticamente proibida. Southgate não podia ter ideia mais distante. Inglaterra construiu jogo a partir da defesa e com isso provocou desequilíbrios. Como John Stones afirmou, Southgate permitiu que os jogadores se expressassem individualmente e para um jogador não há algo melhor do que isso.

Pela primeira vez em décadas, Inglaterra teve um plano. Southgate e, claro, toda a equipa técnica identificaram um sistema que se adequava aquilo que tinha à sua disposição e não tentou adaptar o que tinha à disposição a um sistema inflexível como dantes. Como em 2004, por exemplo, quando Eriksson para conseguir encaixar Beckham, Lampard, Gerrard e Scholes no mesmo onze acabou por não conseguir colocar qualquer um deles nas posições em que mais rendiam. Scholes, em particular, acabou encostado à ala esquerda, por exemplo. Southgate, dizem os ingleses, bebeu as melhores influências do país (Conte, Pochettino, Guardiola e até Klopp ou Mourinho) e não tentou ser mais esperto do que eles. Mesmo que para isso, a certa altura, tenha de ter descartado Smalling por não se adaptar à sua ideia e modelo jogo apesar do central inglês até ter sido, até há bem pouco tempo, o central inglês em melhor forma no país.

Southgate pode ser amável, mas não teve medo de tomar decisões importantes. Deixou cair Wayne Rooney apesar do histórico do avançado com a seleção inglesa, deixou cair Joe Hart e Wilshere e esqueceu a ideia experiência. Qualidade acima de experiência. Qualidade acima da idade. Southgate levou à Russia o elenco mais jovem e mais inexperiente de sempre da seleção inglesa em grandes competições e nunca Inglaterra se mostrou tão dinâmica, enérgica, saudável e esfomeada futebolisticamente como este ano. Pickford, Maguire e Trippier não tinham experiência internacional? Poucos o diriam. Southgate confiou na juventude e deu-se bem.

Com tudo isto, e ainda mais, Southgate ganhou o grupo e conseguiu ter os jogadores a dar tudo por si. Nem perante a perspetiva do nascimento da filha de Fabian Delph, Southgate fechou a porta ao médio do Manchester City. Assim que nascesse, podia regressar a Inglaterra para a ver. Tal qual aconteceu. Danny Rose, por exemplo, explicou o quão importante foi Southgate durante o período em que batalhou uma depressão. “É um dos homens mais amáveis do futebol”, disse o lateral inglês do Tottenham.

Na Rússia, Southgate mostrou-se um homem consciente da posição e torneio que ia disputar. Definiu o sistema e o modelo que melhor se adaptava aos seus jogadores, mas percebeu que numa competição tão curta dificilmente teria tempo para preparar dinâmicas táticas especiais. Apostou no fortalecimento mental dos jogadores, uniu o grupo, trabalhou a capacidade psicológica dos mesmos e não tratou as grandes penalidades, por exemplo, como uma lotaria como tantos a definem. Não é maldição. É falta de preparação. As grandes penalidades e restantes situações de bola parada foram tidas como prioridade - viajou até para os EUA para perceber a possibilidade de transportar ideias de outros desportos para o futebol - e os efeitos estão à vista. Ninguém marcou mais golos de grande penalidade no Campeonato do Mundo quanto os ingleses e pela primeira vez num Campeonato do Mundo venceram um desempate por grandes penalidades. O primeiro, também, desde 1996.

“Temos tentado colocar sorrisos na cara dos adeptos e eventualmente fazê-los apaixonar-se pela seleção de novo. Anteriormente quando vínhamos jogar por Inglaterra, era só a seleção nacional. Agora parece um clube. Costumávamos treinar e depois sentarmo-nos ali e olhar para as mesas quatro paredes durante horas. Agora estamos sempre no quarto uns dos outros. Isso nunca aconteceria antes e é mérito total do treinador”, admitiu Kyle Walker, também ele, uma aposta corajosa de Southgate ao utilizar o lateral do Manchester City como defesa central num esquema de três defesas.

Muito mais do que um treinador, Southgate revolucionou a seleção inglesa. Diz, a imprensa britânica, que quando chegou em 2016 ao comando técnico da seleção que perguntou a todos os responsáveis de todos os departamentos o que mudavam se o tivessem de começar do início. As respostas que obteve criaram uma união que não era vista desde 1996. Cruyff disse um dia que jogar futebol é bastante simples, mas jogar futebol simples é a grande dificuldade. Southgate conseguiu-o. Descomplicou e mudou a face do futebol inglês. Sem taça, mas o futebol regressou realmente a casa e finalmente Inglaterra tem uma seleção da qual se orgulha.