Grande Futebol
ConIFA: Um Campeonato do Mundo alternativo, o futebol ao serviço da democracia
2018-06-04 13:50:00
Poucas competições de futebol fazem jus ao título de "desporto mais democrático do Mundo" como esta.

Se o futebol é, por muitos, considerado o desporto mais democrático do Mundo, seja pela sua universalidade, seja pela facilidade com que o mesmo pode ser disputado mesmo em situação de parcos recursos, poucas competições explanam tão complexamente tal ideia quando o Campeonato do Mundo da ConIFA. Disputado pela terceira vez este ano, o torneio permite que estados minoritários, que povos sem estado e regiões não afiliadas à FIFA encontrem o seu espaço, o seu momento de afirmação e possam, também eles, sentir o prazer de jogar um torneio internacioal. Esta é a história do Campeonato do Mundo dos renegados.

Londres, 2018. A dias de iniciar o Campeonato do Mundo FIFA, joga-se na capital inglesa, há alguns dias, o Campeonato do Mundo "dos outros". Daqueles que por não estarem afiliados à FIFA nunca nele poderiam participar. É o Campeonato do Mundo dos renegados. Como Barawa, território do sul da Somália a quem foi dada a honra de organizar o terceiro Campeonato do Mundo da Confederação de Futebol de Associações Independentes, organização fundada em 2013 na Suécia e cujo presidente é o norueguês Per-Anders Blind. Composta por equipas que representam nações, dependências, estados não reconhecidos, estados minoritários, povos sem estado, regiões e micronações não filiadas à FIFA, a ConIFA permite que também os renegados do Mundo encontrem forma de jogar futebol internacional.

Depois de ter sido organizada em 2014 em Sápmi, popularmente conhecida como a região da Lapónia, e em 2016 na República da Abecásia, em 2018, a honra coube ao Barawa. Não na Somália, porém, mas em Londres, uma vez que a equipa do território somali é composta por homens da diáspora somali sediados em Londres. Uma competição que permite a representação de 334 milhões de pessoas que, de outra forma, se manteriam renegados ao poder político e sem espaço de afirmação. "Não temos nada contra a FIFA", garante Sascha Düerkop, secretário geral da CONIFA. "Eles são muito bons para que possamos aprender tudo sobre como não fazer as coisas".

Formada em 2013, nunca os organizadores da ConIFA esperaram crescer ao ponto em que hoje se encontram. A organizar o seu terceiro campeonato do Mundo, em 2018, a ConIFA tem a sua grande competição representada por 16 seleções pela primeira vez na história após o alargamento ocorrido este ano de 12, para 16 territórios, após uma edição inaugural que contou com 12 nações convidadas. Em 2018 o torneio está cada vez mais profissional. Já foram realizadas qualificações para o mesmo e ao todo a ConIFA conta já com a representação de 47 estados renegados pela geopolítica mundial. De Donestk ao Curdistão, passando pelo Quebéque ou Zanzibar, não esquecendo os Rohingya ou o Darfur.

Participam, em 2018, no Campeonato do Mundo ConIFA - ou Taça do Mundo, por questões legais -, os territórios/nações de Barawa, Cascádia, Ilha de Man, Tamil Eelam, Transcarpátia, Chipre do Norte, Abecássia, Tibete, Padânia, País Székely, Matebeleland, Tuvalu, Armênia Ocidental, Panjabe, União dos Coreanos do Japão e Cabília. Há jogadores ligados a equipas profissionais e nem representação portuguesa faltou ao longo da história quando, em 2014, Kevin Puyoo, médio do Toreense, alinhou pela equipa do Condado de Nice. Territórios que desafiam a instabilidade política e os constrangimentos financeiros para fazerem aquilo que mais gostam: jogar futebol, enquanto se afirmam politica e socialmente.

Se é certo que já há várias décadas que as nações não afiliadas à FIFA disputam jogos entre si, nunca tal foi feito com tamanha organização e profissionalismo como desde que a ConIFA se ergueu, passando a organizar também uma Taça da Europa, uma Taça do Mundo de futebol feminino e ainda uma Taça do Mundo de futebol de praia. Para que os renegados políticos do Mundo encontrem o seu espaço de afirmação e nem música oficial falta ao principal torneio da ConIFA. E quem pensar que este é um torneio amigável, desengane-se. Não lhe falta paixão e muita luta. Competem em representação das pessoas que o Mundo ignora, afinal.

"A CONIFA é diferente da FIFA, em essência, pois a CONIFA reconhece estados que não são reconhecidos por mais alguém. Este torneio é importante a nível global pois estamos a jogar contra equipas de diferentes backgrounds, mas que têm o mesmo objetivo e valores do que nós", afirmou à CNN, Omar Sufi, capitão da equipa do Barawa. Se para a FIFA uma nação só pode ser sua afiliada caso seja reconhecida pela comunidade internacional como estado, sendo apenas possível existir uma federação de futebol para cada um desses estados, a ConIFA surge como resposta a esses restrangimentos. Formada como organização não lucrativa, a popularidade da ConIFA tem crescido exponencialmente nos últimos cinco anos, representando atualmente 47 territórios renegados pelo Mundo.

Em estreia na prova de 2018 está a equipa do Matabeleland, região oeste do Zimbabué fortemente marcada pelas atrocidades, massacres e genocídio promovidos pelo governo de Robert Mugabe e que conta com uma participação especial no torneio: a do antigo guarda redes do Liverpool FC Bruce Grobelaar que saiu da reforma para jogar pelo povo do Matabeleland - Mark Clattenburg também se envolveu com a causa e foi o árbitro do jogo inaugural do torneio. Membro da CONIFA desde 2016, a Taça do Mundo de 2018 será a primeira vez que o Matabeleland irá jogar intercionalmente, tendo recorrido a campanhas de crowfunding para conseguir viajar do Zimbabué para Londres. Equipa que é orientada por Justin Walley que depois de vários anos ao comando de um clube da primeira divisão da Letónia viajou para África para ajudar ao desenvolvimento do futebol daquela região.

Quando o Campeonato do Mundo Rússia 2018, organizado pela FIFA, tiver dado o seu pontapé de saída, já há alguns dias se saberá o vencedor da competição que lhe surje como alternativa. Um torneio que é uma lição em geopolítica e que permite que estados e populações oprimidas tenham a sua voz através do futebol. Como o Tibete, a quem foi atribuido um wildcard para participar no torneio e cuja presença causou mau estar junto da federação chinesa apesar da bênção dada pelo Dalai Lama à equipa e que obrigou à retirada de vários patrocinadores da competição.

"As empresas têm medo de financiar e patrocinar um evento como este pois têm medo de ofender a China", afirmou Paul Watson ao Independent, garantindo que foram várias as marcas que pediram que o Tibete fosse excluído da competição e cuja participação é, também, um statement da organização que também refere pressões da Federação Cipriota para que a equipa do Norte do Chipre fosse impedida de participar no torneio. "Obviamente recusámos obedecer. Se não tivessemos os nossos princípios, que seria de nós?".