Grande Futebol
Capello, o chato das broncas que, um dia, pensou: “Hummm..."
2018-04-09 20:30:00
Paulo Futre e André Cruz explicaram, ao Bancada, quem é Fabio Capello.

Fabio Capello terminou hoje a sua carreira como treinador de futebol. Aos 71 anos, o lendário técnico italiano vai deixar estas lides e vai ser comentador. Ele que nunca foi despedido, em Itália, que parece ter um dedo para adivinhar e que é um chato. Muito chato. A ler mais à frente.

O Bancada falou com André Cruz, ex-defesa do Sporting, e Paulo Futre, histórico internacional português, que foram treinados por Capello. André Cruz apanhou Capello no AC Milan, em 97/98, e ao Bancada, o definiu Capello como “uma pessoa muito séria e com personalidade muito forte”. Ainda assim, garante que, “fora de campo, ele conversa, troca ideias e brinca”.

Paulo Futre fala de “um homem que olha sempre nos olhos e diz as verdades” e explica: “A mim deu-me muita confiança. Não conheci só o treinador, conheci a pessoa. Ele ajudou-me muito”.

Como treinador, garante ainda André Cruz, Fabio Capello “estava no campo a exigir agressividade em tudo. Gritava sempre. E com todos! Não tinha preferências de jogadores”. Isto dito por André Cruz ganha uma legitimidade ainda maior, se considerarmos que o ex-craque do Sporting foi pouco utilizado por Capello naquele ano, em Milão. Foram apenas onze jogos, atrás da concorrência de Maldini, Costacurta ou Desailly.

Ir, ganhar e sair em grande, deixando saudades

Antes de continuar a conversa com André Cruz e Futre, importa passar, brevemente, pela carreira de Fabio Capello. Este ex-jogador das décadas de 60 e 70 tornou-se um dos melhores treinadores da história, passando, quase diretamente, de experiente médio do AC Milan para treinador da equipa primavera.

Dez anos depois do fim da carreira, lá estava ele: a liderar o AC Milan de Baresi, Ancelotti, Rijkaard, Donadoni, Gullit, Van Basten ou Serena. Isto com a hercúlea missão de comandar o período pós-Sacchi. Em cinco temporadas em Milão, ganhou quatro vezes a Série A e uma Liga dos Campeões e, depois, decidiu ir a Espanha mostrar como se fazia. Foi para o Real Madrid, foi campeão espanhol, passou a “Don Fabio” e voltou para Milão. Afinal, os grandes são assim: vão, ganham e saem como heróis, deixando saudades, antes que as coisas corram mal.

Pedimos a Cruz e Futre que analisassem não o homem, mas o treinador. André Cruz não quis estabelecer um top, dizendo que aprendeu muito com todos os que teve, enquanto Futre é claro: “O Capello é um dos três melhores que tive, para além do Aragonés e do Artur Jorge”.

Apesar de não estabelecer o tal top, André Cruz explica, ao Bancada, que Capello tem algo de Midas. “Ele foi um dos melhores treinadores que tive”, explica, justificando: “A coleção de títulos diz isso”.

E diz mesmo, caro André.

O regresso a Milão não foi fantástico – uma das poucas más temporadas da carreira – e o italiano decidiu-se por um ano sabático, como comentador, antes de ir parar a Roma, pela mão do histórico presidente Sensi. Após uma primeira época assim-assim, recebeu Samuel, Emerson e Batistuta. Já se está mesmo a ver no que deu: título, claro. O terceiro da história da AS Roma. Depois de mais duas temporadas como vice-campeão, naquele que definia como “o clube e a cidades mais difíceis de trabalhar”, e de ter dito “o sonho de qualquer um é treinar a Juventus, mas não é o meu”, Capello foi acusado de traição. Pela segunda vez. Como jogador, já tinha trocado a AS Roma pela Juve. Como treinador, repetiu a gracinha.

Lá foi ele. Duas temporadas, dois títulos. A seguir, quis voltar a ser “Don Fabio” e, no Real Madrid, repetiu a brincadeira: uma temporada, um campeonato. Não há como fugir: o homem transformou tudo em ouro. Onde houve dedo de Capello, houve títulos. Tiremos desta equação o pecurso como selecionador de Inglaterra e Rússia, que não foram por aí além. O homem percebe é de clubes!

Aliás, é também por gostar de trabalhar diariamente nos clubes que, para Futre, Capello é diferente. “A coisa que mais me impressionava era, no dia seguinte a uma vitória, a pressão que ele levava para o treino. As broncas que dava. Nunca ninguém podia estar contente e ir dormir descansado depois do jogo. Ele, em vez de dar o elogio, ia buscar o erro. Levava tudo à perfeição”.

Um dedo que adivinha: “Hummm… esses não vão dar”

Voltamos ao toque de Midas. Capello não tem só um dedo que dá títulos por onde passa, mas um dedo que adivinha. Adivinhou que haveria uns rapazitos que dificilmente dariam jogadores de topo. "Hummm, esses não vão dar", pensou Capello, que não teve problemas em dizê-lo.

Deixemos o relato desta história com André Cruz.

“Ele sempre se preocupou em complementar os fundamentos específicos para cada jogador. No meu caso, apesar de ser defesa, era a finalização e os livres diretos. Um dia, após o treino, o Capello chamou-me e disse ‘dá uma olhada: vê quem ficou e quem está a ir embora’. Tinham ficado eu, Maldini, Weah, Kluivert, Boban e Savicevic, para treinar finalização. Eu e o Boban nos livres. E ficaram ainda os guarda-redes.

Os jovens estavam a ir embora e o Capello disse-me: “Eu quero ver qual desses jovens conseguirá chegar a ser titular numa grande equipa. Tenho a certeza de que nenhum deles vai lá chegar”. Eu, realmente, não me lembro de nenhum deles ter chegado a ser titular e mantido uma carreira numa grande equipa. Essa história ficou-me marcada”.

Pois bem, perante o relato de André Cruz, ficámos curiosos. Fomos ver o tal plantel do AC Milan, em 97/98, e ver quem eram os jovens rapazes que foram embora logo após o treino. Vejamos os médios e atacantes com menos de 25 anos: Gianluca Zanetti, Daino, Comazzi, Beloufa, Smoje, Cardone, Corrent, Ibrahim Ba, Blomqvist, Davids, Augliera, De Zerbi, Pelatti, Andreas Andersson, Maniero, Maccarone e Gasparetto.

São 17 jogadores e, já dando de barato Maccarone e Blomqvist – e já é fazer um grande favor –, apenas Edgar Davids se juntou a estes dois como jogadores com carreiras acima da média.

Três em 17. Capello bem tinha dito.