Treinadores defendem que a “competência não tem idade”, embora a Primeira Liga tenha das médias mais baixas da Europa
Se Claudio Ranieri tivesse sido contratado por um clube português, não teria os problemas burocráticos que teve para assumir o controlo do FC Nantes, mas poderia deparar-se com outros. Em Portugal não existe idade para a “reforma” dos treinadores, ao contrário dos 65 anos impostos pelos gauleses, que o técnico italiano se viu obrigado a contornar, com uma permissão especial. No entanto, há um obstáculo com que os treinadores mais experientes se deparam: a tendência para apostar na juventude. Até porque há quem tente “reformar antecipadamente” os técnicos mais velhos, segundo aponta Vítor Manuel.
“Ninguém pode ser afetado pela idade”, começa por dizer ao Bancada José Pereira, presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol. “Para nós não há treinadores novos e velhos. Há, sim, treinadores competentes”, refere. Competência que “não tem idade”, segundo defende Toni, de 70 anos, que tem no currículo dois títulos pelo Benfica. Ideia corroborada pelo próprio José Pereira e muitas vezes vincada por Vítor Manuel, de 64 anos, que é o sexto técnico com mais jogos no primeiro escalão, tendo já ultrapassado a barreira dos 500.
No entanto, os números mostram uma tendência diferente. A média de idades dos treinadores da Primeira Liga para a próxima época é de 47,22 anos. Se compararmos com as cinco principais ligas europeias, apenas a Alemanha possui uma média mais baixa: 45,17. Os 29 anos de Julian Nagelsmann, do TSG Hoffenheim, podem explicar esta diferença e o facto de o campeonato português não ser mesmo o líder em termos de juventude. Por cá, o mais novo é o pacense Vasco Seabra, havendo mais três técnicos na casa dos 30 anos.
Dos 18 técnicos que se preparam para começar a época no primeiro escalão português, apenas três deles estão acima dos 60 anos e somente um deles é uma nova escolha. Mas nenhum alcança, por exemplo, a idade de Ranieri, que tem 65 anos. E ainda estão mais longe de Arsène Wenger. Aos 67 anos, o técnico do Arsenal é o mais velho da Premier League – campeonato com uma média de 49,85 anos entre os treinadores que vão iniciar a temporada 2017/18.
Para o líder da ANTF é “o mercado” que origina estes números. “O empregador é que vai ao encontro daquilo que entende ser a melhor receita para o que pretende produzir. Os clubes procuram de acordo com as suas pretensões”, explica-nos. Por sua vez Toni, frisa que “a tendência dos números evidencia alguma coisa, mas, independentemente das estatísticas, o importante é que o treinador seja competente e tenha conhecimento”, sublinhando ainda que “a competência abarca uma série de fatores”.
A mágoa de Toni e os “empurrões” para a reforma
Embora aceitem o surgimento dos novos valores no campo do treino com naturalidade, os experientes treinadores gostariam que não se instalasse um certo estereótipo relativo à idade dos treinadores. “Quem dirige pode fazer as suas escolhas e é preciso entender e aceitá-las. Mas sem se pensar que um treinador por ser mais velho tenha sido ultrapassado por estas últimas dezenas de anos em que o treino evoluiu muito e bem, ou que não tenham evoluído em função disso”, salienta Toni, que teve o seu último trabalho em 2015/16, ao serviço dos iranianos do Tractor.
Também para Vítor Manuel a tendência dos números está relacionada “com os dirigentes”. “Não me faz confusão nenhuma ver um treinador mais jovem e com valor numa equipa. Também comecei com 31 anos na Primeira Divisão”, relembra ao Bancada, antes de referir que o “estereótipo da idade não faz sentido”, até porque “atualmente só não está informado quem não quer”. Ranieri é apontado pelo técnico como o caso mais evidente disso mesmo. “É o exemplo típico de que o treinador não tem idade, pois foi campeão em Inglaterra, num campeonato muito difícil, com um clube modesto. Algo que revela competência, trabalho e qualidade”, sintetiza.
“Quantos anos tem Fernando Santos?”, atira Toni, dando outro exemplo de longevidade de mãos dadas com conquistas. Ainda assim, o antigo internacional português revela-nos uma mágoa que tem devido a uma frase chavão muitas vezes ouvida da boca dos dirigentes. “Fala-se muito de ‘treinador jovem e ambicioso’. Daqui por uns anos esse slogan vai repetir-se. Aqueles que hoje são jovens e ambiciosos, amanhã irão ficar mais velhos e aparecerão outros jovens. Quando fomos jovens também fomos ambiciosos e outros ficaram pelo caminho. São ciclos de vida. A única coisa que me dói é que há a ideia de que ganhar idade parece significar que se deixou de ser ambicioso”, lamenta.
Sobre esta situação em específico, José Pereira é perentório: “Entendemos que há treinadores menos jovens tão ou mais ambiciosos que os jovens, portanto não fazemos qualquer tipo de discriminação”. O líder da ANTF descreve ainda que a principal função do organismo, passa por “preservar que as equipas técnicas sejam constituídas por aquilo que está determinado pela Liga e pela FPF”, não olhando para a questão das idades e repetindo a ideia de que “a partir daí é o mercado que decide”.
No entanto, Vítor Manuel fala em “fenómenos difíceis de explicar”, argumentando que “não faz sentido existir uma idade de reforma para os treinadores”, à semelhança do que se passa em França. “Nós é que estabelecemos as nossas metas. O treinador vai fazendo as suas etapas até chegar à altura em que sente que tem de parar. Ou então é empurrado para essa reforma de forma antecipada. Há pessoas que nos vão reformando aos poucos. Quem? Os dirigentes. Alguns treinadores ficam com o rótulo muito mais cedo e têm de ir antecipadamente para reforma”, acusa o técnico, que já não treina no primeiro escalão desde 2001/02, quando orientou o Alverca.
Vantagens que só a experiência traz
Vítor Manuel não hesita em classificar o “treinador perfeito” como “aquele que consegue dominar as várias áreas do treino e ter mais experiência, conjugando as duas situações da melhor forma”. Para o técnico que esteve ao serviço dos moçambicanos do Ferroviário de Maputo em 2016 são esses treinadores “que gerem melhor um grupo de trabalho, pois a parte emocional e mental são as mais importantes que há no futebol”.
“Nós temos mais qualquer coisa, sem colocar em causa os mais jovens, que também vão lá chegar. Não faz sentido falar em novos e velhos, o que interessa é a competência e essa existe nos treinadores com 30, 40 ou mais velhos. Contudo, penso que os que passaram por mais situações na carreira estão mais apetrechados”, assevera Vítor Manuel, antes de falar do próprio exemplo. “Digo com toda a naturalidade, que sou a mesma pessoa, mas vejo o futebol de maneira diferente. Sou um romântico e gosto de futebol positivo, que apaixona as pessoas. Penso que agora estou muito melhor preparado”, assegura.
Ainda assim, José Pereira defende que, tal como a idade, a falta de currículo não pode ser um fator de exclusão na escolha de treinadores. “Nem os mais novos deixam de ser competentes por não terem currículo, nem os mais velhos deixam de ter competência pela idade. Antes de termos currículo é preciso treinar para demonstrar as competências. A profissão de treinador é como outra qualquer”, lembra. Para o presidente da ANTF a prova de que a competência do treinador português não tem idade “está mostrada de forma inequívoca pela procura que há do treinador português e pelos trabalhos de sucesso desenvolvidos dentro e fora de portas”.
A verdade é que, apesar da tendência para apostar em técnicos mais jovens em relação às “Big Five”, os números mostram uma subida da idade média nos anos recentes. Em 2012/13, por exemplo, quando a Liga era disputada a 16 equipas, a média de idades dos treinadores que iniciaram a Primeira Liga foi de 42,81 anos. Só em 2015/16 foi superior à deste ano, mas por muito pouco. Segundo José Pereira a “crise” foi a razão do sucedido. “Numa certa altura a aposta nos treinadores jovens nasceu da redução de preços. Não foi por uma questão exclusiva de competência, mas pela necessidade de procurar treinadores sem grandes currículos e mais baratos, que não deixam de ser competentes por isso”, reflete.
A longevidade de Roux
Lá por fora não faltam exemplos, tal como o de Ranieri, que aliaram longevidade à eficácia. Até foi em França que aconteceu o caso mais mediático. O histórico Guy Roux assumiu o comando técnico do AJ Auxerre na longínqua época de 1961/62, permanecendo por lá durante mais de 40 anos, até 2004/05, e conquistando um título francês pelo meio, em 1995/96, uma Supertaça e ainda quatro Taças de França. Em 2007/08 assumiu o comando do RC Lens por apenas uma temporada, retirando-se depois dos bancos, a caminho dos 68 anos.
Outros houve que não ousaram estar tanto tempo ao serviço da mesma equipa, mas que conseguiram atingir a glória graças à experiência acumulada. Bem recentemente, em 2012/13, Jupp Heynckes tornou-se no segundo treinador mais velho a vencer a Liga dos Campeões pelo Bayern Munique, com 68 anos, retirando-se após essa conquista. Melhor só Raymond Goethals, que venceu a prova em 1993 ao serviço do Olympique Marselha, com 71 anos. O belga acabaria por ser retirar uma época depois, já ao serviço do Anderlecht.
Se olharmos para as competições de seleções, o malogrado Luis Aragonés conduziu a Espanha ao título europeu a poucos dias de cumprir 70 anos. Já Otto Rehhagel, que havia sido campeão europeu com a Grécia em Portugal, tornou-se em 2010 no treinador mais velho a estar presente num Mundial, orientando os gregos na África do Sul, com 71 anos. Houve até quem fosse treinador durante largos anos, sendo a morte a obrigá-lo a parar. Foi esse o caso de Valeriy Lobanovskiy, que faleceu aos 63 anos, quando ainda orientava o Dínamo Kiev, após uma carreira de mais de 30 anos de glória e conquistas.
Estes são exemplos válidos de que a idade é apenas um número de bilhete de identidade e, embora os números mostrem a tal tendência pelos técnicos mais jovens, a competência ainda tem algum peso. Isto porque, consoante remata José Pereira, utilizando um famoso ditado popular, os treinadores portugueses “são como o vinho do Porto: azedam os maus e melhoram os bons”.